PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
O LOCAL DO CRIME organiza neste momento um Passatempo de Escrita Policial, aberto à generalidade dos cibernautas, mas especialmente direccionado para os amantes da literatura policial, que se propõe dar corpo a um “romance” escrito a várias mãos, de acordo com o seguinte regulamento:
1. No dia 28 de cada mês, será publicado no LOCAL DO CRIME um capítulo de um Romance Policial que se pretende “permanentemente em aberto”, cujo processo de criação poderá contar com a contribuição de todos os “visitantes” que se quiserem associar à iniciativa, através da participação na produção dos capítulos e/ou na escolha dos textos produzidos.
2. Entre os dias 10 e 20 de cada mês, os “visitantes”-autores devem enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt. as propostas de texto de cada um dos capítulos do Romance (com o máximo de 7.000 caracteres). Os textos propostos para o primeiro capítulo não estão sujeitos a qualquer temática ou enredo, mas os textos produzidos para os capítulos seguintes devem enquadrar-se no espírito e história(s) do(s) capítulo(s) anterior(es).
3. No dia 21 de cada mês serão publicadas, no LOCAL DO CRIME, as propostas de texto enviadas pelos “visitantes”-autores, que ficarão sujeitas à apreciação dos “visitantes”-votantes durante 7 dias.
4. Entre os dias 21 e 27 de cada mês, os “visitantes”-votantes devem escolher um dos textos propostos, através de voto a enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt. O texto mais votado nesse mês dará continuidade ao Romance (nos casos de empate, compete ao “detective” Smaluco a decisão da escolha do texto).
No passado mês de Outubro foram quatro as propostas de textos (primeiro capítulo do “romance”) que se sujeitaram ao veredicto de doze “eleitores”, tendo a escolha recaído na proposta subscrita pelo Inspector Moka, com cinco votos expressos.
No mês de Novembro foram sujeitas a sufrágio cinco propostas da autoria de A.Raposo, Ma(r)ta Hari, Inspector Fidalgo, Dic Roland e Inspector Moka, tendo os dez cibernautas que participaram no acto eleitoral (Vilnosa, Inspector Fidalgo, Inspector Moka, Rip Kirby, Inspectora Marcelis, Ekopax, A.Raposo, Inspector Huga Booga, Daniel Falcão e Giselda) escolhido a proposta assinada pelo Inspector Moka, que obteve 4 votos.
Portanto, neste momento estamos assim:
PÃO DE CANELA (título provisório)
Primeiro Capítulo
Todos os dias úteis de todas as semanas, desde há mais de um ano, vinham a mirar-se longamente ao pequeno almoço. Ele escolhia invariavelmente um “bretzel” que acompanhava com meia de leite, ela pedia um “croissant” com manteiga, com pouca manteiga, insistia, e um chá verde. Não se falavam. Não se cumprimentavam sequer. Ele abria o “Notícias”, ela lia o “Público”. Lá fora, na Praça das Flores, espaço verde na lisboeta encosta entre o Príncipe Real e S.Bento, sucediam-se as estações, as ramagens, as iluminações de Natal, as festas populares em Junho, os nevoeiros de Novembro e de Fevereiro. Os lugares que escolhiam na característica sala eram, também, quase sempre os mesmos – apenas alterados quando alguém chegava mais cedo e lhes trocava as voltas. Dir-se-ia que se evitavam.
Um dia, a casualidade aproximou-os. A fartura de sucursais bancárias, em esquinas fronteiras, tornou-se subitamente fome, quando ambos os estabelecimentos caíram nos braços de patrões que os fecharam, que “reestruturaram” o respectivo pessoal e, sobretudo, que levaram consigo as hoje imprescindíveis caixas atm. Os comerciantes e moradores da área lamentaram-se, fizeram listas de assinaturas, escreveram para os jornais, colaram papelinhos nos troncos onde antes se anunciava, em fotocópias mal tiradas, que havia uma sessão de fado vadio em pleno Bairro Alto ou que o "Boby" se pirara dos carinhos da dona, arrebatado pelos odores caninamente irresistíveis duma fêmea em cio. António Rosa, com a pasta cansada em que guardava os processos que estudara ao serão, tendo de ir a S.Bento para se abastecer de algumas notitas das novas, cheias de europas, pontes e estilos, chegou ali mais tarde que o costume, mal disfarçando o desagrado de encontrar na sua habitual mesa um casalinho em aparente fim de noite e, pelo ar já derreado que ambos mostravam, em pouco promissor início de manhã. Madalena olhava o jornal e anotava, em folhas A4 dobradas em caderno, algumas ideias soltas, que poderiam influir na criação de um novo vestido para um outro outono que ainda vinha longe. Ficaram próximos. Suficientemente próximos para António apanhar o volume do “Kaputt” que, mal pousado na convexidade do assento da cadeira à direita de Madalena, não escapara ao movimento da empregada brasileira, apressada a trazer o habitual “bretzel” para o não menos habitual cliente.
Lê Malaparte, perguntou ele. Leio, respondeu ela. Eu também...mas agora que Malaparte caiu em desuso, vendendo-se em saldo em qualquer supermercado... Eu também sei, cortou Madalena, mas gosto da forma como consegue descrever o que viu e o que talvez não tenha visto, segundo muitos... Falaram sumariamente do autor e da obra. António prometeu-lhe trazer alguns outros livros da sua biblioteca. Madalena agradeceu. No decorrer do tempo, que passava para além do normal e que deixara os jornais abertos esquecidos, António questionou: E, já agora, conhece a casa de Malaparte em Capri? A casa que ele construiu nas arribas do Cabo Masullo e que baptizou de “Casa como eu”? Não, não conheço... Sabe, eu também não, a não ser em fotografia. Mas de há muito eu sonho poder visitá-la. Só que não encontro quem queira ir lá comigo! Não sei porquê, lançou ela surpreendida com a inesperada ocorrência de tal degelo em manhã de Outono ainda quente, se alguém me convidasse eu não desprezaria uma oportunidade de ir a Capri, com casa de Malaparte ou sem ela! Quer então vir daí? Isso é um convite? É uma sugestão! E por que não...é coisa a pensar!
E o diálogo daquela manhã passou a ser a regra. O “bretzel” iria irmanar o “croissant”, nas mesmas manhãs, no mesmo prato, começando até a cutucarem-se bem cedo, em até então inéditas manhãs de sábado. Lá fora, no rito de todos os anos, as árvores despiram-se e as gotas de chuva perlaram os ramos, marcando os tempos litúrgicos que vão do nascimento do menino à morte do homem. Decidida a utilização da viatura de António, iam montando cuidadosamente a viagem, cujos meandros desenhavam com o apoio de mapas, de itinerários colhidos no “local” www.michelin.com e de um sonho que passara a ser conjunto, expresso nas mãos que se iam gradualmente tocando.
Saíram de carro, duas semanas depois da páscoa. Tinham acordado dizer o mínimo a amigos e conhecidos. Tinham também acordado, apesar da menor experiência de Madalena, em revezar-se ao volante. No escritório, António distribuiu processos, assinou substabelecimentos, deu instruções suficientes para que os colegas pudessem assegurar o expediente da próxima quinzena. No “atelier”, Madalena deixou igualmente instruções. Em casa, à mulher e aos filhos, António sugeriu uma viagem de serviço, que
o levaria a França por duas semanas. Madalena, tirando uma prima distante que estava colocada no Politécnico de Setúbal e que equilibrava o preço do alojamento em Troino com um meio-tempo prestado numa seguradora, não tinha mais família a quem deixar recados.
Dois levantamentos de dinheiro, feitos em Faro, foram os últimos sinais por ambos deixados em terras portuguesas. Previdente, António movimentara antes da partida alguns fundos, incluindo reforços que transferira para a conta conjunta e que destinava a prevenir despesas domésticas extraordinárias, como habitualmente fazia quando das suas deslocações. Madalena deixara na míngua as suas duas contas. De acordo com instruções transmitidas a alguns escritórios com quem mantinha relações e tendo em conta aquele confuso período de troca de moedas, António tinha previsto a possibilidade de levantar dinheiro em Castellón, Sète e Ventimiglia. Bastante dinheiro até. Madalena incumbira-se de, sem avançar grandes detalhes, cobrar, em Barcelona, uma dívida de uma cliente catalã do “atelier”, proporcionando-se assim a disposição de um razoável montante de pesetas. Provar-se-ia mais tarde que o levantamento em Castellón teve lugar, como previsto, mas nem em Sète, nem em Ventimiglia, nem em Barcelona tinha sido reclamado qualquer montante. Não houve mais levantamentos, cobrança ou notícias. Na confeitaria da Praça das Flores prolongava-se a ausência de ambos, enquanto a Primavera se ia resolvendo nas últimas chuvas, enxota-pombos precedendo a aproximação de um Verão que se adivinhava quente.
As duas semanas tinham-se completado, sem novas nem mandados. Na segunda feira seguinte, a mulher de António telefonou para o escritório, a saber de notícias. Conhecia-se de há muito o laconismo entre ambos, o que justificou o “devem estar a acabar-lhe as massas e por isso se lembra dele!”, com que o dr.Aurélio comentou o facto, enquanto afiava meticulosamente o lápis com que teimava em anotar as minutas e que não trocava por qualquer lapiseira, por muito AG Spalding que fosse. Aliás, no escritório, nada tinham de mais para dizer. Dias depois, era do “atelier” de Madalena que procuravam a trabalhadora-estudante, para desta saber se tinha recebido qualquer mensagem da prima... Negativo, também!
À terceira semana houve notícias. Alguém voltou. Mas apenas um dos que tinham partido.
a) Inspector Moka
Segundo Capítulo
A Páscoa, em 2002, foi a 31 de Março e, piada velha, calhou ao domingo. Com ela a costumeira febre de consumo, o exodo das cidades, a nacional hecatombe nas estradas. O ano trazia o ónus dum popular provérbio, lembrando que “Páscoa em Março ou é fome ou é mortaço”, mas nem pela lembrança desse ditado, por muito que a festa se escondesse no último dia do mês, nem pelas tolerâncias de ponto concedidas para segunda-feira de manhã, iriam estas jornadas acolher acrescida prudência.
A leste da cidade, num dos arruamentos ainda sem termo definido da zona já órfã da Expo 98 e agora em progressiva ocupação urbana, a norte da via férrea, o Rover 414 verde e sujo permanecia solitário, com a legenda “Trata 977 081 006” em cartolina branca, encostada e presa à superfície interna do vidro lateral, do lado do condutor, por uma simples etiqueta de correio-azul. No banco traseiro, desenhos e jornais dobrados. O fim de semana prolongado interrompera a actividade babélica da construção civil e esvaziara muitas das instalações comerciais próximas – evitando assim que nenhum abelhudo viesse questionar a estranha presença daquele carro. Aliás, como depois se comprovou, ninguém sabia exactamente “desde quando”, embora alguns arriscassem que já o teriam visto ali uma ou duas manhãs antes da desmobilização civil iniciada na quinta-feira santa. Certo é que, passada a “ponte”, tal permanência iria ainda manter-se escassos dias, até que o estroncamento maldoso dum retrovisor lateral, o crescente questionar na vizinhança quanto à origem e propriedade do automóvel, a hipótese de que fora roubado e que, como tal, poderia beneficiar eventuais alvissareiros, tudo cumulado com a crescente fedorina que dele se exalava, contribuíram para que, finalmente, fosse comunicada à PSP a enigmática ocorrência..
Não, não havia qualquer participação de roubo relacionada com aquele veículo, registado em nome de um António Ferreira Neto, com morada na Amadora. Sem telefone na lista. Uma tentativa de contacto no endereço indicado iria assustar uma rotunda mãe de família cabo-verdiana quando tranquilamente preparava o jantar. Corroborada em tudo pelos vizinhos, afirmou ali morar há mais de dois meses, ter “alugado” a casa em agência que indicou, e mais declarou, com o nervosismo que lhe causavam fardas, que não conhecia nem queria conhecer qualquer anterior morador da “sua casa”, fosse ou não fosse Neto ou avô. No prédio, de dois andares e seis fogos, dois ou três vizinhos recordavam-se do locatário do 2º direito, que tivera passagem efémera, de pouco mais que meio-ano, e que não viam desde que se fora embora, à cerca de uns três meses. Entrava e saía a desoras e era ou dizia-se engenheiro. Vivia só, sem familiares, sem qualquer bicharada conhecida, mas às vezes entrava-lhe em casa uma moça muito mais nova, desenvolta, que passava lá a noite e que aguçava a curiosidade (e certamente o apetite) do pessoal masculino local, levantava sérias reservas ao mulherame e a quem, jurariam, o engenheiro chamara algumas vezes de Madalena. Pois! (interjeição acompanhada de um piscar de olhos). O homem, esse tinha de facto um carro verde que, pela descrição, não destoava do tal Rover abandonado. Em conversa ocasional e rara, queixara-se da dificuldade de conseguir rapidamente um telefone fixo. Relativamente novo, pendia já para uma meia-idade que a calvície nascente denunciava. Era muito educado, apesar do cheiro a charuto que por vezes inundava a caixa da escada e, mais raramente, do ruído duma “música séria”, que ficava a tocar um pouco alto. Deixara o andar bastante sujo, com jornais e revistas empilhados e com alguns tarecos que nunca mais veio reclamar e que acabaram, quase todos, junto ao mais próximo contentor do lixo.
A persistência do cheirete, cada vez mais pútrido, e a inoperância das diligências empreendidas acabaram por levar a polícia a abrir as portas da viatura -- o que tornou o ambiente próximo simplesmente insuportável. Levantada a tampa da mala, logo descobriram a causa. Vestido de forma convencional, parcialmente coberto com uma manta de viagem e deitado em posição fetal, o cadáver tinha ainda postos os auscultadores ligeiros e de boa marca que se ligavam a um leitor portátil de CD’s. Introduzido neste, o disco com quatro “Concerti Grossi” do Opus 6 de Haendel deixara há muito de se ouvir e de ser ouvido. A respectiva caixa juntava-se a outras duas, uma com peças sortidas de Mozart, outra evocativa de Gilbert Bécaud, a abrir com o conhecido “Et maintenant?”, que tantos corações fizera romanticamente palpitar desde 1975. Ainda, naquele espaço limitado da mala, foram recolhidas e devidamente acondicionadas diversas embalagens vazias de um barbitúrico forte, uma garrafa também vazia de “JB” e uma palhinha de refrigerante, como constava do relatório policial. O exame dos documentos contidos na carteira, mantida no bolso interior esquerdo do casaco, com cartões de crédito, alguns cheques por utilizar e uma quantia modesta em notas novas de pequeno valor, confirmou tratar-se, de facto, de António Ferreira Neto, engenheiro mecânico, 47 anos, natural de Sousel e, de acordo com o BI, residente na Amadora. Poucos cartões de visita, de execução esmerada mas de cantos já deformados, repetiam a morada onde hoje sabiam viver uma mamalhuda senhora, demasiado tisnada pelo sol de sucessivas gerações. Nos bolsos pouco mais: uma “bic-cristal” preta, meio consumida, uma lapiseira, duas chaves tipo Yale, o porta-chaves do automóvel, com o respectivo “comando”. Um envelope aberto, sem destinatário, guardava uma carta dactilografada em computador, assinada a esferográfica azul, que o “de cujus” dirigia à sua ex-mulher, comunicando, de forma telegráfica e seca, como de correspondência comercial, a decisão definitiva e reflectida que tomara de por termo à sua vida. Sem invocar qualquer razão, sem revelar qualquer sentimento ou provisão, sem um adeus que fosse, até sem data e sem nome para além do “A minha ex-mulher” que escrevera como primeira linha. Quem primeiro a recebesse, que procurasse a destinatária, num ali surpreendente estilo “toma e embrulha”.
Também na mala do carro, uma pasta de cartolina verde-claro, com abas e elásticos, continha uma colecção de doze desenhos, dobrados como é de uso. Na face exterior, a lápis ténue, podia-se ler a palavra “Almansor”. No banco traseiro, uma outra colecção de desenhos acompanhava meia dúzia de “diário de notícias”, nenhum dos quais posterior a 23 de Março. Os desenhos de ambas as colecções, de evidente natureza técnica, reportavam-se a equipamentos há muito vendidos como sucata, após o desmantelamento de uma instalação química situada a norte de Lisboa, ironicamente epilogada num processo de “recuperação de empresas” em que os bancos credores abriram mais os olhos para o imobiliário afecto à produção que para o prosseguimento da actividade industrial e a manutenção de emprego. Nasceria ali mais uma urbanização! O tema até tivera honras de aparição num noticiário das oito, com trabalhadores idosos por detrás de cartazes, e levara alguns desmancha-prazeres da oposição a ousarem de perguntar, em sessão aberta da câmara, se tão apetitosos terrenos estavam comprovadamente descontaminados para os fins habitacionais a que, com público clamor, eram agora votados. Não deixava de ser curioso que o conjunto de doze desenhos contidos na pasta estivesse totalmente repetido no conjunto do assento traseiro, que, além destes, continha mais cinco diferentes e “desemparelhados”. Outra diferença existia: nos desenhos da pasta alguém desenhara grandes “balões” a marcador vermelho, em torno de certas peças do equipamento fabril, que numerara de #01 a #16, ao passo que todos os desenhos, no outro conjunto, se apresentavam como saídos do aparelho de cópia, sem qualquer marcação aposta.
Longe dali, no outro extremo da cidade, Madalena chegava a casa. Acendeu um cigarro, colocou um CD na aparelhagem Sony que tinha comprado tempos antes para se dar companhia. Sentou-se no sofá, descalçou os sapatos e já tranquila, distendida, olhando o nada no tecto, pensou rapidamente na viagem que, em breve iria fazer e que esperava a conduzisse a secretos objectivos. Gilbert Bécaud, enchendo a sala, repartia o espaço com o fumo que subia do cigarro. “Et maintenant...”.
a) Inspector Moka
NÃO SE ESQUEÇA
Entre os dias 10 e 20 de Dezembro, os cibernautas que queiram participar na criação do Terceiro Capítulo deste Romance Policial devem enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt as suas propostas de texto (com o máximo de 7.000 caracteres).
Mas, atenção, os textos propostos devem enquadrar-se no espírito e história(s) dos Capítulos anteriores, ambos da autoria do Inspector Moka.
PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Foram cinco os “escritores” que apresentaram propostas de textos para o Segundo Capítulo do Romance “
Pão de Canela” (título provisório), a que nos propomos dar corpo no LOCAL DO CRIME através de um processo de escrita colectiva.
Compete-nos agora (a todos nós, sem excepção) apreciar aquelas propostas e optar por uma delas, através de voto directo a enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt, até dia 27 de Novembro, impreterivelmente. Para o efeito basta escrever:
“Voto na Proposta nº. 1 – original de A.Raposo”
ou
“Voto na Proposta nº. 2 – original de Ma(r)ta Hari ”
ou
“Voto na Proposta nº. 3 – original de Inspector Fidalgo”
ou
“Voto na Proposta nº. 4 – original de Dic Roland”
ou
“Voto na Proposta nº. 5 – original de Inspector Moka”
PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Segundo Capítulo
Proposta nº. 1 – original de A.Raposo
O carro rodava veloz pela planície alentejana.
A primeira paragem seria Faro, onde já tinham marcado hotel. Entre António e Madalena reinava ainda uma certa frieza. Toda a intimidade não passara ainda de um vulgar aperto de mão, mas já de certo modo prolongado. E era imperativo algum avanço na intimidade porque se esperava que ambos dormissem no mesmo quarto em Faro.
A meio do percurso resolveram fazer uma paragem para uma bica e respectivo estender de pernas. Eventualmente um chichizinho que sempre aparece no meio destas coisas. O corpo obriga.
Já no hotel, na recepção, Madalena insistiu em camas separadas.
António foi o primeiro a concordar apressadamente. Sabia que tinha que avançar por etapas. Começou por regar o jantar com um saboroso e deslizante “rosé” da região de insuspeita graduação alcoólica: 12,5% vol.
A receita de António resultava sempre.
Madalena quando regressava ao quarto já passava da meia noite, depois da passagem pela boîte do hotel, vinha meio anestesiada.
A maresia da Marina, a lua cheia e a ausência de macho desde um derriço na Amadora, com um comando, nos anos 90, levou Madalena a entregar os pontos.
António sempre muito correcto, provou e gostou. Madalena também não ficou arrependida.
Adormeceram ambos nus, apesar do tempo fresco de Maio. No Algarve, sempre as noites são menos frias, sobretudo se forem passadas a dois.
No dia seguinte era preciso rumar a Málaga e havia muitos quilómetros pela frente.
O Volkswagen Golf de António, apesar de alguns anitos, estava afinado e respondia bem. Sempre apostara nas revisões na altura indicadas. Isso estava provado, dava uma certa confiança.
Madalena por seu lado não era muito interessada em mecânica. Tirara a carta, mas raramente conduzia.
Sentia-se outra com aquela viagem. Como se cortasse as amarras consigo própria e desejasse fazer todas as loucuras que o coração ordenasse.
Logo cedinho prepararam-se para a partida lamentando-se ambos de não haver naquele hotel, apesar das várias estrelas, os seus preferidos “bretzel” e mesmo os croissants eram de pacote, não prestavam.
Limitaram-se a café com leite e torradas precedido de um sumo de laranja, mas daqueles que são um milagre da química e nunca cheiraram qualquer pé de laranjeira. São os custos das multinacionais dos sumos.
Já na estrada, a viagem continuou, através da planície andaluza. O cheiro a azeite começava a sentir-se forte. Cerrados olivais seguiam a estrada a perder de vista. O tempo estava excelente para aquela época do ano.
Pela janela semiaberta do carro entrava uma brisa fresca, agradável, que ia desatando o torpor da noite; miríades de oliveiras alinhadinhas como soldados em formatura enchiam todo o horizonte, para onde quer que se olhasse. E esse espectáculo monótono, levava a que os pensamentos de Manuela vogassem por outros caminhos, fixando-se na sua relação com o companheiro de viagem e aventura. Para ela, António não era bonito. Nada do boneco galã de cinema. Mas sempre ouvira dizer que a maioria desses galãs era mais apreciada por homens... Só os “gays” gostam de homens bonitos, desculpou-se. Lembrou-se de uma passagem de um dos livros de Margarida Rebelo Pinto, que ela lia no intervalo de cada Camillo ou Eça. Não lhe passava pela cabeça informar António dessas leituras. Sabia que a literatura dela era descafeínada. Não enchia nem vazava, mas ajudava a sonhar. Era uma espécie de comprimido para as dores de cabeça. Reconhecia que era uma literatura fútil, mas, o que tinha sido a sua vida?
Lembrou-se que António – que seguia atento ao volante – lhe sugerira os “cus de Judas” para começar a digerir o Lobo Antunes, mas arranjou uma forma simpática de rejeitar porque o Lobo Antunes era dose para cavalo! Além disso, parecia uma morgue ambulante. Tinha lido as primeiras cinquenta páginas de um dos seus últimos que lhe emprestaram e desistiu. Não se lembrava nem do título. Era muito mórbido e pesadão.
Eram livros só para pensar.
- Vamos parar na próxima bomba de gasolina, já não tenho tabaco - Exclamou António como se falasse consigo próprio. Madalena fez um hum..hum, afirmativo. Ela própria já estava com sede. O suor da refrega da noite anterior tinha como resultado uma perda de líquidos, recordou ela e deixou ficar um leve sorriso malandro ao canto da boca.
A.Raposo
PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Segundo Capítulo
Proposta nº. 2 – original de Ma(r)ta Hari
O velho e raquítico rafeiro interrompeu a feroz perseguição movida ao irritante persa da menina
Lili e deteve-se a farejar o barbudo e esquelético homem que acabara de entrar na pastelaria. Rua, fora daqui cachorro!, gritou com um leve sotaque brasileiro a menina
Lili ao
fiel inimigo do seu amado gato, que tentava entrar no estabelecimento
agarrado às canelas daquele estranho e andrajoso homem.
Boby, nome comum à esmagadora maioria dos cães vadios que proliferam pelos bairros populares da velha Lisboa, deu meia volta sobre si mesmo, meteu a cauda entre as patas e ficou quedo e mudo junto à porta da pastelaria.
Um
bretzel e meia de leite, pediu o homem, enquanto se sentava a uma das mesas e deitava um olhar furtivo sobre o jornal de uma cliente da mesa ao lado: “Casal desaparecido há cinco meses continua sem dar sinais de vida”, lia-se num dos títulos que faziam a manchete do
Público. O estranho homem passou a mão pela barba, ajeitou a sua farta cabeleira desgrenhada, esboçou um breve sorriso sem cor e ali ficou apático-pensativo enquanto a meia de leite ia arrefecendo.
A mulher que lia o
Público, uma cliente de ocasião, residente de uma casa próxima da pastelaria, levantou os olhos do matutino, olhou em volta, pediu mais uma
bica e disse para quem a quisesse ouvir: Há coisas do diabo. Eu juro que conheço este homem, aqui do casal desaparecido, mas não sei de onde. A foto é pequena e tem pouca definição, mas tenho a certeza que vi a cara dele há não muito tempo. A empregada brasileira,
Lili, que lhe trazia o café, sorriu: Claro que é capaz de o conhecer, mas de certeza que não o vê há pelo menos três semanas. Ele vinha aqui quase todos os dias à pastelaria. Ela também. Coitados. Só Deus sabe por onde andarão e o que será feito deles.
Não, não, disse com firmeza a mulher do jornal. Eu viu-o e não foi de certeza há muito tempo. Até parece que o estou a ver neste momento, imagine. O homem ficou inquieto, baixou ligeiramente a cabeça e tomou a sua meia de leite quase de um gole. Pegou no que restava do
bretzel, deixou algumas moedas em cima da mesa e encaminhou-se para a porta.
Boby abanou a cauda de contentamento, olhou mais uma vez de soslaio com raiva e desdém para o gato persa, deu passagem ao homem e seguiu os seus pesados mas decididos passos, encosta acima, pé ante pata, até ao vizinho e verdejante jardim do Príncipe Real.
O estranho e andrajoso homem parou junto da banca dos jornais, comprou o
Público e sentou-se num dos bancos do jardim a lê-lo: “Madalena Martins, 25 anos, solteira, e António Rosa, 30 anos, casado, dois filhos, continuam desaparecidos há perto de três semanas. Admite-se que tenham viajado juntos com destino à cidade de Capri, onde supostamente não chegaram. Os seus últimos contactos para as respectivas famílias foram feitos a partir de Castellón, através do mesmo telefone público. Madalena é uma promissora estilista portuguesa e há muito que aguarda uma oportunidade para exibir as suas criações na capital europeia da moda. António Rosa é solicitador numa reputada sociedade de advogados, com sede em Lisboa, e um dos mais conceituados e bem apetrechados coleccionadores de numismática e de filatelia em Portugal“.
O homem deixou transparecer uma centelha de orgulho no seu rosto coberto de descuidadas barbas de vários dias e nos seus profundos olhos marcados por tristezas e mágoas insondáveis, fez pela primeira vez uma carinhosa festa no rafeiro
boby, que assentou arraiais aos seus pés sem o abandonar por um instante que fosse, e mergulhou novamente todos os seus sentidos no jornal: “A polícia parece acreditar que os desaparecidos estão incontactáveis por vontade própria e recusa-se a dar crédito às teorias que remetem o caso para um eventual crime de homicídio ou sequestro, rejeitando igualmente a possibilidade de um acidente mortal, o que, em qualquer destas três hipóteses, deixaria inconsoláveis duas inocentes crianças que, há perto de três semanas, todas as noites rezam abraçadas à fotografia do pai pedindo a Deus que ele volte”.
O homem enxugou com a manga do seu sujo e esfarrapado casaco uma atrevida lágrima, que resolveu marcar presença sem que tivesse sido convidada ou sequer mesmo desejada, levantou-se de um só movimento brusco e dirigiu-se à cabine de telefone pública.... Nove dígitos marcados sem deitar um único olhar para as teclas, um “olá, meu querido, como estás?” e uma voz gritada num sufoco de quem sempre acreditou naquele momento. Pai! És tu, pai?! Mãe. Mana. O pai voltou!!!..., ouviu-se do outro lado da
linha.
O que se passou de seguida já se adivinha. O homem arremessou o jornal para o cesto de papéis, despiu o casaco, arregaçou as mangas da camisa e correu para o 58 da Carris que o levaria até às Portas de Benfica. Por sua vez,
boby ladrou quase num choro, ensaiou latidos nunca antes emitidos, abanou de tal forma violentamente a cauda que se magoou no traseiro, rodopiou em volta de si como uma
velha e
tonta bailarina embriagada e pulou, pulou, pulou e ladrou como se pudesse ou quisesse dizer: O António Rosa voltou! O António Rosa voltou!
E a Madalena? O que é feito dela? O que lhe terá acontecido nas últimas três semanas, a ela e ao seu companheiro de viagem? – pergunta-se. Mas isso agora, para o
boby, interessa muito pouco. E lá foi ele, mais uma vez, fazer a
vida negra ao gato persa da menina
lili da pastelaria.
Ma(r)ta Hari
PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Segundo Capítulo
Proposta nº. 3 – original de Inspector Fidalgo
Pelo menos era o que parecia quando alguém pediu um “bretzel” com meia de leite.
António Rosa, bons olhos o vejam por cá, de novo! Como diz? Não entendo. É António Rosa, não é verdade? Não, sou italiano, chamam-me Toni, é certo, mas não o conheço, é a primeira vez que aqui venho... E fala português? Estudo português em Itália...
Não acreditaram nele. Era óbvio que estava a brincar e mais ainda quando pela porta da confeitaria entrou uma moça que pediu um “croissant” com pouca manteiga e um chá verde. Tinha de ser a Manuela Madalena.
A história repetiu-se com saudações efusivas e respostas evasivas...
Que não, chamava-se Madalena, é certo, mas nunca tinha ali estado antes.
Todos os que entravam brincavam com eles e recebiam em troca olhares cada vez mais assustados e confusos.
Não estavam a ver bem, Toni e Madalena viviam em Capri, conheceram-se no café do Hotel La Scalinatella, onde ele sempre tomava o seu “bretzel” com meia de leite, enquanto lia o “Corriere Della Sera” e ela um “croissant” com pouca manteiga e chá verde enquanto desfolhava o “La Stampa”.
Um dia, tudo se precipitou. De conversa em conversa falaram de Fernando Pessoa e descobriram que ambos tinham os mesmos gostos, frequentavam as aulas de português e que aquilo que mais queriam era vir a Portugal.
Toni, com um casamento a dar as últimas e filhos que ajudavam a que saísse bem cedo de casa e a ela regressasse bem tarde, adiantou que podia inventar uma das suas viagens de trabalho a Espanha, aí por duas semanas. Madalena só tinha uma familiar afastada a quem nem devia explicações.
Foi o carro de Toni o escolhido, algum dinheiro preparado e partiram rumo a Lisboa, à cidade do Pessoa, queriam ver tudo e mais alguma coisa: onde nasceu, onde morreu, por onde parava, o Martinho e tomar um café com ele no Chiado.
De volta em volta, acabaram por parar na confeitaria da Praça da Flores. Ele foi entrando enquanto Madalena foi ao Banco tirar uns euros.
Ai isto é caso de polícia, é de certeza! Pode lá ser uma coisa assim, gémeos de cada um a falar quase português, igualzinhos aos outros?
A mãe dos filhos de Toni foi chamada e por entre ditos e respostas alertou o agente, que entretanto meteu o nariz pela porta para ver a razão de tal agitação, para um sinal que o António Rosa tinha num sítio que lhe segredou ao ouvido. O agente saiu triunfante da casa de banho. A marca está lá! Não pode ser, nunca andei por aqui. Mas está!
A prima da Madalena não apareceu, era afastada, mas pelo telefone contou um segredo íntimo em forma de cicatriz. A dona da confeitaria exultou de excitação. Vamos lá ver isso... Olé, se é! É mesmo a nossa Madalena! Não pode ser, é a primeira vez que aqui vimos, somos de Capri, conhecemo-nos por lá e resolvemos cumprir o desejo de visitar Pessoa, mais nada.
Que mostrassem o carro, sentenciou o agente da polícia, cada vez mais satisfeito consigo mesmo. O Mercedes é o do António, sem tirar nem pôr, a matrícula é italiana, mas o carro é o mesmo, até no toque do lado direito, quando bateu no poste da luz. Belíssimo que até o motor tem o mesmo número como acabaram de me informar pelo rádio. Agora, senhor Rosa e menina Madalena, querem deixar-se de brincadeiras.
Três semanas se passaram até que, em Capri, na Via Marina Piccola, um telefone tocou, atendido por uma criança. Mãe, é o pai, mas está a falar de um modo esquisito. Deixa, filho, devem ser os ares de Espanha que lhe andam a dar a volta ao miolo... Querida, estou em dificuldades, sabes, em Lisboa... Em Lisboa? Não ias para Espanha? Sim, mas houve algo que não correu bem e estou em grandes dificuldades. Grandes, como? Muito, muito grandes, sou acusado de um crime que não cometi, entendes? Estás onde? Numa esquadra da polícia em Lisboa, fala ao Lucas para ver o que ele pode fazer. Estás sozinho? Bem, estou com uma moça, Madalena, mas não é nada do que estás a pensar... Estão a tocar a campainha da porta, vou abrir, já volto...
Cheguei!... Toni, estavas a gozar comigo, afinal estavas aqui e eu, parva, a julgar-te em apuros... Estúpida vida a minha e deixa-te de falar português, ou lá o que é! Luigi, desliga o telefone que o teu pai afinal está aqui! Está bem, mamã... Mas, mamã, a voz do pai continua ao telefone...
Inspector Fidalgo
PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Segundo Capítulo
Proposta nº. 4 – original de Dic Roland
Madalena chegara, de facto, ao aeroporto da Portela, num cinzento e chuvoso fim de tarde. Era o Dia do Trabalhador, feriado que muitos aproveitam para não trabalhar... Talvez por isso, Madalena precisou de hora e meia para tomar um taxi, já debaixo de chuva.
Ansiosa por chegar a casa, pôs de parte a ideia de contactar nessa noite com amigos e vizinhos. Decerto a convidariam para jantar ou iriam mais tarde, a saber novidades; e, na verdade, preferia não falar do seu regresso e das circunstâncias que o determinaram.
Uma chamada, porém, era inevitável. “
Cheguei bem. Óptima viagem, apesar do mau tempo. Espero as tuas notícias.”
Madalena, recostada à cabeceira da cama, manteve-se por minutos naquela posição, olhos semicerrados, o telemóvel sobre o peito. Depois, molemente, ajeitou-se melhor ao longo do edredom, tirou os sapatos com um leve toque nos pés, estendeu o braço para a mesa de cabeceira e, tacteando e premindo o interruptor, desligou o candeeiro.
Dispunha-se a “passar pelas brasas”, meia hora que fosse.
Pela janela, de persianas descidas mas não completamente cerradas, coava-se a luz forte da rua, projectando um tracejado brilhante na parede fronteira.
Numa curiosa associação de ideias, Madalena via, em cada um desses traços, a luminosa evocação dos bons momentos passados com António, desde o trambolhão do Malaparte no café da Praça das Flores. Abençoado “encosto” da empregada brasileira, para quem trazia, em jeito de secreta recompensa, uma lembrança de viagem...
Depois disso, os encontros da manhã, numa única mesa, passaram a ser habituais, proporcionando uma tácita cumplicidade entre o “bretzel” e o “croissant” (o primeiro, muito senhor da sua origem anglo-saxónica e retorcido sobre si mesmo numa elegante espiral de massa folhada; o segundo, de estirpe francesa, voluptuosamente enrolado nas suas curvilíneas protuberâncias, em forma de crescente lunar).
Por fim, a viagem e as suas peripécias!... E naquele traço da primeira fila, com um brilho mais vivo, mais ofuscante, não pôde Madalena deixar de reconhecer a muito previsível “surpresa” da primeira noite em Vila Moura.
O sono tardava, porventura afugentado pela voz de António, ainda a ecoar nos ouvidos de Madalena: “
Que pena, querida, que não tenha sido possível continuares comigo, aqui em Madrid!...”
Em Madrid?
Sim, Madrid! Porque, à revelia do planeamento inicial, o programa acabou por sofrer uma profunda alteração.
A visita a Capri, sugerida por Malaparte, teve de ser adiada por inesperados contratempos.
Para começar, uma pequena avaria obrigou a morosa retenção do automóvel numa oficina de Castellon ... Mas António, optimista por natureza, encontrou uma rápida solução para o assunto e decidiu compensar a forçada interrupção com cinco dias em Ibiza!
Madalena aprovou a ideia e até fez um jocoso comentário: “Já devias saber, querido António, que não há Rosa sem espinhos!...”
Em suma: é fácil concluir que os dois turistas estão a viver
no melhor dos mundos possíveis, como diria o famoso Pangloss.
E o que, de começo, foi apenas uma tímida aproximação entre um “bretzel” e um “croissant”, passou a ser uma ousada atracção entre o leitor do “Notícias” e a leitora do “Público”!
Mas acrescente-se que o grande responsável por esta convergência, agora revelada sem complexos, não foi o “bretzel” ou o “croissant” e, menos ainda, o “Notícias” ou o “Público”. Foi, sim, o romancista Curzio Malaparte, autor do livro apanhado do chão.
À gentileza do jurista não ficou indiferente a gentil criadora de alta costura. As ideias que recolhia do jornal para eventuais criações de novos modelos, passaram naquela altura para segundo plano.
Malaparte era um tema em que se sentia perfeitamente à-vontade e no qual, fiel à sua arte, não dava ponto sem nó... Tema que oferecia, além do mais, duas inesperadas vantagens: era mais interessante do que as pregas e decotes de um vestido; e fora trazido à colação por aquele habitual frequentador do café, simpático, boa figura e cortês.
Colocada perante a pergunta “Lê Malaparte?” – feita, ao que parece, à boa maneira de La Palisse, pois era notório que o título da obra não sugeria Proust ou Descartes – respondeu Madalena com a mesma impressionante precisão: “Leio.”
A partir desse momento o diálogo subiu de nível, descendo simultaneamente a pequenos pormenores da casa do escritor, em Capri.
O sono, esse, continuava ausente...
As recordações persistiam na mente bem desperta de Madalena; e não eram espontâneas, isto é, não surgiam bruscamente, sem apelo, mas sim voluntárias, porque expressamente chamadas ao seu espírito.
Era, por assim dizer, um recenseamento mental dos pontos altos da viagem. E tantos eram, que a ida a Capri deixou de figurar no rol dos mais atractivos e urgentes.
“De resto” - argumentava António Rosa, – “mesmo sem Malaparte, e se tivéssemos que planear viagens somente em função de leituras, eu sei de outro autor que lá nos levará, numa próxima oportunidade...”
“Também eu” – atalhou Madalena – “Axel Munthe; O Livro de Sam Michele!”
“Bravo! Esse mesmo!” – e riram ambos, felizes por coincidirem nas suas preferências literárias.
A ideia de Capri surgira, como se viu, da leitura de Malaparte.
Mas o homem põe e Deus dispõe... No hotel de Ibiza António encontrou um velho amigo, emigrado em Espanha, que há muitos anos não via. E no decorrer do primeiro jantar em comum, a conversa incidiu sobre “Jubiabá”, cuja leitura José Gomes (o nome do amigo) concluíra nessa tarde. Se bem que conhecessem Jorge Amado, António e Madalena confessaram não ter lido essa obra. Tanto bastou para que o colega insistisse em oferecer-lhes o livro, como recordação daquele encontro.
E assim foi que, da leitura iniciada no aconchego do sumaúma e do inevitável “tête-à-tête” (para não dizer “à-bras-le-corps”, que mais fielmente corresponde à realidade), ficou assente uma próxima viagem ao Nordeste brasileiro!
Só que, sem se dar conta do problema que iria suscitar, José Gomes falou, num telefonema para familiares de Lisboa, no inesperado encontro com António!... A notícia foi comentada, ao jantar, na presença de uma convidada, por infeliz coincidência também amiga do casal Rosa!!!
Na manhã seguinte (estavam já no quarto dia de férias), António recebeu um telefonema-bomba: sua mulher acabara de saber que ele se encontrava em Ibiza, e resolvera ir ter com ele!...
António teve o sangue-frio suficiente para iludir a situação (o telemóvel tem as suas vantagens...): fora a Ibiza, de facto, para um contacto indispensável, mas já se encontrava em Madrid....
Sua mulher, porém, insistiu na viagem! O relacionamento mútuo era precário e justificava a desconfiança..
António e Madalena só tiveram tempo para fechar as malas e partir, com a brevidade possível, para Castellon e Madrid. Madalena ficou no aeroporto internacional e António correu a instalar-se num hotel da Gran Via.
Dic Roland
PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Segundo Capítulo
Proposta nº. 5 – original de Inspector Moka
A Páscoa, em 2002, foi a 31 de Março e, piada velha, calhou ao domingo. Com ela a costumeira febre de consumo, o exodo das cidades, a nacional hecatombe nas estradas. O ano trazia o ónus dum popular provérbio, lembrando que “Páscoa em Março ou é fome ou é mortaço”, mas nem pela lembrança desse ditado, por muito que a festa se escondesse no último dia do mês, nem pelas tolerâncias de ponto concedidas para segunda-feira de manhã, iriam estas jornadas acolher acrescida prudência.
A leste da cidade, num dos arruamentos ainda sem termo definido da zona já órfã da Expo 98 e agora em progressiva ocupação urbana, a norte da via férrea, o Rover 414 verde e sujo permanecia solitário, com a legenda “Trata 977 081 006” em cartolina branca, encostada e presa à superfície interna do vidro lateral, do lado do condutor, por uma simples etiqueta de correio-azul. No banco traseiro, desenhos e jornais dobrados. O fim de semana prolongado interrompera a actividade babélica da construção civil e esvaziara muitas das instalações comerciais próximas – evitando assim que nenhum abelhudo viesse questionar a estranha presença daquele carro. Aliás, como depois se comprovou, ninguém sabia exactamente “desde quando”, embora alguns arriscassem que já o teriam visto ali uma ou duas manhãs antes da desmobilização civil iniciada na quinta-feira santa. Certo é que, passada a “ponte”, tal permanência iria ainda manter-se escassos dias, até que o estroncamento maldoso dum retrovisor lateral, o crescente questionar na vizinhança quanto à origem e propriedade do automóvel, a hipótese de que fora roubado e que, como tal, poderia beneficiar eventuais alvissareiros, tudo cumulado com a crescente fedorina que dele se exalava, contribuíram para que, finalmente, fosse comunicada à PSP a enigmática ocorrência..
Não, não havia qualquer participação de roubo relacionada com aquele veículo, registado em nome de um António Ferreira Neto, com morada na Amadora. Sem telefone na lista. Uma tentativa de contacto no endereço indicado iria assustar uma rotunda mãe de família cabo-verdiana quando tranquilamente preparava o jantar. Corroborada em tudo pelos vizinhos, afirmou ali morar há mais de dois meses, ter “alugado” a casa em agência que indicou, e mais declarou, com o nervosismo que lhe causavam fardas, que não conhecia nem queria conhecer qualquer anterior morador da “sua casa”, fosse ou não fosse Neto ou avô. No prédio, de dois andares e seis fogos, dois ou três vizinhos recordavam-se do locatário do 2º direito, que tivera passagem efémera, de pouco mais que meio-ano, e que não viam desde que se fora embora, à cerca de uns três meses. Entrava e saía a desoras e era ou dizia-se engenheiro. Vivia só, sem familiares, sem qualquer bicharada conhecida, mas às vezes entrava-lhe em casa uma moça muito mais nova, desenvolta, que passava lá a noite e que aguçava a curiosidade (e certamente o apetite) do pessoal masculino local, levantava sérias reservas ao mulherame e a quem, jurariam, o engenheiro chamara algumas vezes de Madalena. Pois! (interjeição acompanhada de um piscar de olhos). O homem, esse tinha de facto um carro verde que, pela descrição, não destoava do tal Rover abandonado. Em conversa ocasional e rara, queixara-se da dificuldade de conseguir rapidamente um telefone fixo. Relativamente novo, pendia já para uma meia-idade que a calvície nascente denunciava. Era muito educado, apesar do cheiro a charuto que por vezes inundava a caixa da escada e, mais raramente, do ruído duma “música séria”, que ficava a tocar um pouco alto. Deixara o andar bastante sujo, com jornais e revistas empilhados e com alguns tarecos que nunca mais veio reclamar e que acabaram, quase todos, junto ao mais próximo contentor do lixo.
A persistência do cheirete, cada vez mais pútrido, e a inoperância das diligências empreendidas acabaram por levar a polícia a abrir as portas da viatura -- o que tornou o ambiente próximo simplesmente insuportável. Levantada a tampa da mala, logo descobriram a causa. Vestido de forma convencional, parcialmente coberto com uma manta de viagem e deitado em posição fetal, o cadáver tinha ainda postos os auscultadores ligeiros e de boa marca que se ligavam a um leitor portátil de CD’s. Introduzido neste, o disco com quatro “Concerti Grossi” do Opus 6 de Haendel deixara há muito de se ouvir e de ser ouvido. A respectiva caixa juntava-se a outras duas, uma com peças sortidas de Mozart, outra evocativa de Gilbert Bécaud, a abrir com o conhecido “Et maintenant?”, que tantos corações fizera romanticamente palpitar desde 1975. Ainda, naquele espaço limitado da mala, foram recolhidas e devidamente acondicionadas diversas embalagens vazias de um barbitúrico forte, uma garrafa também vazia de “JB” e uma palhinha de refrigerante, como constava do relatório policial. O exame dos documentos contidos na carteira, mantida no bolso interior esquerdo do casaco, com cartões de crédito, alguns cheques por utilizar e uma quantia modesta em notas novas de pequeno valor, confirmou tratar-se, de facto, de António Ferreira Neto, engenheiro mecânico, 47 anos, natural de Sousel e, de acordo com o BI, residente na Amadora. Poucos cartões de visita, de execução esmerada mas de cantos já deformados, repetiam a morada onde hoje sabiam viver uma mamalhuda senhora, demasiado tisnada pelo sol de sucessivas gerações. Nos bolsos pouco mais: uma “bic-cristal” preta, meio consumida, uma lapiseira, duas chaves tipo Yale, o porta-chaves do automóvel, com o respectivo “comando”. Um envelope aberto, sem destinatário, guardava uma carta dactilografada em computador, assinada a esferográfica azul, que o “de cujus” dirigia à sua ex-mulher, comunicando, de forma telegráfica e seca, como de correspondência comercial, a decisão definitiva e reflectida que tomara de por termo à sua vida. Sem invocar qualquer razão, sem revelar qualquer sentimento ou provisão, sem um adeus que fosse, até sem data e sem nome para além do “A minha ex-mulher” que escrevera como primeira linha. Quem primeiro a recebesse, que procurasse a destinatária, num ali surpreendente estilo “toma e embrulha”.
Também na mala do carro, uma pasta de cartolina verde-claro, com abas e elásticos, continha uma colecção de doze desenhos, dobrados como é de uso. Na face exterior, a lápis ténue, podia-se ler a palavra “Almansor”. No banco traseiro, uma outra colecção de desenhos acompanhava meia dúzia de “diário de notícias”, nenhum dos quais posterior a 23 de Março. Os desenhos de ambas as colecções, de evidente natureza técnica, reportavam-se a equipamentos há muito vendidos como sucata, após o desmantelamento de uma instalação química situada a norte de Lisboa, ironicamente epilogada num processo de “recuperação de empresas” em que os bancos credores abriram mais os olhos para o imobiliário afecto à produção que para o prosseguimento da actividade industrial e a manutenção de emprego. Nasceria ali mais uma urbanização! O tema até tivera honras de aparição num noticiário das oito, com trabalhadores idosos por detrás de cartazes, e levara alguns desmancha-prazeres da oposição a ousarem de perguntar, em sessão aberta da câmara, se tão apetitosos terrenos estavam comprovadamente descontaminados para os fins habitacionais a que, com público clamor, eram agora votados. Não deixava de ser curioso que o conjunto de doze desenhos contidos na pasta estivesse totalmente repetido no conjunto do assento traseiro, que, além destes, continha mais cinco diferentes e “desemparelhados”. Outra diferença existia: nos desenhos da pasta alguém desenhara grandes “balões” a marcador vermelho, em torno de certas peças do equipamento fabril, que numerara de #01 a #16, ao passo que todos os desenhos, no outro conjunto, se apresentavam como saídos do aparelho de cópia, sem qualquer marcação aposta.
Longe dali, no outro extremo da cidade, Madalena chegava a casa. Acendeu um cigarro, colocou um CD na aparelhagem Sony que tinha comprado tempos antes para se dar companhia. Sentou-se no sofá, descalçou os sapatos e já tranquila, distendida, olhando o nada no tecto, pensou rapidamente na viagem que, em breve iria fazer e que esperava a conduzisse a secretos objectivos. Gilbert Bécaud, enchendo a sala, repartia o espaço com o fumo que subia do cigarro. “Et maintenant...”.
Inspector Moka