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terça-feira, outubro 28, 2003
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Foram doze os “visitantes” que participaram na votação das propostas de textos apresentadas para o I Capítulo do Romance Policial a que nos propomos dar corpo no LOCAL DO CRIME: José Luciano Dias, Eduardo M.Oliveira, A.Raposo, Paulo, I.Moka, Daniel Falcão, Dr.Gismondo, Haga Rái, Bemtevejo, Célia Santos, Hortonólito e JMCM.
A proposta apresentada por Inspector Moka foi a vencedora, com 5 (cinco) votos expressos.

Pão de Canela (título provisório)
Primeiro Capítulo

Todos os dias úteis de todas as semanas, desde há mais de um ano, vinham a mirar-se longamente ao pequeno almoço. Ele escolhia invariavelmente um “bretzel” que acompanhava com meia de leite, ela pedia um “croissant” com manteiga, com pouca manteiga, insistia, e um chá verde. Não se falavam. Não se cumprimentavam sequer. Ele abria o “Notícias”, ela lia o “Público”. Lá fora, na Praça das Flores, espaço verde na lisboeta encosta entre o Príncipe Real e S.Bento, sucediam-se as estações, as ramagens, as iluminações de Natal, as festas populares em Junho, os nevoeiros de Novembro e de Fevereiro. Os lugares que escolhiam na característica sala eram, também, quase sempre os mesmos – apenas alterados quando alguém chegava mais cedo e lhes trocava as voltas. Dir-se-ia que se evitavam.

Um dia, a casualidade aproximou-os. A fartura de sucursais bancárias, em esquinas fronteiras, tornou-se subitamente fome, quando ambos os estabelecimentos caíram nos braços de patrões que os fecharam, que “reestruturaram” o respectivo pessoal e, sobretudo, que levaram consigo as hoje imprescindíveis caixas atm. Os comerciantes e moradores da área lamentaram-se, fizeram listas de assinaturas, escreveram para os jornais, colaram papelinhos nos troncos onde antes se anunciava, em fotocópias mal tiradas, que havia uma sessão de fado vadio em pleno Bairro Alto ou que o "Boby" se pirara dos carinhos da dona, arrebatado pelos odores caninamente irresistíveis duma fêmea em cio. António Rosa, com a pasta cansada em que guardava os processos que estudara ao serão, tendo de ir a S.Bento para se abastecer de algumas notitas das novas, cheias de europas, pontes e estilos, chegou ali mais tarde que o costume, mal disfarçando o desagrado de encontrar na sua habitual mesa um casalinho em aparente fim de noite e, pelo ar já derreado que ambos mostravam, em pouco promissor início de manhã. Madalena olhava o jornal e anotava, em folhas A4 dobradas em caderno, algumas ideias soltas, que poderiam influir na criação de um novo vestido para um outro outono que ainda vinha longe. Ficaram próximos. Suficientemente próximos para António apanhar o volume do “Kaputt” que, mal pousado na convexidade do assento da cadeira à direita de Manuela, não escapara ao movimento da empregada brasileira, apressada a trazer o habitual “bretzel” para o não menos habitual cliente.

Lê Malaparte, perguntou ele. Leio, respondeu ela. Eu também...mas agora que Malaparte caiu em desuso, vendendo-se em saldo em qualquer supermercado... Eu também sei, cortou Madalena, mas gosto da forma como consegue descrever o que viu e o que talvez não tenha visto, segundo muitos... Falaram sumariamente do autor e da obra. António prometeu-lhe trazer alguns outros livros da sua biblioteca. Madalena agradeceu. No decorrer do tempo, que passava para além do normal e que deixara os jornais abertos esquecidos, António questionou: E, já agora, conhece a casa de Malaparte em Capri? A casa que ele construiu nas arribas do Cabo Masullo e que baptizou de “Casa como eu”? Não, não conheço... Sabe, eu também não, a não ser em fotografia. Mas de há muito eu sonho poder visitá-la. Só que não encontro quem queira ir lá comigo! Não sei porquê, lançou ela surpreendida com a inesperada ocorrência de tal degelo em manhã de Outono ainda quente, se alguém me convidasse eu não desprezaria uma oportunidade de ir a Capri, com casa de Malaparte ou sem ela! Quer então vir daí? Isso é um convite? É uma sugestão! E por que não...é coisa a pensar!

E o diálogo daquela manhã passou a ser a regra. O “bretzel” iria irmanar o “croissant”, nas mesmas manhãs, no mesmo prato, começando até a cutucarem-se bem cedo, em até então inéditas manhãs de sábado. Lá fora, no rito de todos os anos, as árvores despiram-se e as gotas de chuva perlaram os ramos, marcando os tempos litúrgicos que vão do nascimento do menino à morte do homem. Decidida a utilização da viatura de António, iam montando cuidadosamente a viagem, cujos meandros desenhavam com o apoio de mapas, de itinerários colhidos no “local” www.michelin.com e de um sonho que passara a ser conjunto, expresso nas mãos que se iam gradualmente tocando.

Saíram de carro, duas semanas depois da páscoa. Tinham acordado dizer o mínimo a amigos e conhecidos. Tinham também acordado, apesar da menor experiência de Madalena, em revezar-se ao volante. No escritório, António distribuiu processos, assinou substabelecimentos, deu instruções suficientes para que os colegas pudessem assegurar o expediente da próxima quinzena. No “atelier”, Madalena deixou igualmente instruções. Em casa, à mulher e aos filhos, António sugeriu uma viagem de serviço, que o levaria a França por duas semanas. Madalena, tirando uma prima distante que estava colocada no Politécnico de Setúbal e que equilibrava o preço do alojamento em Troino com um meio-tempo prestado numa seguradora, não tinha mais família a quem deixar recados.

Dois levantamentos de dinheiro, feitos em Faro, foram os últimos sinais por ambos deixados em terras portuguesas. Previdente, António movimentara antes da partida alguns fundos, incluindo reforços que transferira para a conta conjunta e que destinava a prevenir despesas domésticas extraordinárias, como habitualmente fazia quando das suas deslocações. Madalena deixara na míngua as suas duas contas. De acordo com instruções transmitidas a alguns escritórios com quem mantinha relações e tendo em conta aquele confuso período de troca de moedas, António tinha previsto a possibilidade de levantar dinheiro em Castellón, Sète e Ventimiglia. Bastante dinheiro até. Madalena incumbira-se de, sem avançar grandes detalhes, cobrar, em Barcelona, uma dívida de uma cliente catalã do “atelier”, proporcionando-se assim a disposição de um razoável montante de pesetas. Provar-se-ia mais tarde que o levantamento em Castellón teve lugar, como previsto, mas nem em Sète, nem em Ventimiglia, nem em Barcelona tinha sido reclamado qualquer montante. Não houve mais levantamentos, cobrança ou notícias. Na confeitaria da Praça das Flores prolongava-se a ausência de ambos, enquanto a Primavera se ia resolvendo nas últimas chuvas, enxota-pombos precedendo a aproximação de um Verão que se adivinhava quente.

As duas semanas tinham-se completado, sem novas nem mandados. Na segunda feira seguinte, a mulher de António telefonou para o escritório, a saber de notícias. Conhecia-se de há muito o laconismo entre ambos, o que justificou o “devem estar a acabar-lhe as massas e por isso se lembra dele!”, com que o dr.Aurélio comentou o facto, enquanto afiava meticulosamente o lápis com que teimava em anotar as minutas e que não trocava por qualquer lapiseira, por muito AG Spalding que fosse. Aliás, no escritório, nada tinham de mais para dizer. Dias depois, era do “atelier” de Madalena que procuravam a trabalhadora-estudante, para desta saber se tinha recebido qualquer mensagem da prima... Negativo, também!

À terceira semana houve notícias. Alguém voltou. Mas apenas um dos que tinham partido.
(continua)

Inspector Moka


Entre os dias 10 e 20 de Novembro, os “visitantes” que queiram participar na criação do II Capítulo deste Romance Policial devem enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt as suas propostas de texto (com o máximo de 7.000 caracteres).
Os textos propostos devem enquadrar-se no espírito e história(s) do I Capítulo, acima transcrito, da autoria de Inspector Moka.

 
terça-feira, outubro 21, 2003
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Foram quatro os “escritores” que nos apresentaram propostas de textos para o primeiro capítulo do Romance que nos propomos criar através de um processo de escrita colectiva, aberto à participação da generalidade dos “visitantes” do “blog” LOCAL DO CRIME.

Compete-nos agora (a todos nós, sem excepção) apreciar aquelas propostas e optar por uma delas, através de voto directo a enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt, até dia 27 de Outubro, impreterivelmente. Para o efeito basta escrever:

“Voto na Proposta nº. 1 – original de A.Raposo”
ou
“Voto na Proposta nº. 2 – original de Insp.Huga Booga”
ou
“Voto na Proposta nº. 3 – original de Inspector Moka”
ou
“Voto na Proposta nº. 4 – original de JPenatra”


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
I Capítulo
Proposta nº. 1 – original de A.Raposo


John Slater recostou-se um pouco melhor no sofá. À sua frente o televisor ia emprestando imagens de um jogo de basebol.
De repente, um som parecido com uma rolha de garrafa de champanhe, ao ser retirada, mas mais abafado, ecoou na sala.
John deixou cair a cabeça ainda mais para trás, mas desta vez surgiu um sinal vermelho na testa, do qual começou a brotar um líquido viscoso. Passos furtivos ouviram-se afastando-se da sala.
John não se apercebeu do resultado do jogo, que, entretanto terminara. Tinha ganho o seu grupo favorito, mas nada no seu rosto levaria a pensar que o tivesse deixado feliz.
Da sala ao lado, uma voz feminina perguntou:
“Queres cerveja a acompanhar a pizza, John?”.
A única resposta daquela sala vinha do televisor que continuava a debitar anúncios.
A mulher de Slater, transportando uma bandeja, entrou na sala com um sorriso. Percorreu dois metros e ficou parada, petrificada.
Depois, deixou cair, lentamente a bandeja. A garrafa da cerveja, que já vinha aberta na bandeja, caiu e rolou, até aos pés de John, deixando um rasto de espuma na alcatifa.
A mulher aproximou-se do corpo de John, ajoelhou-se junto ao sofá e pegou-lhe na mão. Não teve dúvidas, John estaria morto. Com aquele buraco na testa não admiraria que a morte tivesse sido instantânea. Porém na zona do peito, a camisa subia e descia, lentamente como se a respiração normal continuasse...


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
I Capítulo
Proposta nº. 2 – original de Insp. Huga Booga


Gertrudes Gonzaga, a GG – leia-se Grande Gaja – da Mouraria, que durante as duas últimas décadas imperou nas ruas do Benformoso, do Capelão e da Guia, dando volta à cabeça e à carteira dos homens que procuram na noite dos desamores momentos fugazes de paixão e disputando com as mulheres da sociedade mais in os favores dos homens mais ricos e poderosos do jet set nacional, apareceu esta manhã, por volta das oito horas, morta à porta de uma casa de penhores do Bairro Alto, alvejada com vários tiros no peito.
Tudo indica que GG terá sido vítima de crime passional e há quem suspeite do seu actual namorado, um jovem desempregado e alcoólico que dá pela alcunha de “Seca Adegas” e que ultimamente tem provocado diversas cenas de violência nas casas de alterne que ela frequentava quase assiduamente, talvez movido por ciúmes ferozes e doentios que a mistura explosiva de álcool e droga não deixa controlar.
Irene, a coxa do Intendente, tem outras suspeitas. Ela acha que o crime poderá ter sido cometido por uma tal Genoveva, uma senhora de nome firmado na alta sociedade, que trafica cunhas e influências no mercado financeiro a troco de favores sexuais de jovens meninas universitárias, e que entrou recentemente em disputa com a GG por causa de um cavalheiro banqueiro que dá pelo “petit nom” de Jójó.
Marieta, discípula dilecta de GG, tem outra opinião: segundo ela, a sua amiga e mestre na arte da sedução e do amor terá sido vítima de um ajuste de contas de uma rede de traficantes de carne branca, com origem nos países do leste europeu, liderada por um tal Ivanov, que há muito vem ameaçando GG de morte por esta se recusar a receber no seio da sua organização de “acompanhantes para todo o serviço” um grupo de quatro jovens ucranianas recém chegadas ao nosso país clandestinamente.
Enquanto se aguarda o veredicto da Polícia, que só agora tomou conta da ocorrência, uma coisa parece certa: o móbil do crime não terá sido o roubo porque na mala de mão da GG estão várias jóias de grande valor, que, supõe-se, ela pretenderia empenhar por uns tempos para ultrapassar dificuldades financeiras momentâneas…


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
I Capítulo
Proposta nº. 3 – original de Inspector Moka


Todos os dias úteis de todas as semanas, desde há mais de um ano, vinham a mirar-se longamente ao pequeno almoço. Ele escolhia invariavelmente um “bretzel” que acompanhava com meia de leite, ela pedia um “croissant” com manteiga, com pouca manteiga, insistia, e um chá verde. Não se falavam. Não se cumprimentavam sequer. Ele abria o “Notícias”, ela lia o “Público”. Lá fora, na Praça das Flores, espaço verde na lisboeta encosta entre o Príncipe Real e S.Bento, sucediam-se as estações, as ramagens, as iluminações de Natal, as festas populares em Junho, os nevoeiros de Novembro e de Fevereiro. Os lugares que escolhiam na característica sala eram, também, quase sempre os mesmos -- apenas alterados quando alguém chegava mais cedo e lhes trocava as voltas. Dir-se-ia que se evitavam.

Um dia, a casualidade aproximou-os. A fartura de sucursais bancárias, em esquinas fronteiras, tornou-se subitamente fome, quando ambos os estabelecimentos caíram nos braços de patrões que os fecharam, que “reestruturaram” o respectivo pessoal e, sobretudo, que levaram consigo as hoje imprescindíveis caixas atm. Os comerciantes e moradores da área lamentaram-se, fizeram listas de assinaturas, escreveram para os jornais, colaram papelinhos nos troncos onde antes se anunciava, em fotocópias mal tiradas, que havia uma sessão de fado vadio em pleno Bairro Alto ou que o "Boba" se pirara dos carinhos da dona, arrebatado pelos odores caninamente irresistíveis duma fêmea em cio. António Rosa, com a pasta cansada em que guardava os processos que estudara ao serão, tendo de ir a S.Bento para se abastecer de algumas notitas das novas, cheias de europas, pontes e estilos, chegou ali mais tarde que o costume, mal disfarçando o desagrado de encontrar na sua habitual mesa um casalinho em aparente fim de noite e, pelo ar já derreado que ambos mostravam, em pouco promissor início de manhã. Madalena olhava o jornal e anotava, em folhas A4 dobradas em caderno, algumas ideias soltas, que poderiam influir na criação de um novo vestido para um outro outono que ainda vinha longe. Ficaram próximos. Suficientemente próximos para António apanhar o volume do “Kaputt” que, mal pousado na convexidade do assento da cadeira à direita de Manuela, não escapara ao movimento da empregada brasileira, apressada a trazer o habitual “bretzel” para o não menos habitual cliente.

Lê Malaparte, perguntou ele. Leio, respondeu ela. Eu também...mas agora que Malaparte caiu em desuso, vendendo-se em saldo em qualquer supermercado... Eu também sei, cortou Manuela, mas gosto da forma como consegue descrever o que viu e o que talvez não tenha visto, segundo muitos... Falaram sumariamente do autor e da obra. António prometeu-lhe trazer alguns outros livros da sua biblioteca. Manuela agradeceu. No decorrer do tempo, que passava para além do normal e que deixara os jornais abertos esquecidos, António questionou: E, já agora, conhece a casa de Malaparte em Capri? A casa que ele construiu nas arribas do Cabo Masullo e que baptizou de “Casa como eu”? Não, não conheço... Sabe, eu também não, a não ser em fotografia. Mas de há muito eu sonho poder visitá-la. Só que não encontro quem queira ir lá comigo! Não sei porquê, lançou ela surpreendida com o inesperada ocorrência de tal degelo em manhã de Outono ainda quente, se alguém me convidasse eu não desprezaria uma oportunidade de ir a Capri, com casa de Malaparte ou sem ela! Quer então vir daí? Isso é um convite? É uma sugestão! E por que não...é coisa a pensar!

E o diálogo daquela manhã passou a ser a regra. O “bretzel” iria irmanar o “croissant”, nas mesmas manhãs, no mesmo prato, começando até a cutucarem-se bem cedo, em até então inéditas manhãs de sábado. Lá fora, no rito de todos os anos, as árvores despiram-se e as gotas de chuva perlaram os ramos, marcando os tempos litúrgicos que vão do nascimento do menino à morte do homem. Decidida a utilização da viatura de António, iam montando cuidadosamente a viagem, cujos meandros desenhavam com o apoio de mapas, de itinerários colhidos no “local” www.michelin.com e de um sonho que passara a ser conjunto, expresso nas mãos que se iam gradualmente tocando.

Saíram de carro, duas semanas depois da páscoa. Tinham acordado dizer o mínimo a amigos e conhecidos. Tinham também acordado, apesar da menor experiência de Madalena, em revezar-se ao volante. No escritório, António distribuiu processos, assinou substabelecimentos, deu instruções suficientes para que os colegas pudessem assegurar o expediente da próxima quinzena. No “atelier”, Madalena deixou igualmente instruções. Em casa, à mulher e aos filhos, António sugeriu uma viagem de serviço, que o levaria a França por duas semanas. Madalena, tirando uma prima distante que estava colocada no Politécnico de Setúbal e que equilibrava o preço do alojamento em Troino com um meio-tempo prestado numa seguradora, não tinha mais família a quem deixar recados.

Dois levantamentos de dinheiro, feitos em Faro, foram os últimos sinais por ambos deixados em terras portuguesas. Previdente, António movimentara antes da partida alguns fundos, incluindo reforços que transferira para a conta conjunta e que destinava a prevenir despesas domésticas extraordinárias, como habitualmente fazia quando das suas deslocações. Madalena deixara na míngua as suas duas contas. De acordo com instruções transmitidas a alguns escritórios com quem mantinha relações e tendo em conta aquele confuso período de troca de moedas, António tinha previsto a possibilidade de levantar dinheiro em Castellón, Sète e Ventimiglia. Bastante dinheiro até. Madalena incumbira-se de, sem avançar grandes detalhes, cobrar, em Barcelona, uma dívida de uma cliente catalã do “atelier”, proporcionando-se assim a disposição de um razoável montante de pesetas. Provar-se-ia mais tarde que o levantamento em Castellón teve lugar, como previsto, mas nem em Sète, nem em Ventimiglia, nem em Barcelona tinha sido reclamado qualquer montante. Não houve mais levantamentos, cobrança ou notícias. Na confeitaria da Praça das Flores prolongava-se a ausência de ambos, enquanto a Primavera se ia resolvendo nas últimas chuvas, enxota-pombos precedendo a aproximação de um Verão que se adivinhava quente.

As duas semanas tinham-se completado, sem novas nem mandados. Na segunda feira seguinte, a mulher de António telefonou para o escritório, a saber de notícias. Conhecia-se de há muito o laconismo entre ambos, o que justificou o “devem estar a acabar-lhe as massas e por isso se lembra dele!”, com que o dr.Aurélio comentou o facto, enquanto afiava meticulosamente o lápis com que teimava em anotar as minutas e que não trocava por qualquer lapiseira, por muito AG Spalding que fosse. Aliás, no escritório, nada tinham de mais para dizer. Dias depois, era do “atelier” de Madalena que procuravam a trabalhadora-estudante, para desta saber se tinha recebido qualquer mensagem da prima... Negativo, também!

À terceira semana houve notícias. Alguém voltou. Mas apenas um dos que tinham partido.


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
I Capítulo
Proposta nº. 4 – original de JPenatra



Naquela cálida manhã de feriado, enleada numa doce madorna, saboreava o suave torpor de um lento acordar. A princípio, os ténues sons que chegavam até si pareciam integrar-se numa espécie de música que a embalava. Contudo, rapidamente, tornaram-se mais nítidos e contundentes, fazendo-a despertar para as coisas concretas da vida real. Alguém batia insistentemente à sua porta, gritando por ela: Drª Sofia!...Drª Sofia!... Estremunhada, consultou o relógio.
-Ó meu Deus, 6 horas da manhã!
Entretanto, o ritmo mais rápido e enérgico das pancadas na porta mostrava a urgência com que precisavam de si. Levantou-se imediatamente e dirigiu-se para a porta da rua, que abriu num ápice.
-Bom dia, dona Eufrásia! Então, algum problema?
-Bom dia, senhora doutora! Peço muitas desculpas de a ter incomodado tão cedo. Mas vou agora com a minha filha, na carreira que vai já sair para passar estes dias com a minha Clotilde, e já dentro do autocarro lembrei-me de que não tinha tomado os comprimidos para as ânsias. Ó minha rica senhora doutora! Se me quisesse fazer o favorzinho de me vender uma caixinha de 10 desses comprimidinhos, ficava-lhe muito agradecida. Se não puder ser, vou passar duas horas terríveis. A estrada tem bocados tão maus que, antes de atravessar o Guadiana, já me fartei de enjoar, com toda a certezinha. Tenha lá paciência, senhora doutora!
-Ora, dona Eufrásia. Agora, que remédio tenho eu?!
-Aqui os tem... Ó dona Eufrásia, então não tem dinheiro mais pequeno?
-Peço-lhe desculpa, mas não tenho notas mais pequenas. Saí de casa com dinheiro só a pensar na carreira e, quando me venderam os bilhetes, deram-me duas notas e uns trocos que não me chegam para lhe pagar os comprimidos.
-Está bem, dona Eufrásia. Ainda tenho aqui uns trocos na caixa que chegam para si. Faça boa viagem e dê cumprimentos à sua irmã, que já há muito tempo a não vejo aqui pelo povo.

Se aqui os dias de semana já custam a passar, que dizer dos feriados?! Mas a hora do jantar acaba por chegar.

-Senhora doutora, posso entrar? Ou já está na hora de fechar o dia?
-Olha! O senhor padre Ramalho! Bons olhos o vejam! Faça favor de entrar... aos feriados, não temos horário! Então o que o traz por cá?! Veio passar o feriado à aldeia? Ou melhor, à vila, pois, apesar de tudo, já fomos promovidos.
-É verdade! Vim passar o fim de semana com a minha irmã, que já não via há muito tempo.
-E a sua governanta, também veio?
-Não. Desta vez vim sozinho.
-Pois é, lá pelas suas bandas sempre é melhor do que estar aqui no povo, não é senhor padre?
-Não é bem assim! Como sabe, nós somos colocados onde acham que fazemos mais falta. Não interessa muito a nossa vontade. Mas eu não me queixo. Temos muitos conterrâneos ali imigrados pelo que sempre dá para matarmos as saudades e revivermos um pouco as coisas da nossa terra.
-É verdade, senhor padre! Parece que há mais pessoas daqui por esse mundo fora do que aquelas que cá vivem. Dizem que, há uns anos, esta era a maior aldeia de país, mas hoje muitas das casas estão fechadas ou a cair de velhas e grande parte da população são pessoas de idade. Em compensação, já cá temos também emigrantes, principalmente vindos do leste. Ainda antes de almoço aqui esteve um. É um rapaz que era veterinário lá na terra dele. Aqui faz o que lhe aparece. Trabalha no campo, vai aos recados e, agora que descobriram que é veterinário, chamam-no quando têm problemas com os animais, e não lhe pagam mais por isso.
-Pois é, Drª Sofia! Não há fome que não dê em fartura, como diz o nosso povo. Mas dizem que é preciso cuidado porque, juntamente com gente boa, tem vindo para aí muita gente má.
-Por enquanto não temos razão de queixa, senhor padre. O problema é que este rapaz não sabe as leis portuguesas. Ainda há bocado, queria uma vacina da raiva para o gato da vizinha Eufémia e não tinha receita, nem as pode passar... Mas ainda bem que ele aqui estava, pois valeu-me para fazer o troco à Rosinda cigana, não sei se o senhor padre se lembra dela? Anda sempre cá e lá, de um lado para o outro da fronteira: "quando a coisa está má", passa-se para Espanha, "quando as coisas acalmam", aparece por aí outra vez. Veja lá, que até me pagou só com “dinheiro espanhol”, mas eu dei-lhe o troco todo em “dinheiro português”. Apareceu-me aqui a chorar-se que tinha a filha "cheia" de dores de cabeça. Estive a observá-la, mas ela vê tão mal que lhe recomendei que fosse ao hospital para uma consulta de oftalmologia. Dispensei-lhe uma caixa de comprimidos paracetamol que, no fundo, era aquilo que ela queria.
-E a doutora acha que ela vai ser atendida?
-Lá isso não sei, senhor padre. Mas falemos do que o traz a esta casa. Em que o posso ajudar?
- Bom, a questão é que a minha irmã deixou acabar os pingos para o glaucoma e como tinha esta receita para os aviar, resolvi vir eu, tanto mais que ela já tem alguma dificuldade em deslocar-se até aqui acima. Como deve saber, ela tem, também, problemas de outro tipo e está , até, a aguardar que a chamem para ser operada.
-De facto, isso não sabia. Talvez a chamem muito em breve.
-Não creio, doutora. Como deve ter sabido, o Sr. Pereira… o governo, falam muito em acabar com as listas de espera, disseram que estavam uns 100 mil pacientes a aguardar a sua vez para serem operados, mas o programa só prevê financiar 70 mil operações nos próximos 2 anos. O pior é que a lista, provavelmente, não vai parar de aumentar e, quando estiver a meio do programa, já haverá outros tantos novos pacientes na fila. Como é que podemos esperar que ela vá ser chamada, se não conhecemos ninguém importante nem temos dinheiro para pagar?!
-Ó senhor padre... O senhor, hoje, parece pouco crente! Aqui tem as duas embalagens de pingos, como pede na receita.
-Muito obrigado. Já agora, agradecia-lhe que me aviasse uma embalagem de insulina para a minha diabetes. Veja lá como a minha cabeça já me vai atraiçoando! A ter de tomar todos os dias a minha dose e logo me fui esquecer de a trazer comigo. Felizmente, tenho sempre uma receita sem data para estas emergências.
-Pois é, senhor padre. Nestes dias de feriado, isso aqui é o pão nosso de cada dia! Deixe-me ver, se faz favor. Não se percebe muito bem a letra. O senhor padre conhece esta caixa? É esta que usa habitualmente?
-Exactamente, é essa mesma!
-Então, é só um momento...
-...Ora, aqui temos!... Mas voltando aos esquecimentos, ainda hoje, logo depois do almoço, me apareceu aqui um senhor muito aflito, indisposto, com uma tensão arterial de 24. Já tinha vindo ontem à noite de Lisboa, de boleia, segundo me disse, para visitar o Sr. Cabo Madeira, e não trouxe os medicamentos. Ainda por cima, já ontem se tinha esquecido de tomar os comprimidos para a tensão. O homem não tinha sido tão previdente como o senhor padre e, por isso, não tinha receita para uma emergência. Veja lá a minha posição. Para aqui estamos hoje sem médicos e sem transportes e o homem aí sentado muito aflito. Lá lhe vendi uma embalagem do medicamento que usa habitualmente. E, assim, fiquei de bem comigo, mas de mal com a lei, a qual me proíbe totalmente a venda deste medicamento sem receita médica.
-...E pronto, aqui tem as suas receitas aviadas, senhor padre.
-Muito obrigado, Drª Sofia. Tive muito gosto em conversar consigo. Queira desculpar-me tê-la feito fechar mais tarde. Até uma próxima oportunidade e que Deus a proteja.
-Muito obrigada, padre Ramalho, e as melhoras para vocês.

Uf! Finalmente o dia chega ao fim! Um dia inteiro para atender cinco pessoas!...

-Bom dia, Drª Sofia, pedimos desculpa pela maçada que estamos a dar-lhe. Sabemos que estas situações são muito desagradáveis e lamentamos ter de lhe comunicar que uma das notas do depósito que ontem, feriado, efectuou através do nosso cofre noturno é falsa.
-O quê?! Falsa?! Depois da morte repentina do padre Ramalho, era mesmo o que me faltava! Não posso acreditar!
-Mas, é verdade. Está a ver? A nota é muito bonita e o trabalho foi muito bem feito. Mas, para além de outros pormenores, se a colocarmos contra a luz não se vê a marca de água. Aqui a tem! Não vale nada... é quase um palmo de papel sem qualquer valor!
-Que hei-de fazer, então, senhor gerente? E pensar eu que ontem dei por ela um dinheirão em notas e em moedas autênticas, para já não falar do valor do medicamento.
-Eu acho que o melhor é a Drª Sofia apresentar queixa no posto da guarda. Hoje vão ter um dia de grande trabalho, pois só iguais a esta já detectámos outras quatro.
-Está bem, vou seguir o seu conselho, mas de que me vai valer? A esta hora já o um dinheirinho deve estar bem longe!



 
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