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quarta-feira, janeiro 28, 2004
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Dic Roland, A.Raposo, Inspector Moka, Gisa, Rip Kirby, Daniel Falcão, Arnes e Dr.Gismondo foram os internautas que fizeram chegar os seus votos à caixa de correio do Detective Smaluco, elegendo uma das três propostas de texto para o Quarto Capitulo do romance “Pão de Canela” que se submeteram a sufrágio.

O resultado da votação proporcionou um novo empate. As propostas subscritas por A.Raposo e Inspector Huga Booga registaram 4 (quatro votos), sendo por isso necessário recorrer mais uma vez ao voto de desempate previsto no ponto 4 do Regulamento do Passatempo de Escrita Policial. Chamado a pronunciar-se, Smaluco optou pela proposta nº 2, da autoria do Inspector Huga Booga.

Posto isto, o romance “Pão de Canela” vai assim:

PÃO DE CANELA (título provisório)
Primeiro Capítulo


Todos os dias úteis de todas as semanas, desde há mais de um ano, vinham a mirar-se longamente ao pequeno almoço. Ele escolhia invariavelmente um “bretzel” que acompanhava com meia de leite, ela pedia um “croissant” com manteiga, com pouca manteiga, insistia, e um chá verde. Não se falavam. Não se cumprimentavam sequer. Ele abria o “Notícias”, ela lia o “Público”. Lá fora, na Praça das Flores, espaço verde na lisboeta encosta entre o Príncipe Real e S.Bento, sucediam-se as estações, as ramagens, as iluminações de Natal, as festas populares em Junho, os nevoeiros de Novembro e de Fevereiro. Os lugares que escolhiam na característica sala eram, também, quase sempre os mesmos – apenas alterados quando alguém chegava mais cedo e lhes trocava as voltas. Dir-se-ia que se evitavam.

Um dia, a casualidade aproximou-os. A fartura de sucursais bancárias, em esquinas fronteiras, tornou-se subitamente fome, quando ambos os estabelecimentos caíram nos braços de patrões que os fecharam, que “reestruturaram” o respectivo pessoal e, sobretudo, que levaram consigo as hoje imprescindíveis caixas atm. Os comerciantes e moradores da área lamentaram-se, fizeram listas de assinaturas, escreveram para os jornais, colaram papelinhos nos troncos onde antes se anunciava, em fotocópias mal tiradas, que havia uma sessão de fado vadio em pleno Bairro Alto ou que o "Boby" se pirara dos carinhos da dona, arrebatado pelos odores caninamente irresistíveis duma fêmea em cio. António Rosa, com a pasta cansada em que guardava os processos que estudara ao serão, tendo de ir a S.Bento para se abastecer de algumas notitas das novas, cheias de europas, pontes e estilos, chegou ali mais tarde que o costume, mal disfarçando o desagrado de encontrar na sua habitual mesa um casalinho em aparente fim de noite e, pelo ar já derreado que ambos mostravam, em pouco promissor início de manhã. Madalena olhava o jornal e anotava, em folhas A4 dobradas em caderno, algumas ideias soltas, que poderiam influir na criação de um novo vestido para um outro outono que ainda vinha longe. Ficaram próximos. Suficientemente próximos para António apanhar o volume do “Kaputt” que, mal pousado na convexidade do assento da cadeira à direita de Madalena, não escapara ao movimento da empregada brasileira, apressada a trazer o habitual “bretzel” para o não menos habitual cliente.

Lê Malaparte, perguntou ele. Leio, respondeu ela. Eu também...mas agora que Malaparte caiu em desuso, vendendo-se em saldo em qualquer supermercado... Eu também sei, cortou Madalena, mas gosto da forma como consegue descrever o que viu e o que talvez não tenha visto, segundo muitos... Falaram sumariamente do autor e da obra. António prometeu-lhe trazer alguns outros livros da sua biblioteca. Madalena agradeceu. No decorrer do tempo, que passava para além do normal e que deixara os jornais abertos esquecidos, António questionou: E, já agora, conhece a casa de Malaparte em Capri? A casa que ele construiu nas arribas do Cabo Masullo e que baptizou de “Casa como eu”? Não, não conheço... Sabe, eu também não, a não ser em fotografia. Mas de há muito eu sonho poder visitá-la. Só que não encontro quem queira ir lá comigo! Não sei porquê, lançou ela surpreendida com a inesperada ocorrência de tal degelo em manhã de Outono ainda quente, se alguém me convidasse eu não desprezaria uma oportunidade de ir a Capri, com casa de Malaparte ou sem ela! Quer então vir daí? Isso é um convite? É uma sugestão! E por que não...é coisa a pensar!

E o diálogo daquela manhã passou a ser a regra. O “bretzel” iria irmanar o “croissant”, nas mesmas manhãs, no mesmo prato, começando até a cutucarem-se bem cedo, em até então inéditas manhãs de sábado. Lá fora, no rito de todos os anos, as árvores despiram-se e as gotas de chuva perlaram os ramos, marcando os tempos litúrgicos que vão do nascimento do menino à morte do homem. Decidida a utilização da viatura de António, iam montando cuidadosamente a viagem, cujos meandros desenhavam com o apoio de mapas, de itinerários colhidos no “local” www.michelin.com e de um sonho que passara a ser conjunto, expresso nas mãos que se iam gradualmente tocando.

Saíram de carro, duas semanas depois da páscoa. Tinham acordado dizer o mínimo a amigos e conhecidos. Tinham também acordado, apesar da menor experiência de Madalena, em revezar-se ao volante. No escritório, António distribuiu processos, assinou substabelecimentos, deu instruções suficientes para que os colegas pudessem assegurar o expediente da próxima quinzena. No “atelier”, Madalena deixou igualmente instruções. Em casa, à mulher e aos filhos, António sugeriu uma viagem de serviço, que o levaria a França por duas semanas. Madalena, tirando uma prima distante que estava colocada no Politécnico de Setúbal e que equilibrava o preço do alojamento em Troino com um meio-tempo prestado numa seguradora, não tinha mais família a quem deixar recados.

Dois levantamentos de dinheiro, feitos em Faro, foram os últimos sinais por ambos deixados em terras portuguesas. Previdente, António movimentara antes da partida alguns fundos, incluindo reforços que transferira para a conta conjunta e que destinava a prevenir despesas domésticas extraordinárias, como habitualmente fazia quando das suas deslocações. Madalena deixara na míngua as suas duas contas. De acordo com instruções transmitidas a alguns escritórios com quem mantinha relações e tendo em conta aquele confuso período de troca de moedas, António tinha previsto a possibilidade de levantar dinheiro em Castellón, Sète e Ventimiglia. Bastante dinheiro até. Madalena incumbira-se de, sem avançar grandes detalhes, cobrar, em Barcelona, uma dívida de uma cliente catalã do “atelier”, proporcionando-se assim a disposição de um razoável montante de pesetas. Provar-se-ia mais tarde que o levantamento em Castellón teve lugar, como previsto, mas nem em Sète, nem em Ventimiglia, nem em Barcelona tinha sido reclamado qualquer montante. Não houve mais levantamentos, cobrança ou notícias. Na confeitaria da Praça das Flores prolongava-se a ausência de ambos, enquanto a Primavera se ia resolvendo nas últimas chuvas, enxota-pombos precedendo a aproximação de um Verão que se adivinhava quente.

As duas semanas tinham-se completado, sem novas nem mandados. Na segunda feira seguinte, a mulher de António telefonou para o escritório, a saber de notícias. Conhecia-se de há muito o laconismo entre ambos, o que justificou o “devem estar a acabar-lhe as massas e por isso se lembra dele!”, com que o dr.Aurélio comentou o facto, enquanto afiava meticulosamente o lápis com que teimava em anotar as minutas e que não trocava por qualquer lapiseira, por muito AG Spalding que fosse. Aliás, no escritório, nada tinham de mais para dizer. Dias depois, era do “atelier” de Madalena que procuravam a trabalhadora-estudante, para desta saber se tinha recebido qualquer mensagem da prima... Negativo, também!

À terceira semana houve notícias. Alguém voltou. Mas apenas um dos que tinham partido.

a) Inspector Moka


Segundo Capítulo

A Páscoa, em 2002, foi a 31 de Março e, piada velha, calhou ao domingo. Com ela a costumeira febre de consumo, o exodo das cidades, a nacional hecatombe nas estradas. O ano trazia o ónus dum popular provérbio, lembrando que “Páscoa em Março ou é fome ou é mortaço”, mas nem pela lembrança desse ditado, por muito que a festa se escondesse no último dia do mês, nem pelas tolerâncias de ponto concedidas para segunda-feira de manhã, iriam estas jornadas acolher acrescida prudência.

A leste da cidade, num dos arruamentos ainda sem termo definido da zona já órfã da Expo 98 e agora em progressiva ocupação urbana, a norte da via férrea, o Rover 414 verde e sujo permanecia solitário, com a legenda “Trata 977 081 006” em cartolina branca, encostada e presa à superfície interna do vidro lateral, do lado do condutor, por uma simples etiqueta de correio-azul. No banco traseiro, desenhos e jornais dobrados. O fim de semana prolongado interrompera a actividade babélica da construção civil e esvaziara muitas das instalações comerciais próximas – evitando assim que nenhum abelhudo viesse questionar a estranha presença daquele carro. Aliás, como depois se comprovou, ninguém sabia exactamente “desde quando”, embora alguns arriscassem que já o teriam visto ali uma ou duas manhãs antes da desmobilização civil iniciada na quinta-feira santa. Certo é que, passada a “ponte”, tal permanência iria ainda manter-se escassos dias, até que o estroncamento maldoso dum retrovisor lateral, o crescente questionar na vizinhança quanto à origem e propriedade do automóvel, a hipótese de que fora roubado e que, como tal, poderia beneficiar eventuais alvissareiros, tudo cumulado com a crescente fedorina que dele se exalava, contribuíram para que, finalmente, fosse comunicada à PSP a enigmática ocorrência.

Não, não havia qualquer participação de roubo relacionada com aquele veículo, registado em nome de um António Ferreira Neto, com morada na Amadora. Sem telefone na lista. Uma tentativa de contacto no endereço indicado iria assustar uma rotunda mãe de família cabo-verdiana quando tranquilamente preparava o jantar. Corroborada em tudo pelos vizinhos, afirmou ali morar há mais de dois meses, ter “alugado” a casa em agência que indicou, e mais declarou, com o nervosismo que lhe causavam fardas, que não conhecia nem queria conhecer qualquer anterior morador da “sua casa”, fosse ou não fosse Neto ou avô. No prédio, de dois andares e seis fogos, dois ou três vizinhos recordavam-se do locatário do 2º direito, que tivera passagem efémera, de pouco mais que meio-ano, e que não viam desde que se fora embora, à cerca de uns três meses. Entrava e saía a desoras e era ou dizia-se engenheiro. Vivia só, sem familiares, sem qualquer bicharada conhecida, mas às vezes entrava-lhe em casa uma moça muito mais nova, desenvolta, que passava lá a noite e que aguçava a curiosidade (e certamente o apetite) do pessoal masculino local, levantava sérias reservas ao mulherame e a quem, jurariam, o engenheiro chamara algumas vezes de Madalena. Pois! (interjeição acompanhada de um piscar de olhos). O homem, esse tinha de facto um carro verde que, pela descrição, não destoava do tal Rover abandonado. Em conversa ocasional e rara, queixara-se da dificuldade de conseguir rapidamente um telefone fixo. Relativamente novo, pendia já para uma meia-idade que a calvície nascente denunciava. Era muito educado, apesar do cheiro a charuto que por vezes inundava a caixa da escada e, mais raramente, do ruído duma “música séria”, que ficava a tocar um pouco alto. Deixara o andar bastante sujo, com jornais e revistas empilhados e com alguns tarecos que nunca mais veio reclamar e que acabaram, quase todos, junto ao mais próximo contentor do lixo.

A persistência do cheirete, cada vez mais pútrido, e a inoperância das diligências empreendidas acabaram por levar a polícia a abrir as portas da viatura -- o que tornou o ambiente próximo simplesmente insuportável. Levantada a tampa da mala, logo descobriram a causa. Vestido de forma convencional, parcialmente coberto com uma manta de viagem e deitado em posição fetal, o cadáver tinha ainda postos os auscultadores ligeiros e de boa marca que se ligavam a um leitor portátil de CD’s. Introduzido neste, o disco com quatro “Concerti Grossi” do Opus 6 de Haendel deixara há muito de se ouvir e de ser ouvido. A respectiva caixa juntava-se a outras duas, uma com peças sortidas de Mozart, outra evocativa de Gilbert Bécaud, a abrir com o conhecido “Et maintenant?”, que tantos corações fizera romanticamente palpitar desde 1975. Ainda, naquele espaço limitado da mala, foram recolhidas e devidamente acondicionadas diversas embalagens vazias de um barbitúrico forte, uma garrafa também vazia de “JB” e uma palhinha de refrigerante, como constava do relatório policial. O exame dos documentos contidos na carteira, mantida no bolso interior esquerdo do casaco, com cartões de crédito, alguns cheques por utilizar e uma quantia modesta em notas novas de pequeno valor, confirmou tratar-se, de facto, de António Ferreira Neto, engenheiro mecânico, 47 anos, natural de Sousel e, de acordo com o BI, residente na Amadora. Poucos cartões de visita, de execução esmerada mas de cantos já deformados, repetiam a morada onde hoje sabiam viver uma mamalhuda senhora, demasiado tisnada pelo sol de sucessivas gerações. Nos bolsos pouco mais: uma “bic-cristal” preta, meio consumida, uma lapiseira, duas chaves tipo Yale, o porta-chaves do automóvel, com o respectivo “comando”. Um envelope aberto, sem destinatário, guardava uma carta dactilografada em computador, assinada a esferográfica azul, que o “de cujus” dirigia à sua ex-mulher, comunicando, de forma telegráfica e seca, como de correspondência comercial, a decisão definitiva e reflectida que tomara de por termo à sua vida. Sem invocar qualquer razão, sem revelar qualquer sentimento ou provisão, sem um adeus que fosse, até sem data e sem nome para além do “A minha ex-mulher” que escrevera como primeira linha. Quem primeiro a recebesse, que procurasse a destinatária, num ali surpreendente estilo “toma e embrulha”.

Também na mala do carro, uma pasta de cartolina verde-claro, com abas e elásticos, continha uma colecção de doze desenhos, dobrados como é de uso. Na face exterior, a lápis ténue, podia-se ler a palavra “Almansor”. No banco traseiro, uma outra colecção de desenhos acompanhava meia dúzia de “diário de notícias”, nenhum dos quais posterior a 23 de Março. Os desenhos de ambas as colecções, de evidente natureza técnica, reportavam-se a equipamentos há muito vendidos como sucata, após o desmantelamento de uma instalação química situada a norte de Lisboa, ironicamente epilogada num processo de “recuperação de empresas” em que os bancos credores abriram mais os olhos para o imobiliário afecto à produção que para o prosseguimento da actividade industrial e a manutenção de emprego. Nasceria ali mais uma urbanização! O tema até tivera honras de aparição num noticiário das oito, com trabalhadores idosos por detrás de cartazes, e levara alguns desmancha-prazeres da oposição a ousarem de perguntar, em sessão aberta da câmara, se tão apetitosos terrenos estavam comprovadamente descontaminados para os fins habitacionais a que, com público clamor, eram agora votados. Não deixava de ser curioso que o conjunto de doze desenhos contidos na pasta estivesse totalmente repetido no conjunto do assento traseiro, que, além destes, continha mais cinco diferentes e “desemparelhados”. Outra diferença existia: nos desenhos da pasta alguém desenhara grandes “balões” a marcador vermelho, em torno de certas peças do equipamento fabril, que numerara de #01 a #16, ao passo que todos os desenhos, no outro conjunto, se apresentavam como saídos do aparelho de cópia, sem qualquer marcação aposta.

Longe dali, no outro extremo da cidade, Madalena chegava a casa. Acendeu um cigarro, colocou um CD na aparelhagem Sony que tinha comprado tempos antes para se dar companhia. Sentou-se no sofá, descalçou os sapatos e já tranquila, distendida, olhando o nada no tecto, pensou rapidamente na viagem que, em breve iria fazer e que esperava a conduzisse a secretos objectivos. Gilbert Bécaud, enchendo a sala, repartia o espaço com o fumo que subia do cigarro. “Et maintenant...”.

a) Inspector Moka


Terceiro Capítulo

Desde o início da viagem algo de diferente sugeria a António Rosa que se não tratava de uma simples “excursão de prazer”. Ao levar Madalena a casa, na véspera da partida, esta tinha-lhe pedido para por no carro duas pesadas caixas de madeira, limitando de forma inesperada o espaço da mala. No dia da partida, juntou-lhes uma desproporcionada mala de viagem e dois gordos envelopes azuis de papel entretelado. Madalena esclareceu tratarem-se de artigos a entregar em Barcelona, contra o montante a cobrar — algo que nunca antes referira. Finalmente, um outro envelope, esse de plástico, com documentos, foi posto no porta luvas.

Saíram no domingo, por Madalena não querer meter-se a caminho em dia 13. Tinham combinado passar aquela primeira noite numa vivenda vazia mas sempre preparada que pertencia a um amigo de António e que, no limiar do Alentejo, combinava um aspecto exterior irrepreensível com o recato e a comodidade exigíveis a uma “garçoniére” requintada, valorizada pela relativa proximidade das praias algarvias e suficientemente acoitada, pela distância, das suspeitas de uma consorte ciumenta.

O programa estabelecido era simples: procurariam chegar a Capri em jornadas que não exigissem mais de 8 horas diárias de condução, sempre apoiadas em sítios que, por qualquer forma, “aculturassem” o romance sem desacamar o seu aspecto óbvio. No segundo dia ficariam em Manzanares, procurando lugar no Parador local, no terceiro cerca de Castellón, no quarto dia em Sète e no quinto já em Génova, prontos a descer a bota até Capri, que - forçando a nota - atingiriam no sexto, para que, no sétimo dia, esquecessem o descanso bíblico e visitassem os monumentos principais da ilha, com particular atenção para a “Casa como Eu” que constituia a meta oficial da peregrinação.

Se outra surpresa surgiu quando, em plena E05, passada Sevilha, Madalena demonstrou não ser uma condutora nem tímida nem inexperiente, o pior estava reservado a António Rosa na noite de 16 para 17, depois da chegada a Castelló. Levantado o “capital” ali postado, tinham-se afastado mais alguns quilómetros ao longo da costa e escolhido, para fim da etape, um pequeno e confortável hotel de Oropesa del Mar, voltado a um Mediterrâneo a perder de vista. Depois de transportar para o quarto o malão terceiromundista de Madalena e a malinha de executivo em férias em que trazia o essencial da pernoita, pois que geralmente dormia nu, António colocou o “pacotinho de euros” recebido em Castellón no envelope de plástico e – como tencionavam sair -levou este conjunto para a aparente segurança do cofre da recepção. Já debaixo do chuveiro, pareceu-lhe que Madalena estava a usar um telemóvel, mas nada disse. Saíram a pé, para “cear”, e como alvitrado por Madalena, tinham-se seguidamente excedido numa intimidade dançarina, razoavelmente bebida e aconchegada numa “boite” próxima. Deitaram-se tarde, pedindo ao porteiro que os acordassem cedo. Quiçá efeitos da viagem, do banho, do jantar e da bebida, António sentia-se muito pesado e caiu logo num sono profundo, ao lado duma Madalena que se declarava também ensonada e pronta para mais nada que não fosse dormir.

Quando acordou, com uma dor de cabeça terrível, o sol tinha rompido entre núvens e inundava o quarto. A boca sabia-lhe a cortiça., concretizando uma cruel ressaca, daquelas que podem resultar da muita quantidade, ou da má qualidade ou de ambas — o que talvez fosse o caso. Estranhando a demasiada claridade e ainda meio ensonado, estendeu o braço para o local onde deveria estar a sua companheira de viagem e sabe-se lá do que mais, a seu devido tempo. Nada... estremunhado acordou e olhou para o despertador: eram 3 horas e meia da tarde, hora local. Não, não o tinham acordado! E Madalena não estava ali! Nem as malas, nem a roupa, nem documentos, nem dinheiro, nada! A surpresa foi mais radical que qualquer aspirina. Pelo telefone pediu um robe, que lhe levaram, de turco, demasiadamente reduzido, dando-lhe um aspecto tristíssimo. Pediu a presença do gerente. Explicou-lhe a situação, solicitou-lhe explicações.

Pois, a Senhora tinha saído de manhã muito cedo, antes das seis horas, dizendo que ia a Castelló a casa de uns amigos. Que o senhor estava doente e que não o incomodassem. Ia inclusive aviar-lhe um medicamento urgente, para voltar antes das dez. Almoçariam no hotel e só sairiam à tarde, o que, pela pequena ocupação, lhe disseram ser possível. Colocou a mala grande no carro e saiu com ar preocupado. Face a esta situação e ao dístico “não incomode” colocado na porta, tinham-se limitado a cumprir. Certamente que se tratava de um mal entendido — sugeriu o gerente com ar cúmplice — e que a senhora voltaria em breve. Preparariam uma refeição ligeira, que trariam ao quarto, e o senhor poderia esperar vendo televisão. António, envolvido no robe, sem roupa, sem documentos, sem carro, sentado no sofá, não pode deixar de se recordar do primeiro filme dos Lumiére, que vira em miúdo e que pela sua simplicidade tanto o impressionara: “l’arrosoir arrosé”.

Minutos depois, reavaliada a situação com o conforto de um “consomé” quente, a reacção de António já não seria tão tranquila. Madalena ainda não chegara, pelo que havia mesmo que actuar. Em primeiro lugar, um telefonema para o escritório do colega de Castellón, onde na véspera levantara o dinheiro. Tinha saído da cidade, mas deram-lhe o número do telemóvel. Referiu-lhe em palavras breves o que se passava e pediu-lhe que viesse ao seu encontro, em Oropesa, onde permanecia indocumentado, sem carro, sem cheta, com horror a todo o tipo de publicidade, e, além disso, presumivelmente intoxicado com qualquer mistela adicionada à bebida. E sem Madalena, de quem não tinha notícias ou mensagens e a quem poderia ter sucedido sabe-se lá o quê.

Participação discreta à polícia, que veio logo a seguir. Tarde já para contactar com o consulado português mais próximo, mas suficientemente cedo para difundir os dados da viatura. Pairava no ar a dúvida de um desajuste entre namorados, de um arrufo de que António escondesse pormenores e até, sabe-se lá, de algo mais que isso. O agravamento de um mal estar, com vómitos, boca seca, perda de equilíbrio e recrudescidas dores de cabeça, justificou uma visita ao hospital local. Face aos sintomas, aos primeiros resultados analíticos e á evidente ansiedade, o médico de serviço aconselhou o internamento sob vigilância médica, por uma noite. O colega insistiu e iniciou as diligências para aplainar a situação. Procurou saber que valores ou títulos se encontravam também desaparecidos. Sem tocar no envelope, que continuava no cofre, elaborou, com um António já meio sedado, uma lista das possíveis comunicações a fazer – acolhendo os pedidos para que se não desse eco público àquela situação, aquém e além fronteiras, dado o melindre que a sua presença ali revestia. Que sossegasse pois havia experiência disso, já que nada espanta numa região que viva do turismo.

Só no dia seguinte lhe permitiram sair do hospital e regressar ao hotel de Oropesa del Mar. Conferenciando com o colega e um associado deste, foi-se montando o conjunto de indagações necessárias para restabelecer um mínimo de apresentação e as suficientes garantias, nomeadamente de não terem existido mais levantamentos. Não lhe era simples telefonar para Portugal e, quando o fez, foi através de pessoa de muita confiança, que jamais deu com a língua nos dentes e que motivou os devidos interesses pelo assunto, nos planos policial, diplomático e bancário. Pôs-se à disposição das autoridades locais, que procuravam encontrar uma Madalena também desaparecida e o automóvel com que desaparecera.

O envelope de plástico amarelo escapara “à voragem” por estar no cofre do hotel e o seu conteúdo foi inventariado. Para além do dinheiro, registou-se um recorte detalhado de um mapa fotocopiado de uma carta militar portuguesa ou de um mapa com escala de idêntica generosidade, a minuta duma factura de “serviços diversos” impressa em computador, mas sem data e sem identificação de qualquer das partes e uma folha de instruções (em línguas sortidas) que descrevia um pedómetro de marca “Tronic”. Agrafado ao mapa, um cartão de visita, vincado a meio, de António Ferreira Neto, Engenheiro Mecânico (IST), mas sem qualquer outra indicação, e no verso do qual, escrito a esferográfica, se reconhecia o número: 977081006.

a) Inspector Moka


Quarto Capítulo

Madalena chorou copiosa e desalmadamente que nem uma arrependida quando desencarnou o monstro que transporta dentro de si e voltou a ser a bela mulher terna e delicada, sensível às coisas do espírito, das artes e das letras, sempre disponível para as grandes causas sociais e humanitárias, de uma fidelidade quase canina aos seus amores enquanto estes duram e desde sempre assolapadamente apaixonada pela vida. Os olhos marejados de lágrimas e os espasmos causados pelo choro convulsivo obrigaram-na a encostar o carro à berma da estrada que a levará até Paris, cidade luz e capital da moda cosmopolita, onde há muito tempo aspira exibir as suas criações.

Para Madalena, António Rosa jaz morto num quarto de hotel em Oropesa del Mar. Na noite anterior, a “outra” que há em si preparou com todo o cuidado e rigor mais um dos seus muitos crimes. Levou o seu António, o único dos Antónios que verdadeiramente amou – descobriu ela agora – para uma noite de muita música, fumo e álcool, numa discoteca “rasca” das imediações de Castellón. Na sua malinha de mão, um pó infalível, mortal, que trouxera de Colômbia, tinha como destino certo o copo da bebida de António Rosa. Ao terceiro uísque e depois de algumas danças próprias para “constituir família”, com longos, ardentes e apaixonados beijos, nos olhos, no pescoço, na boca, à mistura com juras mútuas de amor eterno, havia chegado a hora de levar à prática o crime premeditado.

As mãos tremeram-se-lhe, a pulsação começou a bater forte e o seu peito gerou um nó que lhe impedia a respiração. A bela e o monstro pareciam lutar entre si, nas entranhas de Madalena, e no calor da luta o pó quase se derramou por inteiro no chão. Dentro do copo acabou, no entanto, por ficar uma boa parte do “produto” fatal. Bastava então que António Rosa bebesse o que lhe restava do seu terceiro uisque, quando regressasse da casa de banho, para cair redondo num sono profundo e definitivo que o levaria até ao paraíso dos céus. Ele voltou alegre e agitado, talvez imaginando já a noite de delírio e prazer que o esperaria nos braços de Madalena, na cama daquele hotel onde em boa hora decidiram pernoitar na segunda pausa da longa jornada que os levaria até Capri. Sorrindo, lânguido e amável, sentou-se ao lado de Madalena, pegou-lhe na mão, beijando-a ternamente, e, sempre a sorrir, levou o copo à boca e bebeu o que restava do seu último uísque. Ele era o quinto António que caía na cilada de Madalena.

Onde houvesse um António por perto de um domingo de Páscoa a morte espreitava afoita e ligeira, com as suas ferozes e temíveis garras de fora, pronta a desferir um golpe mortal na sua presa incauta. Primeiro foi o António José, um jovem cabeleireiro de orientação sexual duvidosa que mereceu os favores de Madalena, e com quem esta passou longas noites de luxúria a par de acesas discussões sobre cortes de cabelo e de penteados que mais se ajustavam às suas criações para a moda Primavera/Verão do ano seguinte. O corpo foi descoberto no sábado de aleluia, por volta das dez da noite, à porta do Salão de Cabeleireiro onde trabalhava, com dois tiros no peito.

Na Páscoa de 2001, a vítima chamava-se António Pires, tinha pouco mais de vinte e cinco anos, era jogador de futebol de primeira num clube de segunda e conheceu Madalena num desfile de encerramento da Moda Lisboa. O seu corpo apareceu a boiar no rio Tejo numa manhã quente e soalheira de Abril, junto às Docas de Alcântara. Nesse mesmo ano, a “sorte” coube também a António Raposo, um homem maduro já aposentado, pequeno, simpático e anafado, de cabelo bem cuidado e grisalho, membro bastante activo de uma Tertúlia que animava todas as últimas quartas-feiras de cada mês uma certa Esplanada da Avenida da Liberdade, em Lisboa, num concorrido almoço onde se discutiam crimes, polícias e ladrões. Deram com ele em casa, debruçado sobre a sua secretária pejada de livros de Agatha Christie, Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle, Ross Macdonald, Dashiell Hammet, Júlio Conrado, Scott Turrow, Rex Stout, Patrícia Highsmith e Dick Haskins, morto com uma faca enfiada nas costas.

Em 2002, a morte escolheu António Neto, engenheiro mecânico, homem sem paradeiro certo na vida e ao que se julga saber de muitas e pouco duradouras paixões, que se perdeu de amores por Madalena e acabou os seus dias na mala de um Rover 414, sem nunca ter percebido que Mozart, Haendel e Gilbert Becaud são pouco compatíveis e que barbitúricos com álcool não dão saúde a ninguém!... A fome do monstro continuava insaciável. Era preciso mais. Mais dor, mais morte, mais sofrimento, e António Rosa foi o eleito. Madalena desatou novamente num pranto. Ela tinha amado todos, à sua maneira é certo, mas António Rosa foi um caso muito, muito especial. O namoro durou meses e meses, por entre dezenas e dezenas de meias de leite e chás verdes, “bretzels” e “croissaints”, primeiro com alguma timidez mal disfarçada em leituras apressadas dos matutinos de cada dia e depois com mais desenvoltura e arrojo graças a Malaparte e ao seu “Kaputt”. Aos poucos foram descobrindo o muito que havia em comum entre eles. Não fosse a “outra” e Madalena e António Rosa decerto chegariam a Capri… juntos e felizes.

De súbito, um automobilista abrandou a marcha do carro e quase parou para ver o que se passava com a jovem debruçada sobre o volante da sua viatura, chorando desalentada. Madalena tremeu. Lembrou-se então que daqui a nada a polícia estaria no encalço de um Laguna cinzento de matrícula portuguesa registado em nome de António Rosa. Era preciso rapidamente abandonar o carro algures numa povoação vizinha. Por outro lado, o seu cabelo castanho escuro de corte curto seria coberto por uma longa cabeleira loira e os “jeans” que usara no hotel, onde não foi identificada, seriam substituídos por uma roupa mais feminina. Depois era preciso alugar um automóvel que a levasse até Paris.

Mais de dois mil quilómetros a separavam do destino. Tentaria perder o menos tempo possível na viagem. Faria apenas breves pausas para desentorpecer as pernas, relaxar os músculos e tomar alguma coisa, aqui e ali, e dormir muito pouco. A pressa neste caso é amiga da perfeição e do sucesso… do crime. Chegando a Paris tinha muito que fazer. Monique e Antoine esperavam-na no apartamento/atelier que dividiam há já alguns anos no Quartier Latin. São ambos estilistas, de algum renome em Paris e em Roma, e “ouviram falar” do trabalho de Madalena numa revista especializada em moda emergente. Tinham muita curiosidade em conhecê-la e dispunham-se ajudá-la a entrar no complexo e difícil mundo da moda parisiense.

Longe vão os tempos em que os emigrantes portugueses entravam em França “a salto”, com uma pequena mala de cartão onde transportavam os seus parcos haveres. Madalena chegaria a Paris ao volante de um automóvel de média cilindrada, levando na bagagem, para além de muitos sonhos, um grande malão onde guarda o melhor das suas “toilletes” e duas malas de madeira onde carrega dezenas de figurinos e algumas peças de sua criação, já confeccionadas, para um primeiro desfile. Ela tinha tudo planeado até ao mais ínfimo pormenor. Nada foi deixado ao acaso. Para começar, antes de tudo o mais e assim que chegar a Paris, tem de fazer um importante telefonema.

… E o telefone tocou em Troino.
Quando Sónia, a jovem estudante-trabalhadora prima de Madalena, atendeu, ouviu do outro lado da linha: “Boa tarde. Daqui fala o Inspector António Jorge, da Policia Judiciária…”

a) Inspector Huga Booga


ATENÇÃO

Entre os dias 10 e 20 de Fevereiro de 2004, os “detectives” que queiram participar na criação do Quinto Capítulo do “Pão de Canela” devem enviar para o endereço ssantos@tnsj.pt as suas propostas de texto (com o máximo de 7.000 caracteres). Recorda-se que os textos propostos devem enquadrar-se no espírito e história(s) dos Capítulos anteriores.

 
quarta-feira, janeiro 21, 2004
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

E vão quatro… capítulos do romance “Pão de Canela”!

Desta vez foram apenas três as propostas de texto que entraram na caixa de correio electrónico do “detective” Smaluco. A primeira da autoria do veterano A.Raposo, a segunda assinada pelo neófito Inspector Huga Booga e a última rubricada pelo consagrado Inspector Moka.

Compete-nos agora (a todos nós, sem excepção) apreciar aquelas propostas e optar por uma delas, através de voto directo a enviar para o endereço ssantos--tnsj.pt, até dia 27 de Janeiro, impreterivelmente. Para o efeito basta escrever:

“Voto na Proposta nº. 1 – original de A.Raposo ”

ou
“Voto na Proposta nº. 2 – original de Inspector Huga Booga”

ou

“Voto na Proposta nº. 3 – original de Inspector Moka”


Ora, então, leiam com atenção:


Pão de Canela (título provisório)
Quarto Capítulo
Proposta nº. 1 – original de A.Raposo


O jovem inspector Lopes, da Judiciária, sentou-se confortavelmente na sua cadeira, respirou fundo e gozou, por breves instantes, o prazer do seu primeiro caso, depois do estágio. Este era o “seu” primeiro caso ao serviço da corporação.
O relatório que lhe tinha sido distribuído não era muito extenso e resumido constava de
...« vários indivíduos do sexo masculino tinham aparecido mortos, de uma forma semelhante, dentro da bagageira dos seus carros e com um intervalo de poucos meses.
A causa da morte tinha sido sempre o envenenamento...»
Lopes tinha aprendido uma máxima no seu curso: “Os assassinos tem tendência para repetirem os métodos que utilizam com bons resultados”.
Este caso, eventualmente, teria a ver com isso.
Quem aparecia, dentro da própria bagageira do seu carro eram sempre homens, de meia idade. Os locais eram sempre pouco frequentados. A situação económica sempre desafogada. As suas contas bancárias tinham sempre um levantamento razoável antes das respectivas mortes. Um valor elevado, mas não exorbitante.
Sobre as vidas dos 3 homens aparecidos mortos, nos últimos dois anos, pouco haveria a juntar. Dois tinham sido casados, mas já separados, ou em vias de. O terceiro fora advogado. O traço que os unia era frágil, mas comum. Todos viviam na capital ou nos arredores. Os três vinham regularmente ao centro da cidade para trabalho ou lazer. Frequentavam um triângulo: Largo do Rato, Av. da Liberdade, Assembleia Nacional.
As investigações sobre as suas vidas particulares ainda mal tinham começado. Era esse o trabalho que competia ao inspector Lopes. Um trabalho feito com minúcia, perserverança e bom senso. Sobretudo muito bom senso.
“O homem é um animal de hábitos”. Esta era a máxima sempre batalhada pelos seus professores de criminologia.
“Pela boca morre o peixe” tinha Lopes colectado igualmente para juntar à frase emblemática. E Lopes costumava arrematar dizendo: “ quantos tipos não vão alegremente fazer dezenas de quilómetros só para comer uma bela sardinha assada?”
Lopes acabara de receber, desta vez da polícia castelhana, através da Interpol, sobre um caso sucedido há pouco numa localidade do sul de Espanha, Oropesa Del Mar.
Um casal dormira na localidade. Na manhã seguinte o homem acordou sozinho. O carro, e o dinheiro que levantara na véspera tinham desaparecido. A mulher sumira!
O dono da pensão jurava que eram portugueses. Eram esses os B.I.´s que tinham exibido. Mas, toda a gente sabia que bilhetes de identidade falsificados eram mais que muitos... Para mais o homem teve que se dirigir com urgência ao hospital local para uma lavagem ao estômago. Desconfiava que tinha simplesmente sido envenenado.
No hospital fizeram um trabalho impecável.
Lopes conseguira o telefone do homem. Tinha por nome António Rosa. Advogado.
Trabalhava para vários serviços na Assembleia da República.
António acabou encontrando-se com Lopes e pô-lo ao corrente de toda a história, tintim por tintim.
Numa bela manhã, passados oito dias, Lopes ocupava na Pastelaria Pão de Canela na Praça das Flores, o lugar que em tempos, António usava regularmente, lendo o Notícias.
Com um passinho nervoso e miudinho, Madalena entrou no café e sentou-se largando na mesa o Publico e pedindo à empregada um croissant com manteiga, com pouca manteiga, insistia e um chá verde.
Madalena olhou à volta e admirou-se de ver um cliente novo ainda por cima relativamente jovem, pedindo um “bretzel” e meia de leite.
“Diacho de coincidências” – pensou, olhando o homem, fingindo desinteresse.
Lopes após mordiscar o “bretzel” – cabe aqui dizer que nunca tinha na vida provado aquela especialidade – dirigiu-se ao balcão para pagar a despesa. Meteu o jornal debaixo do braço e dirigiu-se à saída, passando pela mesa de Madalena, tendo sussurrado, de forma que só ela pôde ouvir:
A senhora, por favor, queira-me acompanhar.
Com um gesto rápido tirou do bolso o crachat da Judite.


Pão de Canela (título provisório)
Quarto Capítulo
Proposta nº. 2 – original de Inspector Huga Booga


Madalena chorou copiosa e desalmadamente que nem uma arrependida quando desencarnou o monstro que transporta dentro de si e voltou a ser a bela mulher terna e delicada, sensível às coisas do espírito, das artes e das letras, sempre disponível para as grandes causas sociais e humanitárias, de uma fidelidade quase canina aos seus amores enquanto estes duram e desde sempre assolapadamente apaixonada pela vida. Os olhos marejados de lágrimas e os espasmos causados pelo choro convulsivo obrigaram-na a encostar o carro à berma da estrada que a levará até Paris, cidade luz e capital da moda cosmopolita, onde há muito tempo aspira exibir as suas criações.

Para Madalena, António Rosa jaz morto num quarto de hotel em Oropesa del Mar. Na noite anterior, a “outra” que há em si preparou com todo o cuidado e rigor mais um dos seus muitos crimes. Levou o seu António, o único dos Antónios que verdadeiramente amou – descobriu ela agora – para uma noite de muita música, fumo e álcool, numa discoteca “rasca” das imediações de Castellón. Na sua malinha de mão, um pó infalível, mortal, que trouxera de Colômbia, tinha como destino certo o copo da bebida de António Rosa. Ao terceiro uísque e depois de algumas danças próprias para “constituir família”, com longos, ardentes e apaixonados beijos, nos olhos, no pescoço, na boca, à mistura com juras mútuas de amor eterno, havia chegado a hora de levar à prática o crime premeditado.

As mãos tremeram-se-lhe, a pulsação começou a bater forte e o seu peito gerou um nó que lhe impedia a respiração. A bela e o monstro pareciam lutar entre si, nas entranhas de Madalena, e no calor da luta o pó quase se derramou por inteiro no chão. Dentro do copo acabou, no entanto, por ficar uma boa parte do “produto” fatal. Bastava então que António Rosa bebesse o que lhe restava do seu terceiro uisque, quando regressasse da casa de banho, para cair redondo num sono profundo e definitivo que o levaria até ao paraíso dos céus. Ele voltou alegre e agitado, talvez imaginando já a noite de delírio e prazer que o esperaria nos braços de Madalena, na cama daquele hotel onde em boa hora decidiram pernoitar na segunda pausa da longa jornada que os levaria até Capri. Sorrindo, lânguido e amável, sentou-se ao lado de Madalena, pegou-lhe na mão, beijando-a ternamente, e, sempre a sorrir, levou o copo à boca e bebeu o que restava do seu último uísque. Ele era o quinto António que caía na cilada de Madalena.

Onde houvesse um António por perto de um domingo de Páscoa a morte espreitava afoita e ligeira, com as suas ferozes e temíveis garras de fora, pronta a desferir um golpe mortal na sua presa incauta. Primeiro foi o António José, um jovem cabeleireiro de orientação sexual duvidosa que mereceu os favores de Madalena, e com quem esta passou longas noites de luxúria a par de acesas discussões sobre cortes de cabelo e de penteados que mais se ajustavam às suas criações para a moda Primavera/Verão do ano seguinte. O corpo foi descoberto no sábado de aleluia, por volta das dez da noite, à porta do Salão de Cabeleireiro onde trabalhava, com dois tiros no peito.

Na Páscoa de 2001, a vítima chamava-se António Pires, tinha pouco mais de vinte e cinco anos, era jogador de futebol de primeira num clube de segunda e conheceu Madalena num desfile de encerramento da Moda Lisboa. O seu corpo apareceu a boiar no rio Tejo numa manhã quente e soalheira de Abril, junto às Docas de Alcântara. Nesse mesmo ano, a “sorte” coube também a António Raposo, um homem maduro já aposentado, pequeno, simpático e anafado, de cabelo bem cuidado e grisalho, membro bastante activo de uma Tertúlia que animava todas as últimas quartas-feiras de cada mês uma certa Esplanada da Avenida da Liberdade, em Lisboa, num concorrido almoço onde se discutiam crimes, polícias e ladrões. Deram com ele em casa, debruçado sobre a sua secretária pejada de livros de Agatha Christie, Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle, Ross Macdonald, Dashiell Hammet, Júlio Conrado, Scott Turrow, Rex Stout, Patrícia Highsmith e Dick Haskins, morto com uma faca enfiada nas costas.

Em 2002, a morte escolheu António Neto, engenheiro mecânico, homem sem paradeiro certo na vida e ao que se julga saber de muitas e pouco duradouras paixões, que se perdeu de amores por Madalena e acabou os seus dias na mala de um Rover 414, sem nunca ter percebido que Mozart, Haendel e Gilbert Becaud são pouco compatíveis e que barbitúricos com álcool não dão saúde a ninguém!... A fome do monstro continuava insaciável. Era preciso mais. Mais dor, mais morte, mais sofrimento, e António Rosa foi o eleito. Madalena desatou novamente num pranto. Ela tinha amado todos, à sua maneira é certo, mas António Rosa foi um caso muito, muito especial. O namoro durou meses e meses, por entre dezenas e dezenas de meias de leite e chás verdes, “bretzels” e “croissaints”, primeiro com alguma timidez mal disfarçada em leituras apressadas dos matutinos de cada dia e depois com mais desenvoltura e arrojo graças a Malaparte e ao seu “Kaputt”. Aos poucos foram descobrindo o muito que havia em comum entre eles. Não fosse a “outra” e Madalena e António Rosa decerto chegariam a Capri… juntos e felizes.

De súbito, um automobilista abrandou a marcha do carro e quase parou para ver o que se passava com a jovem debruçada sobre o volante da sua viatura, chorando desalentada. Madalena tremeu. Lembrou-se então que daqui a nada a polícia estaria no encalço de um Laguna cinzento de matrícula portuguesa registado em nome de António Rosa. Era preciso rapidamente abandonar o carro algures numa povoação vizinha. Por outro lado, o seu cabelo castanho escuro de corte curto seria coberto por uma longa cabeleira loira e os “jeans” que usara no hotel, onde não foi identificada, seriam substituídos por uma roupa mais feminina. Depois era preciso alugar um automóvel que a levasse até Paris.

Mais de dois mil quilómetros a separavam do destino. Tentaria perder o menos tempo possível na viagem. Faria apenas breves pausas para desentorpecer as pernas, relaxar os músculos e tomar alguma coisa, aqui e ali, e dormir muito pouco. A pressa neste caso é amiga da perfeição e do sucesso… do crime. Chegando a Paris tinha muito que fazer. Monique e Antoine esperavam-na no apartamento/atelier que dividiam há já alguns anos no Quartier Latin. São ambos estilistas, de algum renome em Paris e em Roma, e “ouviram falar” do trabalho de Madalena numa revista especializada em moda emergente. Tinham muita curiosidade em conhecê-la e dispunham-se ajudá-la a entrar no complexo e difícil mundo da moda parisiense.

Longe vão os tempos em que os emigrantes portugueses entravam em França “a salto”, com uma pequena mala de cartão onde transportavam os seus parcos haveres. Madalena chegaria a Paris ao volante de um automóvel de média cilindrada, levando na bagagem, para além de muitos sonhos, um grande malão onde guarda o melhor das suas “toilletes” e duas malas de madeira onde carrega dezenas de figurinos e algumas peças de sua criação, já confeccionadas, para um primeiro desfile. Ela tinha tudo planeado até ao mais ínfimo pormenor. Nada foi deixado ao acaso. Para começar, antes de tudo o mais e assim que chegar a Paris, tem de fazer um importante telefonema.

… E o telefone tocou em Troino.
Quando Sónia, a jovem estudante-trabalhadora prima de Madalena, atendeu, ouviu do outro lado da linha: “Boa tarde. Daqui fala o Inspector António Jorge, da Policia Judiciária…”


Pão de Canela (título provisório)
Quarto Capítulo
Proposta nº. 3 – original de Inspector Moka


Reflectindo sobre o romance policial e abordando-o no seu aspecto sociológico e político, Ernest Mandel não deixou de constatar que “para além da distracção pura e simples, o serviço que o romance policial podia propor era um conhecimento especializado, condensado e standardizado de um dos inúmeros domínios da actividade humana.” E, arrolando múltiplas e variadas demonstrações desta ideia, não deixaria de incluir, entre todas, a referência à cultura das orquídeas e à alta-cozinha, personificadas por Rex Stout .

A ligação da literatura policial à boa mesa (e, em menor grau, ao fru-fru das alcovas) já vem, aliás, de longe. Se o espartano de Baker Street, com ressalva para o ajudante, insinua hábitos moderados e se Poe era reconhecidamente um exagerado, em termos líquidos, o entrecho policial acompanhou nesse prisma a literatura dita formal, do fim da “belle époque” à época heroica dos anos 40-50. O fenómeno continuaria perceptível em trânsitos mais recentes. Prosseguindo no sec. XX, não apenas com Fritz Brenner, o cozinheiro suíço de Nero Wolfe, trazido pelo já referido Stout, tornar-se-ia de todo saliente nos belgas Poirot (este anglo-belga, do lado da “mãe”) e Maigret, ou belgas não fossem eles. Aliás Simenon reparte com Maigret as honras de um livro de receitas , demonstando que a mesa existia, afirmava-se, triclinava-se como na literatura dita “de linha” e, disso mercê, é hoje possível montar “prândios policiais” como se fazem outros “menus literários”, exemplificados, para lusitano uso, nos repastos queirozianos, ramalhais ágapes ou camilianos festins.

Na própria era do “fast food”, em que o sábio equilíbrio literário entre cama e mesa (e crime, para o que nos interessa) se desloca claramente para a primeira componente, existem ainda fabulosos “resistentes” que ocupam as páginas dos “polars” sem renunciarem à sua qualidade de “gourmets”. Cite-se Pepe Carvalho, por cujo “pai” ainda estamos de luto, e o ítalo comissário Salvo Montalbano, saído da imaginação de Andrea Camilleri.

Mas ao que vem isto? Isto vem da clara necessidade de uma ruptura, no desenrolar da nossa história, introduzindo um interlúdio suavizante e lúdico, um “tinir de pratos e talheres”. Vem isto também a propósito de algumas incursões que António Rosa, quando em Castelló, tentativamente arriscou nesse particular mas sempre promissor domínio. Restabelecido um mínimo de dignidade, esperando a ansiada “luz verde” para voltar à Pátria após pacientemente explicar à polícia espanhola e ao surpreendido funcionário consular que naquilo tudo era uma estranha vítima e jamais um autor ou um fautor do desaparecimento de Madalena, mas sentindo-se no entanto vigiado, nada perderia em melhor identificar-se com o ambiente local, cedendo nomeadamente aos atractivos da cozinha levantina, com os seus pratos essencialmente de peixe, olentes, vistosos, temperados com muito alho e simpaticamente apresentados naquele dizer cantado e doce que tanto contrasta com o gutural castelhano.

Há que constatar que António Rosa foi meticuloso ao ponto de comprar um caderno pautado num dos “shoppings” locais, claramente vazios e a cheirar a tinta fresca como convém a um “hors de saison” de uma estância de veraneio. Para além de registar alguns factos que ia recordando, juntava notas soltas quanto ao que, de início sem vontade e depois, gradualmente, lhe ia caindo no goto – o que lhe permitia reconquistar alguma calma e antecipar as acrescidas tormentas que, apesar de toda a discrição procurada, em Lisboa certamente poderia prever. Desse caderno, que pouco interessará para as indagações policiais mas que contribui para a definição da pessoa, poder-se-ia destacar o seguinte apontamento:

“Fideuá
É um prato levantino típico, de que já me começo a fartar aqui. Pedi esta receitas à mulher do Alonso -- ambos (e também o Francisco, que é o colega dele) sempre incansáveis em resolver todos os problemas e incomodidades que lhes trouxe. Das muitas variantes é, para mim, das mais saborosas. Vi-me grego para a traduzir, mas certo é que, em Lisboa, vou procurar a primeira oportunidade para reencontrar uma das poucas coisas positivas que ficou deste sarilho todo. Aí vai...para 6 pessoas!
1 pacote de esparguete (500 gramas);
1 porção pequena de cabeça de tamboril;
6 caranguejos pequenos;
meio quilo de peixes pequenos, para fazer o caldo (podem ser carapaus);
meio quilo de gambas descascadas (podem ser das que se vendem congeladas);
6 tomates maduros;
1 cebola de tamanho médio;
3 dentes de alho;
3 colheres de sopa de erva doce;
1 copo de azeite;
açafrão (ou outro condimento amarelo; vg. massa de pimentão), q.b.;
umas folhas de aneto (creio que é o nosso funcho, mas pode ser também usada outra erva aromática, como o perrexil ou funcho-do-mar), q.b.;
sal, q.b.
Colocar, numa panela alta, a porção de cabeça de tamboril, os carapaus e os caranguejos limpos, um tomate cortado ao meio, a cebola cortada em quatro, a erva doce, o aneto, metade do azeite, sal e água suficiente, como para a preparação de um caldo abundante. Cozer a fogo forte durante 5 minutos e depois a fogo lento, pelo menos durante uma hora.
Passado esse tempo, coar, recolhendo o caldo num recipiente e desprezando o resto (no entanto, ver adiante).
Despelar os tomates, e esmagá-los em polpa, num recipiente aparte. Picar os alhos em porções muito pequenas.
Por ao fogo uma panela em barro, larga e pouco alta (aqui chamam-lhe “paella”), com o restante azeite e, quando este esteja bem quente, deitar os alhos picados. Antes que estes estejam muito alourados, juntar o tomate em polpa. Refogar durante dois ou três minutos e juntar imediatamente o esparguete, revolvendo sempre com uma colher de pau e mantendo a fogo lento, durante cinco minutos.
Seguidamente, juntar o caldo até que recubra a massa com a altura de um dedo transverso. Passados que sejam 10 minutos, juntam-se as gambas descascadas e deixa-se ferver, até que o caldo se consuma e a massa fique “al dente”.
Repousar 5 minutos, sem tapar e servir na própria panela de barro. Pode acompanhar-se com “alioli” (ver abaixo).
Nota: em alguns locais do Levante, para reforçar o gosto a pescado, parte da massa de peixe e marisco que se utiliza na preparação do caldo inicial é reintroduzida, em pasta, na fase final da preparação, quando se está a cozer a massa. Também é frequente juntar, para além das gambas, um ou dois lagostins.
Alioli:
É um molho que muitas vezes acompanha o fideuà.
6 dentes de alho;
meio litro de azeite virgem;
sal q.b.
Moer, em almofariz, o sal e os alhos até obter uma pasta homogénea. Prosseguir a mistura, adicionando muito lentamente o azeite (gota a gota) e movendo o pilão do almofariz sempre no mesmo sentido, até que seja possível voltar o almofariz sem que o molho caia.”

Assim, nestes exactos termos, contribuía António Rosa para que esta história não ficasse inteiramente desprovida de uma componente gastronómica!

O negociado regresso a Lisboa, já em Maio, não foi uma experiência agradável. Nem certamente poderia ter sido. Pouco parecia significar, mesmo para a sobrinha, o desaparecimento de uma jovem “designer” de moda em Espanha, com automóvel e tudo, que até nem era dela. No caminho da tanga, havia muita coisa a preocupar muita gente, para que muita gente estivesse preocupada.

A pedido das autoridades espanholas e acompanhado já do colega a quem, em Lisboa, confiara o assunto e as inevitáveis sequelas familiares, António voltaria a passar a fronteira, semanas depois. Havia que reconhecer um carro achado num “embalse”, local quase inacessível de uma velha e abandonada barragem mineira das muitas que ponteiam aquela zona serrana do Andévalo que, ainda sem passagem, vai de Ayamonte ao Rosal de la Frontera. O carro estava totalmente descaracterizado, mas o seu reconhecimento não oferecia dúvidas e sugeria mesmo, pela proximidade da fronteira, uma tentativa de retorno a Portugal. Bateram-se as proximidades à procura de quaisquer indícios significativos e que, muito especialmente, dessem novas quaisquer da procurada Madalena: nada. As caixas, as bagagens, os papeis continuavam em manifesta sumidura. Duas chapas de matricula encontradas próximo, ambas de Barcelona, tinham a singular característica de terem pertencido a veículos diferentes, ambos há bastante tempo sinistrados, vendidos como sucata e abatidos no registo.

1 ERNEST MANDEL, "Cadáveres Esquesitos" - Uma História Social do Romance Policial", Ed. Cotovia, Lisboa, 1984
2 COURTINE, "As Boas Receitas de Simenon e Maigret", Ed. Asa, Porto, 1994

 
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