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domingo, dezembro 28, 2003
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Apesar da quadra natalícia, que afastou grande parte dos habituais “visitantes” do LOCAL DO CRIME das suas residências e das suas “ferramentas” cibernéticas, foram dez os confrades que não quiseram deixar de participar na votação das propostas de textos apresentadas para o Terceiro Capítulo do Romance Policial a que nos propomos dar corpo: Inspectora Marcelis, Carlos Estegano, A.Raposo, Inspector Moka, Inspector Fidalgo, Rip Kirby, Inspector Huga Booga, Daniel Falcão, Gisa e Dr.Gismondo.
A “batalha” eleitoral desta vez foi muito renhida, tendo-se registado um empate a 4 (quatro) votos entre as propostas apresentadas pelo Detective Oculams e pelo Inspector Moka.
Dando cumprimento ao disposto no ponto 4 do regulamento do Passatempo de Escrita Policial, o confrade Smaluco foi chamado a desempatar, tendo este optado por escolher o texto da autoria do Inspector Moka.
Portanto, neste momento vamos assim:

PÃO DE CANELA (título provisório)
Primeiro Capítulo


Todos os dias úteis de todas as semanas, desde há mais de um ano, vinham a mirar-se longamente ao pequeno almoço. Ele escolhia invariavelmente um “bretzel” que acompanhava com meia de leite, ela pedia um “croissant” com manteiga, com pouca manteiga, insistia, e um chá verde. Não se falavam. Não se cumprimentavam sequer. Ele abria o “Notícias”, ela lia o “Público”. Lá fora, na Praça das Flores, espaço verde na lisboeta encosta entre o Príncipe Real e S.Bento, sucediam-se as estações, as ramagens, as iluminações de Natal, as festas populares em Junho, os nevoeiros de Novembro e de Fevereiro. Os lugares que escolhiam na característica sala eram, também, quase sempre os mesmos – apenas alterados quando alguém chegava mais cedo e lhes trocava as voltas. Dir-se-ia que se evitavam.

Um dia, a casualidade aproximou-os. A fartura de sucursais bancárias, em esquinas fronteiras, tornou-se subitamente fome, quando ambos os estabelecimentos caíram nos braços de patrões que os fecharam, que “reestruturaram” o respectivo pessoal e, sobretudo, que levaram consigo as hoje imprescindíveis caixas atm. Os comerciantes e moradores da área lamentaram-se, fizeram listas de assinaturas, escreveram para os jornais, colaram papelinhos nos troncos onde antes se anunciava, em fotocópias mal tiradas, que havia uma sessão de fado vadio em pleno Bairro Alto ou que o "Boby" se pirara dos carinhos da dona, arrebatado pelos odores caninamente irresistíveis duma fêmea em cio. António Rosa, com a pasta cansada em que guardava os processos que estudara ao serão, tendo de ir a S.Bento para se abastecer de algumas notitas das novas, cheias de europas, pontes e estilos, chegou ali mais tarde que o costume, mal disfarçando o desagrado de encontrar na sua habitual mesa um casalinho em aparente fim de noite e, pelo ar já derreado que ambos mostravam, em pouco promissor início de manhã. Madalena olhava o jornal e anotava, em folhas A4 dobradas em caderno, algumas ideias soltas, que poderiam influir na criação de um novo vestido para um outro outono que ainda vinha longe. Ficaram próximos. Suficientemente próximos para António apanhar o volume do “Kaputt” que, mal pousado na convexidade do assento da cadeira à direita de Madalena, não escapara ao movimento da empregada brasileira, apressada a trazer o habitual “bretzel” para o não menos habitual cliente.

Lê Malaparte, perguntou ele. Leio, respondeu ela. Eu também...mas agora que Malaparte caiu em desuso, vendendo-se em saldo em qualquer supermercado... Eu também sei, cortou Madalena, mas gosto da forma como consegue descrever o que viu e o que talvez não tenha visto, segundo muitos... Falaram sumariamente do autor e da obra. António prometeu-lhe trazer alguns outros livros da sua biblioteca. Madalena agradeceu. No decorrer do tempo, que passava para além do normal e que deixara os jornais abertos esquecidos, António questionou: E, já agora, conhece a casa de Malaparte em Capri? A casa que ele construiu nas arribas do Cabo Masullo e que baptizou de “Casa como eu”? Não, não conheço... Sabe, eu também não, a não ser em fotografia. Mas de há muito eu sonho poder visitá-la. Só que não encontro quem queira ir lá comigo! Não sei porquê, lançou ela surpreendida com a inesperada ocorrência de tal degelo em manhã de Outono ainda quente, se alguém me convidasse eu não desprezaria uma oportunidade de ir a Capri, com casa de Malaparte ou sem ela! Quer então vir daí? Isso é um convite? É uma sugestão! E por que não...é coisa a pensar!

E o diálogo daquela manhã passou a ser a regra. O “bretzel” iria irmanar o “croissant”, nas mesmas manhãs, no mesmo prato, começando até a cutucarem-se bem cedo, em até então inéditas manhãs de sábado. Lá fora, no rito de todos os anos, as árvores despiram-se e as gotas de chuva perlaram os ramos, marcando os tempos litúrgicos que vão do nascimento do menino à morte do homem. Decidida a utilização da viatura de António, iam montando cuidadosamente a viagem, cujos meandros desenhavam com o apoio de mapas, de itinerários colhidos no “local” www.michelin.com e de um sonho que passara a ser conjunto, expresso nas mãos que se iam gradualmente tocando.

Saíram de carro, duas semanas depois da páscoa. Tinham acordado dizer o mínimo a amigos e conhecidos. Tinham também acordado, apesar da menor experiência de Madalena, em revezar-se ao volante. No escritório, António distribuiu processos, assinou substabelecimentos, deu instruções suficientes para que os colegas pudessem assegurar o expediente da próxima quinzena. No “atelier”, Madalena deixou igualmente instruções. Em casa, à mulher e aos filhos, António sugeriu uma viagem de serviço, que o levaria a França por duas semanas. Madalena, tirando uma prima distante que estava colocada no Politécnico de Setúbal e que equilibrava o preço do alojamento em Troino com um meio-tempo prestado numa seguradora, não tinha mais família a quem deixar recados.

Dois levantamentos de dinheiro, feitos em Faro, foram os últimos sinais por ambos deixados em terras portuguesas. Previdente, António movimentara antes da partida alguns fundos, incluindo reforços que transferira para a conta conjunta e que destinava a prevenir despesas domésticas extraordinárias, como habitualmente fazia quando das suas deslocações. Madalena deixara na míngua as suas duas contas. De acordo com instruções transmitidas a alguns escritórios com quem mantinha relações e tendo em conta aquele confuso período de troca de moedas, António tinha previsto a possibilidade de levantar dinheiro em Castellón, Sète e Ventimiglia. Bastante dinheiro até. Madalena incumbira-se de, sem avançar grandes detalhes, cobrar, em Barcelona, uma dívida de uma cliente catalã do “atelier”, proporcionando-se assim a disposição de um razoável montante de pesetas. Provar-se-ia mais tarde que o levantamento em Castellón teve lugar, como previsto, mas nem em Sète, nem em Ventimiglia, nem em Barcelona tinha sido reclamado qualquer montante. Não houve mais levantamentos, cobrança ou notícias. Na confeitaria da Praça das Flores prolongava-se a ausência de ambos, enquanto a Primavera se ia resolvendo nas últimas chuvas, enxota-pombos precedendo a aproximação de um Verão que se adivinhava quente.

As duas semanas tinham-se completado, sem novas nem mandados. Na segunda feira seguinte, a mulher de António telefonou para o escritório, a saber de notícias. Conhecia-se de há muito o laconismo entre ambos, o que justificou o “devem estar a acabar-lhe as massas e por isso se lembra dele!”, com que o dr.Aurélio comentou o facto, enquanto afiava meticulosamente o lápis com que teimava em anotar as minutas e que não trocava por qualquer lapiseira, por muito AG Spalding que fosse. Aliás, no escritório, nada tinham de mais para dizer. Dias depois, era do “atelier” de Madalena que procuravam a trabalhadora-estudante, para desta saber se tinha recebido qualquer mensagem da prima... Negativo, também!

À terceira semana houve notícias. Alguém voltou. Mas apenas um dos que tinham partido.

a) Inspector Moka


Segundo Capítulo

A Páscoa, em 2002, foi a 31 de Março e, piada velha, calhou ao domingo. Com ela a costumeira febre de consumo, o exodo das cidades, a nacional hecatombe nas estradas. O ano trazia o ónus dum popular provérbio, lembrando que “Páscoa em Março ou é fome ou é mortaço”, mas nem pela lembrança desse ditado, por muito que a festa se escondesse no último dia do mês, nem pelas tolerâncias de ponto concedidas para segunda-feira de manhã, iriam estas jornadas acolher acrescida prudência.

A leste da cidade, num dos arruamentos ainda sem termo definido da zona já órfã da Expo 98 e agora em progressiva ocupação urbana, a norte da via férrea, o Rover 414 verde e sujo permanecia solitário, com a legenda “Trata 977 081 006” em cartolina branca, encostada e presa à superfície interna do vidro lateral, do lado do condutor, por uma simples etiqueta de correio-azul. No banco traseiro, desenhos e jornais dobrados. O fim de semana prolongado interrompera a actividade babélica da construção civil e esvaziara muitas das instalações comerciais próximas – evitando assim que nenhum abelhudo viesse questionar a estranha presença daquele carro. Aliás, como depois se comprovou, ninguém sabia exactamente “desde quando”, embora alguns arriscassem que já o teriam visto ali uma ou duas manhãs antes da desmobilização civil iniciada na quinta-feira santa. Certo é que, passada a “ponte”, tal permanência iria ainda manter-se escassos dias, até que o estroncamento maldoso dum retrovisor lateral, o crescente questionar na vizinhança quanto à origem e propriedade do automóvel, a hipótese de que fora roubado e que, como tal, poderia beneficiar eventuais alvissareiros, tudo cumulado com a crescente fedorina que dele se exalava, contribuíram para que, finalmente, fosse comunicada à PSP a enigmática ocorrência.

Não, não havia qualquer participação de roubo relacionada com aquele veículo, registado em nome de um António Ferreira Neto, com morada na Amadora. Sem telefone na lista. Uma tentativa de contacto no endereço indicado iria assustar uma rotunda mãe de família cabo-verdiana quando tranquilamente preparava o jantar. Corroborada em tudo pelos vizinhos, afirmou ali morar há mais de dois meses, ter “alugado” a casa em agência que indicou, e mais declarou, com o nervosismo que lhe causavam fardas, que não conhecia nem queria conhecer qualquer anterior morador da “sua casa”, fosse ou não fosse Neto ou avô. No prédio, de dois andares e seis fogos, dois ou três vizinhos recordavam-se do locatário do 2º direito, que tivera passagem efémera, de pouco mais que meio-ano, e que não viam desde que se fora embora, à cerca de uns três meses. Entrava e saía a desoras e era ou dizia-se engenheiro. Vivia só, sem familiares, sem qualquer bicharada conhecida, mas às vezes entrava-lhe em casa uma moça muito mais nova, desenvolta, que passava lá a noite e que aguçava a curiosidade (e certamente o apetite) do pessoal masculino local, levantava sérias reservas ao mulherame e a quem, jurariam, o engenheiro chamara algumas vezes de Madalena. Pois! (interjeição acompanhada de um piscar de olhos). O homem, esse tinha de facto um carro verde que, pela descrição, não destoava do tal Rover abandonado. Em conversa ocasional e rara, queixara-se da dificuldade de conseguir rapidamente um telefone fixo. Relativamente novo, pendia já para uma meia-idade que a calvície nascente denunciava. Era muito educado, apesar do cheiro a charuto que por vezes inundava a caixa da escada e, mais raramente, do ruído duma “música séria”, que ficava a tocar um pouco alto. Deixara o andar bastante sujo, com jornais e revistas empilhados e com alguns tarecos que nunca mais veio reclamar e que acabaram, quase todos, junto ao mais próximo contentor do lixo.

A persistência do cheirete, cada vez mais pútrido, e a inoperância das diligências empreendidas acabaram por levar a polícia a abrir as portas da viatura -- o que tornou o ambiente próximo simplesmente insuportável. Levantada a tampa da mala, logo descobriram a causa. Vestido de forma convencional, parcialmente coberto com uma manta de viagem e deitado em posição fetal, o cadáver tinha ainda postos os auscultadores ligeiros e de boa marca que se ligavam a um leitor portátil de CD’s. Introduzido neste, o disco com quatro “Concerti Grossi” do Opus 6 de Haendel deixara há muito de se ouvir e de ser ouvido. A respectiva caixa juntava-se a outras duas, uma com peças sortidas de Mozart, outra evocativa de Gilbert Bécaud, a abrir com o conhecido “Et maintenant?”, que tantos corações fizera romanticamente palpitar desde 1975. Ainda, naquele espaço limitado da mala, foram recolhidas e devidamente acondicionadas diversas embalagens vazias de um barbitúrico forte, uma garrafa também vazia de “JB” e uma palhinha de refrigerante, como constava do relatório policial. O exame dos documentos contidos na carteira, mantida no bolso interior esquerdo do casaco, com cartões de crédito, alguns cheques por utilizar e uma quantia modesta em notas novas de pequeno valor, confirmou tratar-se, de facto, de António Ferreira Neto, engenheiro mecânico, 47 anos, natural de Sousel e, de acordo com o BI, residente na Amadora. Poucos cartões de visita, de execução esmerada mas de cantos já deformados, repetiam a morada onde hoje sabiam viver uma mamalhuda senhora, demasiado tisnada pelo sol de sucessivas gerações. Nos bolsos pouco mais: uma “bic-cristal” preta, meio consumida, uma lapiseira, duas chaves tipo Yale, o porta-chaves do automóvel, com o respectivo “comando”. Um envelope aberto, sem destinatário, guardava uma carta dactilografada em computador, assinada a esferográfica azul, que o “de cujus” dirigia à sua ex-mulher, comunicando, de forma telegráfica e seca, como de correspondência comercial, a decisão definitiva e reflectida que tomara de por termo à sua vida. Sem invocar qualquer razão, sem revelar qualquer sentimento ou provisão, sem um adeus que fosse, até sem data e sem nome para além do “A minha ex-mulher” que escrevera como primeira linha. Quem primeiro a recebesse, que procurasse a destinatária, num ali surpreendente estilo “toma e embrulha”

Também na mala do carro, uma pasta de cartolina verde-claro, com abas e elásticos, continha uma colecção de doze desenhos, dobrados como é de uso. Na face exterior, a lápis ténue, podia-se ler a palavra “Almansor”. No banco traseiro, uma outra colecção de desenhos acompanhava meia dúzia de “diário de notícias”, nenhum dos quais posterior a 23 de Março. Os desenhos de ambas as colecções, de evidente natureza técnica, reportavam-se a equipamentos há muito vendidos como sucata, após o desmantelamento de uma instalação química situada a norte de Lisboa, ironicamente epilogada num processo de “recuperação de empresas” em que os bancos credores abriram mais os olhos para o imobiliário afecto à produção que para o prosseguimento da actividade industrial e a manutenção de emprego. Nasceria ali mais uma urbanização! O tema até tivera honras de aparição num noticiário das oito, com trabalhadores idosos por detrás de cartazes, e levara alguns desmancha-prazeres da oposição a ousarem de perguntar, em sessão aberta da câmara, se tão apetitosos terrenos estavam comprovadamente descontaminados para os fins habitacionais a que, com público clamor, eram agora votados. Não deixava de ser curioso que o conjunto de doze desenhos contidos na pasta estivesse totalmente repetido no conjunto do assento traseiro, que, além destes, continha mais cinco diferentes e “desemparelhados”. Outra diferença existia: nos desenhos da pasta alguém desenhara grandes “balões” a marcador vermelho, em torno de certas peças do equipamento fabril, que numerara de #01 a #16, ao passo que todos os desenhos, no outro conjunto, se apresentavam como saídos do aparelho de cópia, sem qualquer marcação aposta.

Longe dali, no outro extremo da cidade, Madalena chegava a casa. Acendeu um cigarro, colocou um CD na aparelhagem Sony que tinha comprado tempos antes para se dar companhia. Sentou-se no sofá, descalçou os sapatos e já tranquila, distendida, olhando o nada no tecto, pensou rapidamente na viagem que, em breve iria fazer e que esperava a conduzisse a secretos objectivos. Gilbert Bécaud, enchendo a sala, repartia o espaço com o fumo que subia do cigarro. “Et maintenant...”.

a) Inspector Moka


Terceiro Capítulo

Desde o início da viagem algo de diferente sugeria a António Rosa que se não tratava de uma simples “excursão de prazer”. Ao levar Madalena a casa, na véspera da partida, esta tinha-lhe pedido para por no carro duas pesadas caixas de madeira, limitando de forma inesperada o espaço da mala. No dia da partida, juntou-lhes uma desproporcionada mala de viagem e dois gordos envelopes azuis de papel entretelado. Madalena esclareceu tratarem-se de artigos a entregar em Barcelona, contra o montante a cobrar — algo que nunca antes referira. Finalmente, um outro envelope, esse de plástico, com documentos, foi posto no porta luvas.

Saíram no domingo, por Madalena não querer meter-se a caminho em dia 13. Tinham combinado passar aquela primeira noite numa vivenda vazia mas sempre preparada que pertencia a um amigo de António e que, no limiar do Alentejo, combinava um aspecto exterior irrepreensível com o recato e a comodidade exigíveis a uma “garçoniére” requintada, valorizada pela relativa proximidade das praias algarvias e suficientemente acoitada, pela distância, das suspeitas de uma consorte ciumenta.

O programa estabelecido era simples: procurariam chegar a Capri em jornadas que não exigissem mais de 8 horas diárias de condução, sempre apoiadas em sítios que, por qualquer forma, “aculturassem” o romance sem desacamar o seu aspecto óbvio. No segundo dia ficariam em Manzanares, procurando lugar no Parador local, no terceiro cerca de Castellón, no quarto dia em Sète e no quinto já em Génova, prontos a descer a bota até Capri, que - forçando a nota - atingiriam no sexto, para que, no sétimo dia, esquecessem o descanso bíblico e visitassem os monumentos principais da ilha, com particular atenção para a “Casa como Eu” que constituia a meta oficial da peregrinação.

Se outra surpresa surgiu quando, em plena E05, passada Sevilha, Madalena demonstrou não ser uma condutora nem tímida nem inexperiente, o pior estava reservado a António Rosa na noite de 16 para 17, depois da chegada a Castelló. Levantado o “capital” ali postado, tinham-se afastado mais alguns quilómetros ao longo da costa e escolhido, para fim da etape, um pequeno e confortável hotel de Oropesa del Mar, voltado a um Mediterrâneo a perder de vista. Depois de transportar para o quarto o malão terceiromundista de Madalena e a malinha de executivo em férias em que trazia o essencial da pernoita, pois que geralmente dormia nu, António colocou o “pacotinho de euros” recebido em Castellón no envelope de plástico e – como tencionavam sair -levou este conjunto para a aparente segurança do cofre da recepção. Já debaixo do chuveiro, pareceu-lhe que Madalena estava a usar um telemóvel, mas nada disse. Saíram a pé, para “cear”, e como alvitrado por Madalena, tinham-se seguidamente excedido numa intimidade dançarina, razoavelmente bebida e aconchegada numa “boite” próxima. Deitaram-se tarde, pedindo ao porteiro que os acordassem cedo. Quiçá efeitos da viagem, do banho, do jantar e da bebida, António sentia-se muito pesado e caiu logo num sono profundo, ao lado duma Madalena que se declarava também ensonada e pronta para mais nada que não fosse dormir.

Quando acordou, com uma dor de cabeça terrível, o sol tinha rompido entre núvens e inundava o quarto. A boca sabia-lhe a cortiça., concretizando uma cruel ressaca, daquelas que podem resultar da muita quantidade, ou da má qualidade ou de ambas — o que talvez fosse o caso. Estranhando a demasiada claridade e ainda meio ensonado, estendeu o braço para o local onde deveria estar a sua companheira de viagem e sabe-se lá do que mais, a seu devido tempo. Nada... estremunhado acordou e olhou para o despertador: eram 3 horas e meia da tarde, hora local. Não, não o tinham acordado! E Madalena não estava ali! Nem as malas, nem a roupa, nem documentos, nem dinheiro, nada! A surpresa foi mais radical que qualquer aspirina. Pelo telefone pediu um robe, que lhe levaram, de turco, demasiadamente reduzido, dando-lhe um aspecto tristíssimo. Pediu a presença do gerente. Explicou-lhe a situação, solicitou-lhe explicações.

Pois, a Senhora tinha saído de manhã muito cedo, antes das seis horas, dizendo que ia a Castelló a casa de uns amigos. Que o senhor estava doente e que não o incomodassem. Ia inclusive aviar-lhe um medicamento urgente, para voltar antes das dez. Almoçariam no hotel e só sairiam à tarde, o que, pela pequena ocupação, lhe disseram ser possível. Colocou a mala grande no carro e saiu com ar preocupado. Face a esta situação e ao dístico “não incomode” colocado na porta, tinham-se limitado a cumprir. Certamente que se tratava de um mal entendido — sugeriu o gerente com ar cúmplice — e que a senhora voltaria em breve. Preparariam uma refeição ligeira, que trariam ao quarto, e o senhor poderia esperar vendo televisão. António, envolvido no robe, sem roupa, sem documentos, sem carro, sentado no sofá, não pode deixar de se recordar do primeiro filme dos Lumiére, que vira em miúdo e que pela sua simplicidade tanto o impressionara: “l’arrosoir arrosé”.

Minutos depois, reavaliada a situação com o conforto de um “consomé” quente, a reacção de António já não seria tão tranquila. Madalena ainda não chegara, pelo que havia mesmo que actuar. Em primeiro lugar, um telefonema para o escritório do colega de Castellón, onde na véspera levantara o dinheiro. Tinha saído da cidade, mas deram-lhe o número do telemóvel. Referiu-lhe em palavras breves o que se passava e pediu-lhe que viesse ao seu encontro, em Oropesa, onde permanecia indocumentado, sem carro, sem cheta, com horror a todo o tipo de publicidade, e, além disso, presumivelmente intoxicado com qualquer mistela adicionada à bebida. E sem Madalena, de quem não tinha notícias ou mensagens e a quem poderia ter sucedido sabe-se lá o quê.

Participação discreta à polícia, que veio logo a seguir. Tarde já para contactar com o consulado português mais próximo, mas suficientemente cedo para difundir os dados da viatura. Pairava no ar a dúvida de um desajuste entre namorados, de um arrufo de que António escondesse pormenores e até, sabe-se lá, de algo mais que isso. O agravamento de um mal estar, com vómitos, boca seca, perda de equilíbrio e recrudescidas dores de cabeça, justificou uma visita ao hospital local. Face aos sintomas, aos primeiros resultados analíticos e á evidente ansiedade, o médico de serviço aconselhou o internamento sob vigilância médica, por uma noite. O colega insistiu e iniciou as diligências para aplainar a situação. Procurou saber que valores ou títulos se encontravam também desaparecidos. Sem tocar no envelope, que continuava no cofre, elaborou, com um António já meio sedado, uma lista das possíveis comunicações a fazer – acolhendo os pedidos para que se não desse eco público àquela situação, aquém e além fronteiras, dado o melindre que a sua presença ali revestia. Que sossegasse pois havia experiência disso, já que nada espanta numa região que viva do turismo.

Só no dia seguinte lhe permitiram sair do hospital e regressar ao hotel de Oropesa del Mar. Conferenciando com o colega e um associado deste, foi-se montando o conjunto de indagações necessárias para restabelecer um mínimo de apresentação e as suficientes garantias, nomeadamente de não terem existido mais levantamentos. Não lhe era simples telefonar para Portugal e, quando o fez, foi através de pessoa de muita confiança, que jamais deu com a língua nos dentes e que motivou os devidos interesses pelo assunto, nos planos policial, diplomático e bancário. Pôs-se à disposição das autoridades locais, que procuravam encontrar uma Madalena também desaparecida e o automóvel com que desaparecera.

O envelope de plástico amarelo escapara “à voragem” por estar no cofre do hotel e o seu conteúdo foi inventariado. Para além do dinheiro, registou-se um recorte detalhado de um mapa fotocopiado de uma carta militar portuguesa ou de um mapa com escala de idêntica generosidade, a minuta duma factura de “serviços diversos” impressa em computador, mas sem data e sem identificação de qualquer das partes e uma folha de instruções (em línguas sortidas) que descrevia um pedómetro de marca “Tronic”. Agrafado ao mapa, um cartão de visita, vincado a meio, de António Ferreira Neto, Engenheiro Mecânico (IST), mas sem qualquer outra indicação, e no verso do qual, escrito a esferográfica, se reconhecia o número: 977081006.

a) Inspector Moka


ATENÇÃO

Entre os dias 10 e 20 de Janeiro de 2004, os “detectives” que queiram participar na criação do Quarto Capítulo do “Pão de Canela” devem enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt as suas propostas de texto (com o máximo de 7.000 caracteres). Recorda-se que os textos propostos devem enquadrar-se no espírito e história(s) dos Capítulos anteriores.

 
domingo, dezembro 21, 2003
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Antes de mais, aqui ficam os mais sinceros votos de um BOM NATAL e um FELIZ ANO NOVO para todos os cibernautas que navegam neste blogue, quer os mais activos e participativos, quer os que ainda se intimidam com a responsabilidade do voto ou receiam dar “o corpo ao manifesto” na escrita dos capítulos do “romance”.

Foram cinco os cibernautas que apresentaram propostas de texto para o Terceiro Capítulo do romance “Pão de Canela”, que, a partir de hoje, ficam sujeitas ao julgamento do Júri. As propostas em apreciação são da autoria de Dic Roland, A.Raposo, Inspector Fidalgo, Detective Oculams e Inspector Moka.

Compete-nos agora (a todos nós, sem excepção) apreciar aquelas propostas e optar por uma delas, através de voto directo a enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt, até dia 27 de Dezembro, impreterivelmente. Para o efeito basta escrever:

“Voto na Proposta nº. 1 – original de Dic Roland”
ou
“Voto na Proposta nº. 2 – original de A.Raposo ”
ou
“Voto na Proposta nº. 3 – original de Inspector Fidalgo”
ou
“Voto na Proposta nº. 4 – original de Detective Oculams”
ou
“Voto na Proposta nº. 5 – original de Inspector Moka”


Vejamos então as propostas:

PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Terceiro Capítulo
Proposta nº. 1 – original de Dic Roland


Não se precipite, prezado leitor, nem se amofine com a incongruência que aparentemente ressalta da leitura dos dois capítulos anteriores.
De facto – e à primeira vista – fica-nos a impressão de que Madalena, tendo voltado, sozinha, da viagem que encetara com António Rosa a caminho de Capri (porque foi ela, realmente, que se antecipou no regresso), surge agora em sua casa, algures em plena Lisboa ocidental, fumando um cigarro e ouvindo Bécaud... a meio da semana de Pascoela!...

Esta ocorrência é tanto mais estranha quanto é certo que a vimos partir, na rota de Malaparte, duas semanas depois da Páscoa, e soubemos da sua chegada no decurso da terceira semana depois da partida.
Estaríamos, portanto, na presença de alguém com o dom da ubiquidade, o que seria, no mínimo, uma brincadeira de mau gosto em qualquer história que se pretende séria e fiel aos cánones da literatura tradicional.

É urgente, por isso, pôr os pontos nos ii:
O que foi relatado no segundo capítulo aconteceu, na verdade, naquele Domingo de Páscoa e nos dias subsequentes, e está a ser recordado, em amargurada retrospectiva, pela recém-chegada Madalena.

É óbvio que o drama do pobre engenheiro Ferreira Neto foi largamente explorado pela comunicação social, e Madalena (que não se limitava a ler, nos jornais diários, aquilo que dissesse respeito à sua profissão), não deixou de acompanhar, com algum interesse, as peripécias dia a dia reveladas.

E essa curiosidade atingiu o auge ao tomar conhecimento de dois pormenores que, de certo modo, a chocaram particularmente: o primeiro, foi a descoberta de uma caixa de CD’s evocativa de Gilbert Bécaud, também ele da sua particular preferência; o segundo, foi a incómoda coincidência do nome de uma tal Madalena, suposta amiga e companheira de Ferreira Neto.
Tudo, porém, tem o seu tempo, e o drama caiu no esquecimento...

Mas porquê – perguntar-se-á – esta doentia evocação da tragédia, quase um mês e meio mais tarde?
Prezado leitor: acompanhe-me no raciocínio e verá que as coisas, por mais estranhas que pareçam, têm a sua razão de ser.

Madalena interrompeu uma viagem que iniciara com tanto entusiasmo, em companhia de alguém que a cativou por completo e por quem – ela própria o reconhece – acabou por se apaixonar!

Algo aconteceu (de pouco agradável, decerto), que alterou por completo todos os planos, impossibilitando o prosseguimento da viagem até à ilha de Capri e obrigando o casal a uma imprevista e dolorosa separação.

O que, na realidade, se passou, saber-se-á mais adiante. Por agora, o que sabemos é que Madalena voltou a casa, evitou todos os contactos com amigos e vizinhos, e fechou-se na sala a pensar em António...

Instintivamente, quase como um autónomo, pôs um disco no leitor de CD’s, acendeu um cigarro e ajeitou-se no sofá. Mal ecoaram os primeiros acordes, Madalena estremeceu: Gilbert Bécaud cantava o seu poema preferido: “Et maintenant...

Não era preciso mais nada para que a jovem modista recuasse no tempo e se transportasse àquele dia em que, também ali sentada, mas com o espírito muito mais desanuviado, ouvira o mesmo disco e ouvira, na televisão, as primeiras notícias acerca do suicídio do engenheiro.

Bécaud, entretanto, continuava a fazer-se ouvir na sua voz inconfundível:

Toutes ces nuits, pourquoi, pour qui,
Et ce matin que revient pour rien,
Ce coeur qui bat, pour qui, pour quoi,
Qui bat trop fort, trop fort...


Esta angústia que decorre da solidão que se não deseja, este pulsar ansioso dum coração destroçado, correspondiam perfeitamente ao actual estado de espírito de Madalena.
Duas lágrimas rebeldes lhe humedeceram os olhos...

Foi então que à sua mente aflorou a lembrança de um poema de José Régio, em “As Encruzilhadas de Deus”, poema que ela adorava e quase sabia de cor.

Levantou-se, excitada, e foi procurá-lo à estante.
Queria relê-lo porque, subitamente, foi assaltada por um desejo inelutável: escrever alguma coisa de semelhante, para enviar àquele cuja presença tanto desejaria naquele momento.
Semelhante, claro (e Madalena tinha perfeita consciência disso), apenas na ideia que lhe está subjacente, e não na forma e com a inspiração com que Régio escrevia.

Tratava-se, porém, de uma humilde mensagem particular, só para o estrito conhecimento de ambos...
Mas, depois de muito procurar, Madalena lembrou-se de que o deixara no seu “atelier”, antes de partir para férias.

Teimosa como era, não desistiu. Voltou para o sofá, com um bloco de papel e uma esferográfica.

E começou a escrever:

Em cima da minha mesa,
Minha mesa de costura,
Mesa da minha tristeza
Porque sou vulgar artista
De uma Arte, ingrata e dura,
Que nem sempre se domina,
Que a Costura
(Eu sou modista...)
Que a Costura
Ou é divina
Ou demónio...
Em cima da minha mesa
Tenho o teu retrato, António!

.............................................
.............................................
.............................................

E se não fora esse “altar”
E a magia
Ardente, do teu olhar
(Eu bem sabia
Que ele me queima o peito
Com fogo vivo, em fagulhas)
Meu António, Amor perfeito!
Já me teria perdido
Ou já teria engolido
Algum pacote de agulhas!...

Gilgert Bécaud terminava, entretanto, a sua canção:

Pas une fleur et pas de pleurs
Au moment de l’adieu.

Je n’ai vraiment plus rien à faire...



PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Terceiro Capítulo
Proposta nº. 2 – original de A.Raposo


(aviso à navegação: pede-se ao leitor que acompanhe em pensamento a sua leitura com o som de um violino a evocar o “Luzes da Ribalta” de Chaplin)

Madalena retirou o CD do gira discos Sony e voltou a colocar na caixinha de plástico. No interior uma foto a sépia, a cheirar aos anos sessenta, do velho Bécaud, espreitava de olhar langoroso e cigarro na ponta dos dedos.

Madalena passou a mão carinhosa pela foto do idolatrado cantor como se fosse um afago a um namorado antigo, mas sempre recordado. Guardou religiosamente a caixa de plástico no topo da pilha de uns quantos “mortos” sempre vivos e presentes. Bécaud e Sinatra faziam a maioria da sua colecção.

De repente lembrou-se que tinha dentista para as quatro horas e já passava das três. Vestiu-se à pressa e resolveu apanhar um taxi para não perder a sua vez. Se não chegasse a tempo, teria que ficar para o fim e só de lá sairia às tantas.

A corrida foi breve e acabou por chegar com meia hora de avanço. Ainda por cima, as consultas estavam atrasadas...

Pegou numa revista, daquelas muito folheadas dos consultórios e enterrou-se num velho sofá de plástico vermelho da sala de espera. A revista tinha um artigo que lhe chamou a atenção. Tratava-se um tema preferido: Os assassinatos em série.

Uma daquelas histórias e ela entrava quase em transe. Todos os casos passados e que fizeram história tinha-os coleccionado e guardado devidamente encadernados. Um filme que passasse, do género, e lá estava ela na estreia. Por razões que nunca soubera explicar Madalena achava aquelas histórias fascinantes.

O sofá desconchavado deixava o corpo descer pelas suas entranhas e com a sala aquecida, convidava à sonolência. Madalena semicerrou os olhos e tentou avaliar o que tinha sido a sua vida. Principalmente a sua vida amorosa. Mais uma vez estava sozinha. Os seus anteriores companheiros tinham-se evaporado. Tinham pura e simplesmente saído da sua vida, como se fossem nuvens passageiras. Regularmente, todos.

Sabia que a culpa era sua. Não conseguia viver com rotinas. A vida não se compadecia com a repetição exaustiva dos mesmos gestos e práticas. Era necessária a mudança. A vida é sempre feita de mudança.

Madalena lembrou-se de António e da aventura que ambos viveram naquele verão quente em pleno mediterrâneo.

Foi bom até ao ponto em que tudo se desmoronou. António não era o que parecia e não parecia o que era. Talvez por isso tivera o castigo do além. Tudo passou. Foi bom enquanto durou. E como o amor é eterno num segundo assim se partiu a corrente entre os dois. Foi talvez somente um “coup de foudre”? E não passou senão disso?

Mais uma vez tentou varrer António da sua memória. Mas esta era mais forte e também era verdade que fora com ele que passara os melhores momentos. O seu sorriso de belos dentes brancos e brilhantes gravara-se na sua memória como um retrato fixo na moldura, que não passa. Precisava esquecer. Foi um tempo que não volta mais.

Depois, teve o caso com o engenheiro na Amadora. Parecia que tudo ia dar certo. Não deu. Ele era casado. Já não era muito novo e pronto. Passou.

Outros homens correram na sua memória, mas desses já poucas marcas restavam.

Madalena continuava cabeceando no sofá, ora lembrando a sua curta vida, mas cheia de aventuras ora olhando os poucos pacientes, todos entretidos com as velhas revistas e um ar de sofrimento.

O dente começava a doer-lhe novamente. Sabia perfeitamente porquê. Fora provar à Pastelaria da Praça das Flores um “bretzel” para recordar os tempos com António. O bolo fizera-lhe cair o chumbo do dente e o açúcar ocupara-lhe o lugar, preparando a infecção. Sabia perfeitamente que o “bretzel” era para o António, só que ele não estava ali para o saborear, nem para lhe agarrar na mão carinhosamente.

Madalena tinha a certeza, a completa certeza que António não estaria ali, NUNCA MAIS.


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Terceiro Capítulo
Proposta nº. 3 – original de Inspector Fidalgo


“Et maintenant...”
Aos poucos a macieza dos seus traços foi-se alterando, enquanto o fumo percorria em espiral os centímetros que o separavam da barreira que o impedia de se erguer aos céus.
Madalena não tinha já paciência para muitas das coisas que tinha de aturar. No fundo, decidira que chegara o tempo exacto para o seu “Grito do Ipiranga” e...
Curioso, nunca se lembrava do Brasil e agora surgia-lhe o grito de liberdade. Parecia o momento certo para mudar de rumo. A nova etapa amorosa que agora lhe parecia tão próxima, por entre croissants com manteiga – pouca – e um tal pastel de que mal sabia a pronúncia, num café sem futuro, era o que se lhe deparava ali mesmo, no virar da esquina da vida...
Aos poucos sentiu-se despertar do lento torpor em que ia mergulhando ao som da música romântica que brotava sem se sentir e inundava o espírito...
Não, decididamente já era de mais! Aquele gajo não dava definitivamente, uma para a caixa! Porra! Porra!
De um salto, misto de gazela africana e de lince, qual ginasta olímpica, ergueu-se e irrompeu, decidida, pelo quarto semi-obscurecido em que repousava, roncando, um tipo de aspecto pouco recomendável.
Porra, Edmundo! Acorda!
Que queres ? Deixa-me dormir... O crime...
Vai-te lixar! Para mim chega! Sempre com a merda do crime às voltas, sonhas e voltas a sonhar com essa porra, acordas de pesadelos tenebrosos... Não, decididamente, para mim, chega!
Não estejas assim... Descobri a solução! Tenho a resposta... Repara, o tipo chama-se António Ferreira Neto e a morada é na Amadora. Telefone, não consta e na morada vive uma matrona cabo-verdiana que alugou a casa. É engenheiro e está já em decomposição no interior do próprio carro, há uns jornais cujas datas dão pistas... Há uns projectos que...
Alto aí! Onde foste descobrir esse nome?
Inventei...
Mentiroso! Andas a espiar-me! Já sabes, não é?
Sei o quê?
Porra! Não quero mais saber dessa merda! Passas a vida a pensar na solução desse tal crime, já nada te parece interessar... Escrever um romance... Pfff! Estás agarrado a essa treta e esse teu amigo Inspector, esse Moka, ainda mais te mete essas merdas na cabeça... Chega, estendes?
Querida, tem calma... Estiveste a fumar... Posso senti-lo... Já te disse para parares com isso, pelo menos aqui...
Vai à merda, está bem?... Andas a tratar do “teu” António, a dá-lo como putrefacto, mas o cheirete de que falas não é maior que o fedor que tu próprio deitas... És um porco, nem te lavas a pensar nessas merdas... Resolve lá o teu crimesinho e não chateies, está bem ?
Querida...
Tretas, qual querida qual treta!... Vou-me embora! E se queres saber, vou para muito longe daqui, para onde não tenha de sentir esse teu bafo nojento nem os gritos nocturnos de pesadelos macabros... És um nojo, percebes?
Minha “Madeleine”, minha...
Deixa-te dessas merdas. Se te digo que acabou, acabou! Fica-te lá com os teus romances policiais, olha, continua armado em parvo a responder a essas coisas do Público e depois queixa-te! És mesmo um nabo completo. A casa é tua, fica com esta estrumeira, eu vou-me!
Para onde, não me dizes? Vais fazer o quê? Vais trabalhar em quê?
Interessa-te? Olha, encontrei alguém. Vou-me embora de vez... Vou viver com alguém carinhoso, fino, que come “bretzels” com meia de leite...
Casado, aposto! Nos romances policiais isso acontece sempre. Depois há uma cena de ciúmes e começam verdadeiramente os problemas que muitas vezes acabam numa sala de audiências por homicídio... Tu sabes isso muito bem.
Porra, essa merda da música não acaba, já não tenho paciência e dói-me a cabeça...
Sabes, querida, é do tabaco... Sabes...
Porra, dá-me vontade de te rebentar com essa tromba! Deixa-me em paz, ouviste? Deixa-me em paz! Chega!

Querido?
Chegou à caixa do correio de...
Porra! Que hei-de fazer? O Edmundo agora quer armar-se em parvo, o porco... Bolas, precisava mesmo de combinar tudo e partir de novo para Capri o mais rapidamente possível e o gajo tem o telemóvel desligado...
Deixe a sua mensagem...
Querido, quero ir-me embora daqui o mais depressa possível. O Edmundo continua com os seus crimes às voltas e cada vez é pior... Hoje falou no teu nome, sabe-o todo, conta a tua história, não sei onde foi buscar tudo! Está meio doido e é capaz de tentar alguma coisa, sei lá? Vamos embora, pela estrada fora, lembras-te do Kerouac, também andou pela estrada fora, sem limites, de qualquer maneira... Liga-me logo que possas... Liga-me!

Faz o favor...
Sim?
É a menina Madalena?
Sim...
Polícia!
Sim?
Conhece um tal engenheiro António Ferreira Neto?
Não, quero dizer, sim, ... está morto?
E um tal Edmundo?
Sim,... Meu Deus, ele matou-o mesmo!... Não me digam, foi num Rover verde...
Como sabe?
O Edmundo contou-me! Céus, nunca esperei que ele fosse capaz...
Capaz? Capaz de quê?
Capaz de matar!
Pois, ele confessou esse crime...
Céus, foi mesmo capaz, porra!
... Mas não encontrámos rasto do tal Rover verde que ele referiu e esse tal engenheiro também não parece existir...
Existe! Tenho a certeza!
... Há um com esse nome, mas tem mais de setenta anos e está quase cego, tem um Rover verde que praticamente não anda, está na garagem...
Tem um corpo dentro, em decomposição...
... E não tem vestígios de qualquer crime! Também não tem familiares de qualquer espécie!
Céus...
O Edmundo confessou que matou um indivíduo e desenhou-o assim...
É ele, é o “meu” engenheiro António!
Veja esta fotografia do velho engenheiro aos 25 anos, portanto, tirada há cerca de 50...
Porra! É o que eu conheço, mas é agora que tem este aspecto, não há 50 anos!
Também Edmundo nos contou essa mesma história. Importa-se de nos acompanhar?
Espere! Tenho o número de telemóvel do “meu” engenheiro... Vão ver que ele existe, sabem, tem mulher e filhos... Vou com ele numa viagem, humm!... de negócios. É este o número, telefonei-lhe há pouco tempo, deixei mensagem... Não é esse velho!
O número que marcou não se encontra atribuído...
Não pode ser... Deixei mensagem...
O número que marcou...
Desculpe, importa-se de nos acompanhar?


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Terceiro Capítulo
Proposta nº. 4 – original de Detective Oculams


António Jorge nem queria acreditar quando atendeu o telefone e ouviu a voz firme e grave do inspector Barreto. Pouco passava do meio-dia, o cabrito ainda só ganhara cor no forno e já o cheiro do assado despertava o apetite de toda a família. Apenas o mais novo da prole parecia pouco entusiasmado com o repasto que as três mulheres da casa preparavam com afã na cozinha, entretido que estava a furar o folar com os seus pequenitos mas laboriosos dedos num movimento quase ininterrupto que fazia o interface entre o folar, o arroz doce, a mousse de chocolate e as amêndoas, a caminho da sua gulosa e lambuzada boca. Noutro canto da sala, o irmão mais velho esforçava-se por convencer sem aparente sucesso o avô Cândido das bondades e virtudes do campeonato europeu de futebol que Portugal organizaria daí a ano, tendo por palco dez novos e modernos estádios construídos à custa de um inusitado aumento do défice da despesa pública e de outras consequências ainda imprevisíveis.

Merda! Que porra de profissão esta, onde um homem não pode ter vida própria num só dia que seja!, berrou António Jorge a plenos pulmões ao mesmo tempo que poisava o telefone com um estrondo de raiva. Avô e neto pararam de imediato com as discussões filosóficas em torno do fenómeno futebolês lusitano e seus efeitos nefastos no futuro dos descendentes do herói Viriato; Joãozinho, o filho “caçula”, levantou-se de um salto e correu assustado para junto das pernas do pai, mas não sem antes abastecer os bolsos de algumas amêndoas com recheio de laranja, baunilha e chocolate; Mãe, filha e nora, abandonaram de súbito pratos, panelas, tachos e demais utensílios que ajudam a fazer da culinária uma arte de encher o olho e a barriga, preocupadas com a atitude descontrolada do chefe da família; e todos, a uma só voz, perguntaram: Mas o que foi? O que se passa?

Um crime, “apenas” mais um crime, na imprevisível e agitada vida de um empenhado e destemido agente da Policia Judiciária, mas também honrado e dedicado chefe de família, que o inspector Barreto sorteou de entre cerca de vinte homens às suas ordens para trabalhar naquele dia festivo há muito agendado para partilhar em paz com sua gente. Dentro de um carro estacionado numa das mais belas praças da cidade de Lisboa, foi encontrado um homem já cadáver, derrubado por três tiros no abdómen, caído para a frente como se tivesse adormecido debruçado sobre o volante cansado e vencido pela noite chuvosa da véspera que fez jus ao ditado que faz de Abril um mês de mil e muitas águas. António Jorge não teve tempo para mais explicações. Vestiu à pressa o seu blusão de cabedal envelhecido e gasto de mais de cinco anos ao serviço da lei e da justiça, ergueu até ao nível dos seus olhos o lambuzado Joãozinho e beijocou as poucas partes limpas do seu rosto com ternura imensa, abraçou com a força de quem ama sem reservas nem limites o seu velho e cansado pai, repartiu festas e beijos pelas “cozinheiras” da casa, levou o primogénito pela mão até à porta como se quisesse passar-lhe temporariamente o testemunho de chefe da família, voltou atrás para pegar a arma que havia esquecido e que esconde com toda a precaução num velho cofre de segredo bem guardado, tornou a beijar a sua companheira de vinte cinco anos de lutas e de sonhos “a dois”, e lá foi ele, só, muito só, ao encontro de mais um crime.

Quando António Jorge chegou perto do Laguna cinzento onde jazia a vitima de mais um monstruoso homicídio cometido na grande cidade outrora segura e calma, não caía dos céus nem uma só gota de chuva e o sol instalara-se radioso na praça, banhando de luz as árvores recém vestidas de tenras folhas e as ramagens verdes por onde espreitavam dezenas de botões a florir. A madrugada já chorara tudo e o sol viera manhã cedo prestar vassalagem àquele dia de ressurreição da paz entre Deus e os homens. Contrastando com a beleza do exterior, dento do carro prevalecia a morte, o mal, a desordem. Por debaixo do assento do condutor, três cápsulas de balas assassinas emergiam entre lenços de papel, algumas pontas de cigarro e restos de pipocas. No banco traseiro, um livro de Malaparte e um CD de Gilbert Bécaud misturavam-se com duas latas de cerveja vazias. No porta luvas, vários mapas de estradas e de cidades da Europa faziam companhia a um postal ilustrado de Capri impregnado de perfume de mulher. Na mala do carro, havia bagagem para muitos dias de viagem. Debruçado sobre o volante, um homem com perto de quarenta anos, casado, jazia imóvel e em paz há pelo menos doze horas. Chamava-se António, António Pires.

Já eram quase quatro horas da tarde quando se cumpriram todas as formalidades legais e o corpo foi finalmente removido. O tempo passara tão depressa que António Jorge nem dera pela dor da forme a roer-lhe o estômago. Bem perto do local do crime existia uma confeitaria. Pão de Canela, assim se chamava. Sem hesitação, entrou e pediu: um café e uma coisa comestível sólida e doce. A empregada brasileira sorriu e sugeriu uma especialidade da pastelaria alemã que há muito fazia furor por aquelas paragens, de seu nome “bretzel”, que ele experimentou com deleite e prazer. Ao mesmo tempo que saboreava aquela delícia doce e estaladiça, o detective olhou a rua através da vidraça da montra coberta de prateleiras forradas com os mais diversos bolos, ovos de chocolate, amêndoas coloridas e folares de Páscoa. Lá fora a vida continuava a pulsar, no sono do bebé dormindo e mamando no colo da mãe sentada ao sol no banco da praça, grávida de felicidade; no sorriso traquinas do rapaz correndo atrás de uma bola redonda, tão redonda e maltratada como o mundo; ou ainda na inebriante beleza da mulher que se encaminhava para a confeitaria, provocante, desafiadora, atrevida…

António Jorge sentiu um “clique” na cabeça, no peito, na alma, quando viu aquela mulher loira, olhos esverdeados, jovem de trinta e poucos anos, caminhar em sua direcção como se o conhecesse ou tivesse encontro marcado com ele àquela hora e naquele sítio. Ela parou junto dele, sorriu, sentou-se, e antes que ele tivesse tempo para qualquer reacção, pediu à empregada: um chá verde e um “croissant”… com manteiga, com pouca manteiga!


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Terceiro Capítulo
Proposta nº. 5 – original de Inspector Moka


Desde o início da viagem algo de diferente sugeria a António Rosa que se não tratava de uma simples “excursão de prazer”. Ao levar Madalena a casa, na véspera da partida, esta tinha-lhe pedido para por no carro duas pesadas caixas de madeira, limitando de forma inesperada o espaço da mala. No dia da partida, juntou-lhes uma desproporcionada mala de viagem e dois gordos envelopes azuis de papel entretelado. Madalena esclareceu tratarem-se de artigos a entregar em Barcelona, contra o montante a cobrar — algo que nunca antes referira. Finalmente, um outro envelope, esse de plástico, com documentos, foi posto no porta luvas.

Saíram no domingo, por Madalena não querer meter-se a caminho em dia 13. Tinham combinado passar aquela primeira noite numa vivenda vazia mas sempre preparada que pertencia a um amigo de António e que, no limiar do Alentejo, combinava um aspecto exterior irrepreensível com o recato e a comodidade exigíveis a uma “garçoniére” requintada, valorizada pela relativa proximidade das praias algarvias e suficientemente acoitada, pela distância, das suspeitas de uma consorte ciumenta.

O programa estabelecido era simples: procurariam chegar a Capri em jornadas que não exigissem mais de 8 horas diárias de condução, sempre apoiadas em sítios que, por qualquer forma, “aculturassem” o romance sem desacamar o seu aspecto óbvio. No segundo dia ficariam em Manzanares, procurando lugar no Parador local, no terceiro cerca de Castellón, no quarto dia em Sète e no quinto já em Génova, prontos a descer a bota até Capri, que - forçando a nota - atingiriam no sexto, para que, no sétimo dia, esquecessem o descanso bíblico e visitassem os monumentos principais da ilha, com particular atenção para a “Casa como Eu” que constituia a meta oficial da peregrinação.

Se outra surpresa surgiu quando, em plena E05, passada Sevilha, Madalena demonstrou não ser uma condutora nem tímida nem inexperiente, o pior estava reservado a António Rosa na noite de 16 para 17, depois da chegada a Castelló. Levantado o “capital” ali postado, tinham-se afastado mais alguns quilómetros ao longo da costa e escolhido, para fim da etape, um pequeno e confortável hotel de Oropesa del Mar, voltado a um Mediterrâneo a perder de vista. Depois de transportar para o quarto o malão terceiromundista de Madalena e a malinha de executivo em férias em que trazia o essencial da pernoita, pois que geralmente dormia nu, António colocou o “pacotinho de euros” recebido em Castellón no envelope de plástico e – como tencionavam sair -levou este conjunto para a aparente segurança do cofre da recepção. Já debaixo do chuveiro, pareceu-lhe que Madalena estava a usar um telemóvel, mas nada disse. Saíram a pé, para “cear”, e como alvitrado por Madalena, tinham-se seguidamente excedido numa intimidade dançarina, razoavelmente bebida e aconchegada numa “boite” próxima. Deitaram-se tarde, pedindo ao porteiro que os acordassem cedo. Quiçá efeitos da viagem, do banho, do jantar e da bebida, António sentia-se muito pesado e caiu logo num sono profundo, ao lado duma Madalena que se declarava também ensonada e pronta para mais nada que não fosse dormir.

Quando acordou, com uma dor de cabeça terrível, o sol tinha rompido entre núvens e inundava o quarto. A boca sabia-lhe a cortiça., concretizando uma cruel ressaca, daquelas que podem resultar da muita quantidade, ou da má qualidade ou de ambas — o que talvez fosse o caso. Estranhando a demasiada claridade e ainda meio ensonado, estendeu o braço para o local onde deveria estar a sua companheira de viagem e sabe-se lá do que mais, a seu devido tempo. Nada... estremunhado acordou e olhou para o despertador: eram 3 horas e meia da tarde, hora local. Não, não o tinham acordado! E Madalena não estava ali! Nem as malas, nem a roupa, nem documentos, nem dinheiro, nada! A surpresa foi mais radical que qualquer aspirina. Pelo telefone pediu um robe, que lhe levaram, de turco, demasiadamente reduzido, dando-lhe um aspecto tristíssimo. Pediu a presença do gerente. Explicou-lhe a situação, solicitou-lhe explicações.

Pois, a Senhora tinha saído de manhã muito cedo, antes das seis horas, dizendo que ia a Castelló a casa de uns amigos. Que o senhor estava doente e que não o incomodassem. Ia inclusive aviar-lhe um medicamento urgente, para voltar antes das dez. Almoçariam no hotel e só sairiam à tarde, o que, pela pequena ocupação, lhe disseram ser possível. Colocou a mala grande no carro e saiu com ar preocupado. Face a esta situação e ao dístico “não incomode” colocado na porta, tinham-se limitado a cumprir. Certamente que se tratava de um mal entendido — sugeriu o gerente com ar cúmplice — e que a senhora voltaria em breve. Preparariam uma refeição ligeira, que trariam ao quarto, e o senhor poderia esperar vendo televisão. António, envolvido no robe, sem roupa, sem documentos, sem carro, sentado no sofá, não pode deixar de se recordar do primeiro filme dos Lumiére, que vira em miúdo e que pela sua simplicidade tanto o impressionara: “l’arrosoir arrosé”.

Minutos depois, reavaliada a situação com o conforto de um “consomé” quente, a reacção de António já não seria tão tranquila. Madalena ainda não chegara, pelo que havia mesmo que actuar. Em primeiro lugar, um telefonema para o escritório do colega de Castellón, onde na véspera levantara o dinheiro. Tinha saído da cidade, mas deram-lhe o número do telemóvel. Referiu-lhe em palavras breves o que se passava e pediu-lhe que viesse ao seu encontro, em Oropesa, onde permanecia indocumentado, sem carro, sem cheta, com horror a todo o tipo de publicidade, e, além disso, presumivelmente intoxicado com qualquer mistela adicionada à bebida. E sem Madalena, de quem não tinha notícias ou mensagens e a quem poderia ter sucedido sabe-se lá o quê.

Participação discreta à polícia, que veio logo a seguir. Tarde já para contactar com o consulado português mais próximo, mas suficientemente cedo para difundir os dados da viatura. Pairava no ar a dúvida de um desajuste entre namorados, de um arrufo de que António escondesse pormenores e até, sabe-se lá, de algo mais que isso. O agravamento de um mal estar, com vómitos, boca seca, perda de equilíbrio e recrudescidas dores de cabeça, justificou uma visita ao hospital local. Face aos sintomas, aos primeiros resultados analíticos e á evidente ansiedade, o médico de serviço aconselhou o internamento sob vigilância médica, por uma noite. O colega insistiu e iniciou as diligências para aplainar a situação. Procurou saber que valores ou títulos se encontravam também desaparecidos. Sem tocar no envelope, que continuava no cofre, elaborou, com um António já meio sedado, uma lista das possíveis comunicações a fazer – acolhendo os pedidos para que se não desse eco público àquela situação, aquém e além fronteiras, dado o melindre que a sua presença ali revestia. Que sossegasse pois havia experiência disso, já que nada espanta numa região que viva do turismo.

Só no dia seguinte lhe permitiram sair do hospital e regressar ao hotel de Oropesa del Mar. Conferenciando com o colega e um associado deste, foi-se montando o conjunto de indagações necessárias para restabelecer um mínimo de apresentação e as suficientes garantias, nomeadamente de não terem existido mais levantamentos. Não lhe era simples telefonar para Portugal e, quando o fez, foi através de pessoa de muita confiança, que jamais deu com a língua nos dentes e que motivou os devidos interesses pelo assunto, nos planos policial, diplomático e bancário. Pôs-se à disposição das autoridades locais, que procuravam encontrar uma Madalena também desaparecida e o automóvel com que desaparecera.

O envelope de plástico amarelo escapara “à voragem” por estar no cofre do hotel e o seu conteúdo foi inventariado. Para além do dinheiro, registou-se um recorte detalhado de um mapa fotocopiado de uma carta militar portuguesa ou de um mapa com escala de idêntica generosidade, a minuta duma factura de “serviços diversos” impressa em computador, mas sem data e sem identificação de qualquer das partes e uma folha de instruções (em línguas sortidas) que descrevia um pedómetro de marca “Tronic”. Agrafado ao mapa, um cartão de visita, vincado a meio, de António Ferreira Neto, Engenheiro Mecânico (IST), mas sem qualquer outra indicação, e no verso do qual, escrito a esferográfica, se reconhecia o número: 977081006.



 
terça-feira, dezembro 09, 2003
  Segundo ENIGMA

Enquanto aguardamos pelo envio das propostas de textos relativos ao Terceiro Capítulo do Romance “Pão de Canela”, reproduzimos aqui o enigma “Smaluco e as Três Amigas” (jornal Público, de 19 de Outubro de 2003), que constituiu a primeira prova do Campeonato Nacional e Taça de Portugal do PÚBLICO-Policiário / época 2003-2004, acompanhado de uma brilhante e bem-humorada solução apresentada pelo “detective” Dic Roland.
Assim, e com a devida vénia, divirtam-se:


Smaluco e as Três Amigas

Natália Vaz é uma “quarentona” de longos cabelos loiros e de penetrantes olhos azuis, cujos traços fisionómicos e dotes físicos deixam perceber quão bela e sedutora terá sido na idade em que o corpo mais desperta sentidos e emoções.
Na sua adolescência e juventude, foi actriz e bailarina de formação clássica, tendo experimentado as tendências cénicas em moda no pós-Abril de 74, com uma militância sem limites nos grupos independentes nascidos com a revolução, que defendiam um teatro “puro” e sem cedências aos padrões que vigoravam na época.
Natália recusou sempre todas as propostas para fazer televisão e cinema porque detesta as “máquinas”. E levou tão longe o ódio pelas novas tecnologias que ainda hoje repudia o telemóvel e não tolera o computador. Felizmente para ela, a profissão que agora exerce não exige qualquer relação com as “máquinas”: é empregada de balcão numa loja de vestuário feminino, em Sintra.
Natália teve vários amores, arrebatou os corações mais empedernidos e foi cortejada pelos mais disputados solteirões dos anos oitenta, mas hoje vive sozinha num apartamento que coabita com duas “velhas” companheiras de teatro, que há muito deixaram os palcos para abraçar profissões mais comuns.
Judite Marques tem menos dois anos do que Natália, foi corista no teatro de revista, chegou a ser capa de algumas publicações cor-de-rosa, pela sua beleza e jovialidade, e ainda hoje é exactamente o que aparenta ser: uma mulher sem preconceitos nem tabus, aberta e despreocupada, que dedica grande parte do seu tempo aos que sofrem, agora também como auxiliar de enfermagem numa clínica em Almada.
Rute Lopes é a mais velha e a menos interessante das três, como mulher e artista, de uma vulgaridade confrangedora apesar de muito bonita e formosa, que nos palcos nunca fez mais do que figuração especial em espectáculos do chamado teatro declamado. Hoje é funcionária pública numa repartição de finanças de Lisboa, e, com a idade, refinou a sua característica mais desagradável: é tão egoísta que instalou o único telefone existente em casa no seu quarto, que mantém sempre trancado quer esteja presente ou ausente.
Elas são muito diferentes entre si, embora, curiosamente, sejam as três do signo Gémeos, nascidas todas no dia 13, número que consideram como seu talismã da sorte, e partilhem há mais de dez anos a mesma casa, as mesmas roupas, os mesmos perfumes e, por vezes, os mesmos... homens.
José Ventura é camionista de longo curso e cometeu a proeza de namorar com as três “amigas” ao mesmo tempo, sem que nenhuma delas desconfiasse, até ao momento em que Judite o surpreendeu a sair do “quarto-bunker” de Rute, semi-nú, numa madrugada bem recente. Judite ficou de “rastos” com aquela descoberta e Natália também, embora o não confesse.
O único desaire amoroso de Natália, que esta reconhece como tal, deixou-lhe marcas profundas e remonta à sua adolescência, quando as circunstâncias da vida determinaram o fim da sua relação com o detective Smaluco, o único homem que ela diz não conseguir esquecer, apesar de já não falar com ele há mais de dez anos. Por isso mesmo, Smaluco nem queria acreditar quando atendeu o telefone e ouviu a voz de Natália.
- “Que saudades, meu Deus!”, gritou ele num sussurro.
Um turbilhão de recordações emudeceu-o por longos instantes até que Natália irrompeu num choro convulsivo, reclamando a sua ajuda.
- “Onde estás ?”, perguntou ele.
- “Em casa”.
- “Não saias daí. Eu vou já”.
Natália deu-lhe a morada e Smaluco, dez minutos depois, estava a seu lado, para a confortar. Mas ela estava verdadeiramente inconsolável.
- “Algo me diz que aconteceu uma coisa muito grave com a minha amiga Rute. Durante a manhã, recebi na loja diversos telefonemas de colegas dela, que estranharam a sua falta ao serviço. Eu própria fiquei muito preocupada porque ela é uma funcionária exemplar, de uma pontualidade e assiduidade irrepreensíveis.
Natália fez uma pausa para recuperar o fôlego e limpar uma lágrima que se atreveu a rolar-lhe cara abaixo sem aviso prévio.
- “Pedi para sair mais cedo da loja e regressei a casa com um pressentimento ruim. Mal cheguei, corri ao quarto de Rute, bati à porta, gritei e... nada! Tenho a certeza que ela está lá dentro. Algo de terrível terá acontecido”.
Smaluco aproximou-se da porta do quarto de Rute, pediu um gancho de cabelo a Natália e enfiou-o pelo buraco da fechadura, enquanto deitava um olhar carinhoso à sua ex-mulher amada. No tempo em que namoravam, eles abriram diversas vezes daquela forma a porta dos quartos dos hotéis onde ficavam hospedados os colegas de Natália Vaz nas digressões que faziam pelo país, para lhes pregar partidas divertidas.
Mal entraram no quarto, deram com Rute Lopes estendida na cama, morta. Alguém a agrediu violentamente na cabeça, enquanto dormia, com uma enorme “chave inglesa” que se encontrava caída junto do corpo. Natália desatou num pranto e Smaluco afastou-a para fora do quarto, no preciso momento que entravam em casa Judite Marques e José Ventura, carregados de compras, cantando alegremente. Natália deitou-lhes um olhar furioso, mas eles continuaram festivos e animados. E não era para menos: as três “amigas” faziam anos nesse dia.
Houve um homicídio naquela casa. Smaluco, que se auto-define como um detective experiente, atento, astuto, diligente, arguto e inteligente, tinha ali, junto de si, a pessoa que cometeu o crime e ainda não tinha percebido. Por favor, ajudem-no...



Solução de DIC ROLAND

(História triste do “Órrível” crime perpetrado pela desgraçadinha Natália, e o mais que adiante se verá...)


1. Se alguém nasce malfadado,
Sem rumo certo, sem norte,
Tem o destino ensombrado
Desde o berço até à morte.

2. Natália, Rute e Judite,
Em dia treze nascidas,
Viram nisso um bom palpite
De venturas acrescidas.

3. Também o mês, por sinal,
É o mesmo: todas são
Do signo zodiacal
De Castor e seu irmão!

4. Mas – cuidado! – não são gémeas,
Nem são irmãs de nascença.
São, todavia três fêmeas
‘Inda com bela presença...

5 Para seu mal, e apesar
Da crença das três amigas,
O treze é dia a calhar
Para vinganças e brigas.

6 As mil venturas sonhadas
Naquele sonho optimista
Foram mais tarde trocadas
P’lo Ventura camionista!...

7 Um “D. Juan” de serralho,
Que p’ra todas tinha assunto,
Umas vezes a retalho,
E outras vezes por junto.

8 Mas tais açambarcamentos,
Alheios aos bons costumes,
Geram ódios, desalentos
E, sobretudo, ciúmes...

9. Natália sofre; é mulher
Que odeia quem a desfrute,
Quer seja o “galã” chofer,
Quer seja a colega Rute.


10. E quando soube da cena
Que Judite diz que viu,
Embora, em regra, serena,
Natália não resistiu.

11. No dia do aniversário
(Dia triste em sua vida...)
Quis pôr fim ao seu fadário
De namorada traída.

12. Durante a noite abre a porta
Dessa rival indefesa
Que pouco depois jaz morta
Com golpes de chave inglesa!

13. Porquê, a chave? Ora essa,
A ideia foi perfeita:
Mata a Rute e deixa expressa
Uma provável suspeita!

14. Suspeita que, sobre o Zé,
Às maravilhas assenta,
Pois de entre os quatro, quem é
Que possui tal ferramenta?...

15. Consumado o triste drama
Que a noite alta protegeu,
Natália recolhe à cama
E não dorme...(creio eu...)

16. De manhã faz a “toilette”
Com indif’rença estudada;
Judite, ao romper das sete,
Sai de casa para Almada.

17. Sozinha, Natália treme
Numa angústia convulsiva.
Perde a calma e perde o leme
Da sua nau à deriva.

18. Vai a Sintra e volta cedo,
Que o mal-estar é crescente...
Dentro de si mora o medo
Que a domina ferozmente.

19. Mas é preciso iludir
A Polícia, de uma vez.
A Natália tem de agir
Com empenho e rapidez.

20. Lembra-se então de Smaluco,
Seu antigo namorado,
Detective com “trabuco”,
Várias vezes premiado.

21. O amigo, só de ouvi-la,
Fica uns segundos estático...
Mas, a seguir, não vacila
E apela ao senso prático.

22. “Oh! Que saudades” – suspira –
“De a ter e de a sentir
Nos meus braços: doce lira
A cantar e a sorrir!...”

23. Mas logo, sem mais demoras,
Acorda, grita, interpela:
“Que aconteceu? Onde moras?”
...E corre ao encontro dela.

24. Pouco depois, no soturno
E triste abrigo caseiro,
Um Smaluco taciturno
Ouve a história por inteiro.

25. E soube então da surpresa
Das colegas do Serviço,
Que disseram da estranheza
De Rute “levar sumiço”!...

26. Mas como? Se o dia treze
É dia santo em Lisboa?
Lisboeta que se preze
Fica em casa, “numa boa...”

27. Sendo feriado, não há
Serviços de porta aberta;
E Natália, agora está
Mais ou menos descoberta!...

28. O detective, alarmado,
Vai à porta para abri-la;
Mas o quarto está fechado
E ele hesita, vacila...

29. Lembra-se então, no momento,
Do processo que é modelo
Em crimes de arrombamento:
O do gancho do cabelo!

30. E pediu à companheira
Um gancho seu, como outrora
Usavam, por brincadeira,
Em viagens, país fora...

31. Dentro do quarto, um perfeito
Cenário triste, que oprime:
A Rute, morta no leito;
Ao lado, a arma do crime.

32. Judite chega entretanto
Com Ventura pela rédea.
Ouvem, transidos de espanto,
A notícia da tragédia.

33. É dia de anos, festivo,
(Ventura até traz charuto!...)
Mas o Destino é cativo:
A festa acabou em luto...

34. Levam Natália a reboque,
Para bem longe dali.
Mas Smaluco, ainda em choque,
Já não fala nem sorri.

35. Dura certeza o arrasa
E já pressente um ciclone,
Ao saber que nesta casa
Só existe um telefone.

36. Sendo assim, como se aceita
Que Natália o tenha usado,
Se os telemóveis enjeita
E o quarto está fechado?

37. “É simples” – disse consigo
O desolado inspector -
“Natália aprendeu comigo
O velho truque abridor!...”

38. Abriu... e, ao que parece,
Da mesma forma fechou,
Só depois do S. O. S.
Que ao seu amigo lançou

........................................

39. Smaluco não acredita
Na dolorosa evidência,
Mas o dever é quem dita
Uma recta consciência

40. E num assomo febril
De raiva, ao prender Natália,
Foi ao Casino Estoril
Nessa noite, ver “Amália”!!!


Vila Nova de Santo André, 31 de Outubro de 2003

Dic Roland


 
enigmas e contos policiais

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