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quinta-feira, outubro 28, 2004
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Daniel Falcão, Inspector Huga Booga e A.Raposo foram os únicos confrades que marcaram presença no acto eleitoral relativo à votação do texto que passa a constituir o Décimo Capítulo do romance “Pão de Canela”, da autoria de Ma(r)ta Hari, que se apresentou a sufrágio sem qualquer opositor.

Portanto, por agora, vamos assim:
(Informamos, entretanto, que o romance “Pão de Canela” pode ser consultado também em http://www.danielfalcao.net, onde está disponível em PDF)

PÃO DE CANELA (título provisório)

Primeiro Capítulo

Todos os dias úteis de todas as semanas, desde há mais de um ano, vinham a mirar-se longamente ao pequeno almoço. Ele escolhia invariavelmente um “bretzel” que acompanhava com meia de leite, ela pedia um “croissant” com manteiga, com pouca manteiga, insistia, e um chá verde. Não se falavam. Não se cumprimentavam sequer. Ele abria o “Notícias”, ela lia o “Público”. Lá fora, na Praça das Flores, espaço verde na lisboeta encosta entre o Príncipe Real e S.Bento, sucediam-se as estações, as ramagens, as iluminações de Natal, as festas populares em Junho, os nevoeiros de Novembro e de Fevereiro. Os lugares que escolhiam na característica sala eram, também, quase sempre os mesmos – apenas alterados quando alguém chegava mais cedo e lhes trocava as voltas. Dir-se-ia que se evitavam.

Um dia, a casualidade aproximou-os. A fartura de sucursais bancárias, em esquinas fronteiras, tornou-se subitamente fome, quando ambos os estabelecimentos caíram nos braços de patrões que os fecharam, que “reestruturaram” o respectivo pessoal e, sobretudo, que levaram consigo as hoje imprescindíveis caixas atm. Os comerciantes e moradores da área lamentaram-se, fizeram listas de assinaturas, escreveram para os jornais, colaram papelinhos nos troncos onde antes se anunciava, em fotocópias mal tiradas, que havia uma sessão de fado vadio em pleno Bairro Alto ou que o "Boby" se pirara dos carinhos da dona, arrebatado pelos odores caninamente irresistíveis duma fêmea em cio. António Rosa, com a pasta cansada em que guardava os processos que estudara ao serão, tendo de ir a S.Bento para se abastecer de algumas notitas das novas, cheias de europas, pontes e estilos, chegou ali mais tarde que o costume, mal disfarçando o desagrado de encontrar na sua habitual mesa um casalinho em aparente fim de noite e, pelo ar já derreado que ambos mostravam, em pouco promissor início de manhã. Madalena olhava o jornal e anotava, em folhas A4 dobradas em caderno, algumas ideias soltas, que poderiam influir na criação de um novo vestido para um outro outono que ainda vinha longe. Ficaram próximos. Suficientemente próximos para António apanhar o volume do “Kaputt” que, mal pousado na convexidade do assento da cadeira à direita de Madalena, não escapara ao movimento da empregada brasileira, apressada a trazer o habitual “bretzel” para o não menos habitual cliente.

Lê Malaparte, perguntou ele. Leio, respondeu ela. Eu também...mas agora que Malaparte caiu em desuso, vendendo-se em saldo em qualquer supermercado... Eu também sei, cortou Madalena, mas gosto da forma como consegue descrever o que viu e o que talvez não tenha visto, segundo muitos... Falaram sumariamente do autor e da obra. António prometeu-lhe trazer alguns outros livros da sua biblioteca. Madalena agradeceu. No decorrer do tempo, que passava para além do normal e que deixara os jornais abertos esquecidos, António questionou: E, já agora, conhece a casa de Malaparte em Capri? A casa que ele construiu nas arribas do Cabo Masullo e que baptizou de “Casa como eu”? Não, não conheço... Sabe, eu também não, a não ser em fotografia. Mas de há muito eu sonho poder visitá-la. Só que não encontro quem queira ir lá comigo! Não sei porquê, lançou ela surpreendida com a inesperada ocorrência de tal degelo em manhã de Outono ainda quente, se alguém me convidasse eu não desprezaria uma oportunidade de ir a Capri, com casa de Malaparte ou sem ela! Quer então vir daí? Isso é um convite? É uma sugestão! E por que não...é coisa a pensar!

E o diálogo daquela manhã passou a ser a regra. O “bretzel” iria irmanar o “croissant”, nas mesmas manhãs, no mesmo prato, começando até a cutucarem-se bem cedo, em até então inéditas manhãs de sábado. Lá fora, no rito de todos os anos, as árvores despiram-se e as gotas de chuva perlaram os ramos, marcando os tempos litúrgicos que vão do nascimento do menino à morte do homem. Decidida a utilização da viatura de António, iam montando cuidadosamente a viagem, cujos meandros desenhavam com o apoio de mapas, de itinerários colhidos no “local” www.michelin.com e de um sonho que passara a ser conjunto, expresso nas mãos que se iam gradualmente tocando.

Saíram de carro, duas semanas depois da páscoa. Tinham acordado dizer o mínimo a amigos e conhecidos. Tinham também acordado, apesar da menor experiência de Madalena, em revezar-se ao volante. No escritório, António distribuiu processos, assinou substabelecimentos, deu instruções suficientes para que os colegas pudessem assegurar o expediente da próxima quinzena. No “atelier”, Madalena deixou igualmente instruções. Em casa, à mulher e aos filhos, António sugeriu uma viagem de serviço, que o levaria a França por duas semanas. Madalena, tirando uma prima distante que estava colocada no Politécnico de Setúbal e que equilibrava o preço do alojamento em Troino com um meio-tempo prestado numa seguradora, não tinha mais família a quem deixar recados.

Dois levantamentos de dinheiro, feitos em Faro, foram os últimos sinais por ambos deixados em terras portuguesas. Previdente, António movimentara antes da partida alguns fundos, incluindo reforços que transferira para a conta conjunta e que destinava a prevenir despesas domésticas extraordinárias, como habitualmente fazia quando das suas deslocações. Madalena deixara na míngua as suas duas contas. De acordo com instruções transmitidas a alguns escritórios com quem mantinha relações e tendo em conta aquele confuso período de troca de moedas, António tinha previsto a possibilidade de levantar dinheiro em Castellón, Sète e Ventimiglia. Bastante dinheiro até. Madalena incumbira-se de, sem avançar grandes detalhes, cobrar, em Barcelona, uma dívida de uma cliente catalã do “atelier”, proporcionando-se assim a disposição de um razoável montante de pesetas. Provar-se-ia mais tarde que o levantamento em Castellón teve lugar, como previsto, mas nem em Sète, nem em Ventimiglia, nem em Barcelona tinha sido reclamado qualquer montante. Não houve mais levantamentos, cobrança ou notícias. Na confeitaria da Praça das Flores prolongava-se a ausência de ambos, enquanto a Primavera se ia resolvendo nas últimas chuvas, enxota-pombos precedendo a aproximação de um Verão que se adivinhava quente.

As duas semanas tinham-se completado, sem novas nem mandados. Na segunda feira seguinte, a mulher de António telefonou para o escritório, a saber de notícias. Conhecia-se de há muito o laconismo entre ambos, o que justificou o “devem estar a acabar-lhe as massas e por isso se lembra dele!”, com que o dr.Aurélio comentou o facto, enquanto afiava meticulosamente o lápis com que teimava em anotar as minutas e que não trocava por qualquer lapiseira, por muito AG Spalding que fosse. Aliás, no escritório, nada tinham de mais para dizer. Dias depois, era do “atelier” de Madalena que procuravam a trabalhadora-estudante, para desta saber se tinha recebido qualquer mensagem da prima... Negativo, também!

À terceira semana houve notícias. Alguém voltou. Mas apenas um dos que tinham partido.

a) Inspector Moka


Segundo Capítulo

A Páscoa, em 2002, foi a 31 de Março e, piada velha, calhou ao domingo. Com ela a costumeira febre de consumo, o exodo das cidades, a nacional hecatombe nas estradas. O ano trazia o ónus dum popular provérbio, lembrando que “Páscoa em Março ou é fome ou é mortaço”, mas nem pela lembrança desse ditado, por muito que a festa se escondesse no último dia do mês, nem pelas tolerâncias de ponto concedidas para segunda-feira de manhã, iriam estas jornadas acolher acrescida prudência.

A leste da cidade, num dos arruamentos ainda sem termo definido da zona já órfã da Expo 98 e agora em progressiva ocupação urbana, a norte da via férrea, o Rover 414 verde e sujo permanecia solitário, com a legenda “Trata 977 081 006” em cartolina branca, encostada e presa à superfície interna do vidro lateral, do lado do condutor, por uma simples etiqueta de correio-azul. No banco traseiro, desenhos e jornais dobrados. O fim de semana prolongado interrompera a actividade babélica da construção civil e esvaziara muitas das instalações comerciais próximas – evitando assim que nenhum abelhudo viesse questionar a estranha presença daquele carro. Aliás, como depois se comprovou, ninguém sabia exactamente “desde quando”, embora alguns arriscassem que já o teriam visto ali uma ou duas manhãs antes da desmobilização civil iniciada na quinta-feira santa. Certo é que, passada a “ponte”, tal permanência iria ainda manter-se escassos dias, até que o estroncamento maldoso dum retrovisor lateral, o crescente questionar na vizinhança quanto à origem e propriedade do automóvel, a hipótese de que fora roubado e que, como tal, poderia beneficiar eventuais alvissareiros, tudo cumulado com a crescente fedorina que dele se exalava, contribuíram para que, finalmente, fosse comunicada à PSP a enigmática ocorrência.

Não, não havia qualquer participação de roubo relacionada com aquele veículo, registado em nome de um António Ferreira Neto, com morada na Amadora. Sem telefone na lista. Uma tentativa de contacto no endereço indicado iria assustar uma rotunda mãe de família cabo-verdiana quando tranquilamente preparava o jantar. Corroborada em tudo pelos vizinhos, afirmou ali morar há mais de dois meses, ter “alugado” a casa em agência que indicou, e mais declarou, com o nervosismo que lhe causavam fardas, que não conhecia nem queria conhecer qualquer anterior morador da “sua casa”, fosse ou não fosse Neto ou avô. No prédio, de dois andares e seis fogos, dois ou três vizinhos recordavam-se do locatário do 2º direito, que tivera passagem efémera, de pouco mais que meio-ano, e que não viam desde que se fora embora, à cerca de uns três meses. Entrava e saía a desoras e era ou dizia-se engenheiro. Vivia só, sem familiares, sem qualquer bicharada conhecida, mas às vezes entrava-lhe em casa uma moça muito mais nova, desenvolta, que passava lá a noite e que aguçava a curiosidade (e certamente o apetite) do pessoal masculino local, levantava sérias reservas ao mulherame e a quem, jurariam, o engenheiro chamara algumas vezes de Madalena. Pois! (interjeição acompanhada de um piscar de olhos). O homem, esse tinha de facto um carro verde que, pela descrição, não destoava do tal Rover abandonado. Em conversa ocasional e rara, queixara-se da dificuldade de conseguir rapidamente um telefone fixo. Relativamente novo, pendia já para uma meia-idade que a calvície nascente denunciava. Era muito educado, apesar do cheiro a charuto que por vezes inundava a caixa da escada e, mais raramente, do ruído duma “música séria”, que ficava a tocar um pouco alto. Deixara o andar bastante sujo, com jornais e revistas empilhados e com alguns tarecos que nunca mais veio reclamar e que acabaram, quase todos, junto ao mais próximo contentor do lixo.

A persistência do cheirete, cada vez mais pútrido, e a inoperância das diligências empreendidas acabaram por levar a polícia a abrir as portas da viatura -- o que tornou o ambiente próximo simplesmente insuportável. Levantada a tampa da mala, logo descobriram a causa. Vestido de forma convencional, parcialmente coberto com uma manta de viagem e deitado em posição fetal, o cadáver tinha ainda postos os auscultadores ligeiros e de boa marca que se ligavam a um leitor portátil de CD’s. Introduzido neste, o disco com quatro “Concerti Grossi” do Opus 6 de Haendel deixara há muito de se ouvir e de ser ouvido. A respectiva caixa juntava-se a outras duas, uma com peças sortidas de Mozart, outra evocativa de Gilbert Bécaud, a abrir com o conhecido “Et maintenant?”, que tantos corações fizera romanticamente palpitar desde 1975. Ainda, naquele espaço limitado da mala, foram recolhidas e devidamente acondicionadas diversas embalagens vazias de um barbitúrico forte, uma garrafa também vazia de “JB” e uma palhinha de refrigerante, como constava do relatório policial. O exame dos documentos contidos na carteira, mantida no bolso interior esquerdo do casaco, com cartões de crédito, alguns cheques por utilizar e uma quantia modesta em notas novas de pequeno valor, confirmou tratar-se, de facto, de António Ferreira Neto, engenheiro mecânico, 47 anos, natural de Sousel e, de acordo com o BI, residente na Amadora. Poucos cartões de visita, de execução esmerada mas de cantos já deformados, repetiam a morada onde hoje sabiam viver uma mamalhuda senhora, demasiado tisnada pelo sol de sucessivas gerações. Nos bolsos pouco mais: uma “bic-cristal” preta, meio consumida, uma lapiseira, duas chaves tipo Yale, o porta-chaves do automóvel, com o respectivo “comando”. Um envelope aberto, sem destinatário, guardava uma carta dactilografada em computador, assinada a esferográfica azul, que o “de cujus” dirigia à sua ex-mulher, comunicando, de forma telegráfica e seca, como de correspondência comercial, a decisão definitiva e reflectida que tomara de por termo à sua vida. Sem invocar qualquer razão, sem revelar qualquer sentimento ou provisão, sem um adeus que fosse, até sem data e sem nome para além do “A minha ex-mulher” que escrevera como primeira linha. Quem primeiro a recebesse, que procurasse a destinatária, num ali surpreendente estilo “toma e embrulha”.

Também na mala do carro, uma pasta de cartolina verde-claro, com abas e elásticos, continha uma colecção de doze desenhos, dobrados como é de uso. Na face exterior, a lápis ténue, podia-se ler a palavra “Almansor”. No banco traseiro, uma outra colecção de desenhos acompanhava meia dúzia de “diário de notícias”, nenhum dos quais posterior a 23 de Março. Os desenhos de ambas as colecções, de evidente natureza técnica, reportavam-se a equipamentos há muito vendidos como sucata, após o desmantelamento de uma instalação química situada a norte de Lisboa, ironicamente epilogada num processo de “recuperação de empresas” em que os bancos credores abriram mais os olhos para o imobiliário afecto à produção que para o prosseguimento da actividade industrial e a manutenção de emprego. Nasceria ali mais uma urbanização! O tema até tivera honras de aparição num noticiário das oito, com trabalhadores idosos por detrás de cartazes, e levara alguns desmancha-prazeres da oposição a ousarem de perguntar, em sessão aberta da câmara, se tão apetitosos terrenos estavam comprovadamente descontaminados para os fins habitacionais a que, com público clamor, eram agora votados. Não deixava de ser curioso que o conjunto de doze desenhos contidos na pasta estivesse totalmente repetido no conjunto do assento traseiro, que, além destes, continha mais cinco diferentes e “desemparelhados”. Outra diferença existia: nos desenhos da pasta alguém desenhara grandes “balões” a marcador vermelho, em torno de certas peças do equipamento fabril, que numerara de #01 a #16, ao passo que todos os desenhos, no outro conjunto, se apresentavam como saídos do aparelho de cópia, sem qualquer marcação aposta.

Longe dali, no outro extremo da cidade, Madalena chegava a casa. Acendeu um cigarro, colocou um CD na aparelhagem Sony que tinha comprado tempos antes para se dar companhia. Sentou-se no sofá, descalçou os sapatos e já tranquila, distendida, olhando o nada no tecto, pensou rapidamente na viagem que, em breve iria fazer e que esperava a conduzisse a secretos objectivos. Gilbert Bécaud, enchendo a sala, repartia o espaço com o fumo que subia do cigarro. “Et maintenant...”.

a) Inspector Moka


Terceiro Capítulo

Desde o início da viagem algo de diferente sugeria a António Rosa que se não tratava de uma simples “excursão de prazer”. Ao levar Madalena a casa, na véspera da partida, esta tinha-lhe pedido para por no carro duas pesadas caixas de madeira, limitando de forma inesperada o espaço da mala. No dia da partida, juntou-lhes uma desproporcionada mala de viagem e dois gordos envelopes azuis de papel entretelado. Madalena esclareceu tratarem-se de artigos a entregar em Barcelona, contra o montante a cobrar — algo que nunca antes referira. Finalmente, um outro envelope, esse de plástico, com documentos, foi posto no porta luvas.

Saíram no domingo, por Madalena não querer meter-se a caminho em dia 13. Tinham combinado passar aquela primeira noite numa vivenda vazia mas sempre preparada que pertencia a um amigo de António e que, no limiar do Alentejo, combinava um aspecto exterior irrepreensível com o recato e a comodidade exigíveis a uma “garçoniére” requintada, valorizada pela relativa proximidade das praias algarvias e suficientemente acoitada, pela distância, das suspeitas de uma consorte ciumenta.

O programa estabelecido era simples: procurariam chegar a Capri em jornadas que não exigissem mais de 8 horas diárias de condução, sempre apoiadas em sítios que, por qualquer forma, “aculturassem” o romance sem desacamar o seu aspecto óbvio. No segundo dia ficariam em Manzanares, procurando lugar no Parador local, no terceiro cerca de Castellón, no quarto dia em Sète e no quinto já em Génova, prontos a descer a bota até Capri, que - forçando a nota - atingiriam no sexto, para que, no sétimo dia, esquecessem o descanso bíblico e visitassem os monumentos principais da ilha, com particular atenção para a “Casa como Eu” que constituia a meta oficial da peregrinação.

Se outra surpresa surgiu quando, em plena E05, passada Sevilha, Madalena demonstrou não ser uma condutora nem tímida nem inexperiente, o pior estava reservado a António Rosa na noite de 16 para 17, depois da chegada a Castelló. Levantado o “capital” ali postado, tinham-se afastado mais alguns quilómetros ao longo da costa e escolhido, para fim da etape, um pequeno e confortável hotel de Oropesa del Mar, voltado a um Mediterrâneo a perder de vista. Depois de transportar para o quarto o malão terceiromundista de Madalena e a malinha de executivo em férias em que trazia o essencial da pernoita, pois que geralmente dormia nu, António colocou o “pacotinho de euros” recebido em Castellón no envelope de plástico e – como tencionavam sair -levou este conjunto para a aparente segurança do cofre da recepção. Já debaixo do chuveiro, pareceu-lhe que Madalena estava a usar um telemóvel, mas nada disse. Saíram a pé, para “cear”, e como alvitrado por Madalena, tinham-se seguidamente excedido numa intimidade dançarina, razoavelmente bebida e aconchegada numa “boite” próxima. Deitaram-se tarde, pedindo ao porteiro que os acordassem cedo. Quiçá efeitos da viagem, do banho, do jantar e da bebida, António sentia-se muito pesado e caiu logo num sono profundo, ao lado duma Madalena que se declarava também ensonada e pronta para mais nada que não fosse dormir.

Quando acordou, com uma dor de cabeça terrível, o sol tinha rompido entre núvens e inundava o quarto. A boca sabia-lhe a cortiça., concretizando uma cruel ressaca, daquelas que podem resultar da muita quantidade, ou da má qualidade ou de ambas — o que talvez fosse o caso. Estranhando a demasiada claridade e ainda meio ensonado, estendeu o braço para o local onde deveria estar a sua companheira de viagem e sabe-se lá do que mais, a seu devido tempo. Nada... estremunhado acordou e olhou para o despertador: eram 3 horas e meia da tarde, hora local. Não, não o tinham acordado! E Madalena não estava ali! Nem as malas, nem a roupa, nem documentos, nem dinheiro, nada! A surpresa foi mais radical que qualquer aspirina. Pelo telefone pediu um robe, que lhe levaram, de turco, demasiadamente reduzido, dando-lhe um aspecto tristíssimo. Pediu a presença do gerente. Explicou-lhe a situação, solicitou-lhe explicações.

Pois, a Senhora tinha saído de manhã muito cedo, antes das seis horas, dizendo que ia a Castelló a casa de uns amigos. Que o senhor estava doente e que não o incomodassem. Ia inclusive aviar-lhe um medicamento urgente, para voltar antes das dez. Almoçariam no hotel e só sairiam à tarde, o que, pela pequena ocupação, lhe disseram ser possível. Colocou a mala grande no carro e saiu com ar preocupado. Face a esta situação e ao dístico “não incomode” colocado na porta, tinham-se limitado a cumprir. Certamente que se tratava de um mal entendido — sugeriu o gerente com ar cúmplice — e que a senhora voltaria em breve. Preparariam uma refeição ligeira, que trariam ao quarto, e o senhor poderia esperar vendo televisão. António, envolvido no robe, sem roupa, sem documentos, sem carro, sentado no sofá, não pode deixar de se recordar do primeiro filme dos Lumiére, que vira em miúdo e que pela sua simplicidade tanto o impressionara: “l’arrosoir arrosé”.

Minutos depois, reavaliada a situação com o conforto de um “consomé” quente, a reacção de António já não seria tão tranquila. Madalena ainda não chegara, pelo que havia mesmo que actuar. Em primeiro lugar, um telefonema para o escritório do colega de Castellón, onde na véspera levantara o dinheiro. Tinha saído da cidade, mas deram-lhe o número do telemóvel. Referiu-lhe em palavras breves o que se passava e pediu-lhe que viesse ao seu encontro, em Oropesa, onde permanecia indocumentado, sem carro, sem cheta, com horror a todo o tipo de publicidade, e, além disso, presumivelmente intoxicado com qualquer mistela adicionada à bebida. E sem Madalena, de quem não tinha notícias ou mensagens e a quem poderia ter sucedido sabe-se lá o quê.

Participação discreta à polícia, que veio logo a seguir. Tarde já para contactar com o consulado português mais próximo, mas suficientemente cedo para difundir os dados da viatura. Pairava no ar a dúvida de um desajuste entre namorados, de um arrufo de que António escondesse pormenores e até, sabe-se lá, de algo mais que isso. O agravamento de um mal estar, com vómitos, boca seca, perda de equilíbrio e recrudescidas dores de cabeça, justificou uma visita ao hospital local. Face aos sintomas, aos primeiros resultados analíticos e á evidente ansiedade, o médico de serviço aconselhou o internamento sob vigilância médica, por uma noite. O colega insistiu e iniciou as diligências para aplainar a situação. Procurou saber que valores ou títulos se encontravam também desaparecidos. Sem tocar no envelope, que continuava no cofre, elaborou, com um António já meio sedado, uma lista das possíveis comunicações a fazer – acolhendo os pedidos para que se não desse eco público àquela situação, aquém e além fronteiras, dado o melindre que a sua presença ali revestia. Que sossegasse pois havia experiência disso, já que nada espanta numa região que viva do turismo.

Só no dia seguinte lhe permitiram sair do hospital e regressar ao hotel de Oropesa del Mar. Conferenciando com o colega e um associado deste, foi-se montando o conjunto de indagações necessárias para restabelecer um mínimo de apresentação e as suficientes garantias, nomeadamente de não terem existido mais levantamentos. Não lhe era simples telefonar para Portugal e, quando o fez, foi através de pessoa de muita confiança, que jamais deu com a língua nos dentes e que motivou os devidos interesses pelo assunto, nos planos policial, diplomático e bancário. Pôs-se à disposição das autoridades locais, que procuravam encontrar uma Madalena também desaparecida e o automóvel com que desaparecera.

O envelope de plástico amarelo escapara “à voragem” por estar no cofre do hotel e o seu conteúdo foi inventariado. Para além do dinheiro, registou-se um recorte detalhado de um mapa fotocopiado de uma carta militar portuguesa ou de um mapa com escala de idêntica generosidade, a minuta duma factura de “serviços diversos” impressa em computador, mas sem data e sem identificação de qualquer das partes e uma folha de instruções (em línguas sortidas) que descrevia um pedómetro de marca “Tronic”. Agrafado ao mapa, um cartão de visita, vincado a meio, de António Ferreira Neto, Engenheiro Mecânico (IST), mas sem qualquer outra indicação, e no verso do qual, escrito a esferográfica, se reconhecia o número: 977081006.

a) Inspector Moka


Quarto Capítulo

Madalena chorou copiosa e desalmadamente que nem uma arrependida quando desencarnou o monstro que transporta dentro de si e voltou a ser a bela mulher terna e delicada, sensível às coisas do espírito, das artes e das letras, sempre disponível para as grandes causas sociais e humanitárias, de uma fidelidade quase canina aos seus amores enquanto estes duram e desde sempre assolapadamente apaixonada pela vida. Os olhos marejados de lágrimas e os espasmos causados pelo choro convulsivo obrigaram-na a encostar o carro à berma da estrada que a levará até Paris, cidade luz e capital da moda cosmopolita, onde há muito tempo aspira exibir as suas criações.

Para Madalena, António Rosa jaz morto num quarto de hotel em Oropesa del Mar. Na noite anterior, a “outra” que há em si preparou com todo o cuidado e rigor mais um dos seus muitos crimes. Levou o seu António, o único dos Antónios que verdadeiramente amou – descobriu ela agora – para uma noite de muita música, fumo e álcool, numa discoteca “rasca” das imediações de Castellón. Na sua malinha de mão, um pó infalível, mortal, que trouxera de Colômbia, tinha como destino certo o copo da bebida de António Rosa. Ao terceiro uísque e depois de algumas danças próprias para “constituir família”, com longos, ardentes e apaixonados beijos, nos olhos, no pescoço, na boca, à mistura com juras mútuas de amor eterno, havia chegado a hora de levar à prática o crime premeditado.

As mãos tremeram-se-lhe, a pulsação começou a bater forte e o seu peito gerou um nó que lhe impedia a respiração. A bela e o monstro pareciam lutar entre si, nas entranhas de Madalena, e no calor da luta o pó quase se derramou por inteiro no chão. Dentro do copo acabou, no entanto, por ficar uma boa parte do “produto” fatal. Bastava então que António Rosa bebesse o que lhe restava do seu terceiro uisque, quando regressasse da casa de banho, para cair redondo num sono profundo e definitivo que o levaria até ao paraíso dos céus. Ele voltou alegre e agitado, talvez imaginando já a noite de delírio e prazer que o esperaria nos braços de Madalena, na cama daquele hotel onde em boa hora decidiram pernoitar na segunda pausa da longa jornada que os levaria até Capri. Sorrindo, lânguido e amável, sentou-se ao lado de Madalena, pegou-lhe na mão, beijando-a ternamente, e, sempre a sorrir, levou o copo à boca e bebeu o que restava do seu último uísque. Ele era o quinto António que caía na cilada de Madalena.

Onde houvesse um António por perto de um domingo de Páscoa a morte espreitava afoita e ligeira, com as suas ferozes e temíveis garras de fora, pronta a desferir um golpe mortal na sua presa incauta. Primeiro foi o António José, um jovem cabeleireiro de orientação sexual duvidosa que mereceu os favores de Madalena, e com quem esta passou longas noites de luxúria a par de acesas discussões sobre cortes de cabelo e de penteados que mais se ajustavam às suas criações para a moda Primavera/Verão do ano seguinte. O corpo foi descoberto no sábado de aleluia, por volta das dez da noite, à porta do Salão de Cabeleireiro onde trabalhava, com dois tiros no peito.

Na Páscoa de 2001, a vítima chamava-se António Pires, tinha pouco mais de vinte e cinco anos, era jogador de futebol de primeira num clube de segunda e conheceu Madalena num desfile de encerramento da Moda Lisboa. O seu corpo apareceu a boiar no rio Tejo numa manhã quente e soalheira de Abril, junto às Docas de Alcântara. Nesse mesmo ano, a “sorte” coube também a António Raposo, um homem maduro já aposentado, pequeno, simpático e anafado, de cabelo bem cuidado e grisalho, membro bastante activo de uma Tertúlia que animava todas as últimas quartas-feiras de cada mês uma certa Esplanada da Avenida da Liberdade, em Lisboa, num concorrido almoço onde se discutiam crimes, polícias e ladrões. Deram com ele em casa, debruçado sobre a sua secretária pejada de livros de Agatha Christie, Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle, Ross Macdonald, Dashiell Hammet, Júlio Conrado, Scott Turrow, Rex Stout, Patrícia Highsmith e Dick Haskins, morto com uma faca enfiada nas costas.

Em 2002, a morte escolheu António Neto, engenheiro mecânico, homem sem paradeiro certo na vida e ao que se julga saber de muitas e pouco duradouras paixões, que se perdeu de amores por Madalena e acabou os seus dias na mala de um Rover 414, sem nunca ter percebido que Mozart, Haendel e Gilbert Becaud são pouco compatíveis e que barbitúricos com álcool não dão saúde a ninguém!... A fome do monstro continuava insaciável. Era preciso mais. Mais dor, mais morte, mais sofrimento, e António Rosa foi o eleito. Madalena desatou novamente num pranto. Ela tinha amado todos, à sua maneira é certo, mas António Rosa foi um caso muito, muito especial. O namoro durou meses e meses, por entre dezenas e dezenas de meias de leite e chás verdes, “bretzels” e “croissaints”, primeiro com alguma timidez mal disfarçada em leituras apressadas dos matutinos de cada dia e depois com mais desenvoltura e arrojo graças a Malaparte e ao seu “Kaputt”. Aos poucos foram descobrindo o muito que havia em comum entre eles. Não fosse a “outra” e Madalena e António Rosa decerto chegariam a Capri… juntos e felizes.

De súbito, um automobilista abrandou a marcha do carro e quase parou para ver o que se passava com a jovem debruçada sobre o volante da sua viatura, chorando desalentada. Madalena tremeu. Lembrou-se então que daqui a nada a polícia estaria no encalço de um Laguna cinzento de matrícula portuguesa registado em nome de António Rosa. Era preciso rapidamente abandonar o carro algures numa povoação vizinha. Por outro lado, o seu cabelo castanho escuro de corte curto seria coberto por uma longa cabeleira loira e os “jeans” que usara no hotel, onde não foi identificada, seriam substituídos por uma roupa mais feminina. Depois era preciso alugar um automóvel que a levasse até Paris.

Mais de dois mil quilómetros a separavam do destino. Tentaria perder o menos tempo possível na viagem. Faria apenas breves pausas para desentorpecer as pernas, relaxar os músculos e tomar alguma coisa, aqui e ali, e dormir muito pouco. A pressa neste caso é amiga da perfeição e do sucesso… do crime. Chegando a Paris tinha muito que fazer. Monique e Antoine esperavam-na no apartamento/atelier que dividiam há já alguns anos no Quartier Latin. São ambos estilistas, de algum renome em Paris e em Roma, e “ouviram falar” do trabalho de Madalena numa revista especializada em moda emergente. Tinham muita curiosidade em conhecê-la e dispunham-se ajudá-la a entrar no complexo e difícil mundo da moda parisiense.

Longe vão os tempos em que os emigrantes portugueses entravam em França “a salto”, com uma pequena mala de cartão onde transportavam os seus parcos haveres. Madalena chegaria a Paris ao volante de um automóvel de média cilindrada, levando na bagagem, para além de muitos sonhos, um grande malão onde guarda o melhor das suas “toilletes” e duas malas de madeira onde carrega dezenas de figurinos e algumas peças de sua criação, já confeccionadas, para um primeiro desfile. Ela tinha tudo planeado até ao mais ínfimo pormenor. Nada foi deixado ao acaso. Para começar, antes de tudo o mais e assim que chegar a Paris, tem de fazer um importante telefonema.

… E o telefone tocou em Troino.
Quando Sónia, a jovem estudante-trabalhadora prima de Madalena, atendeu, ouviu do outro lado da linha: “Boa tarde. Daqui fala o Inspector António Jorge, da Policia Judiciária…”

a)Inspector Huga Booga


Quinto Capítulo

Sónia não sabe absolutamente nada da prima Madalena vai já para três semanas e havia prometido não abrir o bico para ninguém sobre o destino da sua recente viagem. Fosse para quem fosse! Nem mesmo para a mestra-costureira que dirige o seu atelier e que há dois dias lhe bateu à porta de tesoura quase em riste, de língua afiada e de falas cortantes, exigindo saber o paradeiro de Madalena. Sónia não se descose. Ela sabe muito bem que a prima não dá ponto sem nó e que o silêncio por ela reclamado tem razão escondida em verdades insofismáveis, embora desconheça por completo os motivos do mutismo imposto. Desconfia que há mouro na costa, isto é, que há homem na história, mas nunca se atreveu a perguntar fosse o que fosse sobre o assunto. Até porque Madalena não é mulher de badalar muito sobre a sua vida afectiva.

Ela conheceu a prima há meia dúzia de anos na festa da aldeia transmontana onde ambas nasceram em épocas distintas, separadas por cerca de dez anos. Sónia é filha de um primo do pai de Madalena, o António da Mula, um homem de maus fígados que fazia a vida negra a toda a gente que se atravessasse no seu caminho, sujeito capaz de virar tudo do avesso quando os azeites estavam com ele e pouco dado a grandes intimidades. Ficou conhecido por Mula porque era assim que tratava a mulher sempre que a ela se referia, quer estivesse são como um pero e lúcido como um sábio ou ébrio a cair da tripeça. Bom, na verdade, quando estava bêbedo que nem um cacho, ou a mostarda lhe subia ao nariz, a coisa fiava mais fino no tear da sua maldade congénita fermentada em (muito) vinho e aí não era só a sua santa e sacrificada mulher que era Mula. Toda a gente da aldeia e arredores que vestisse saias ficava alcunhada de fêmea de Macho e, pior ainda, dos nomes mais ordinários que o homem gozava e abusava do seu vernáculo vocabulário.

Até à morte do pai, abatido por uma rápida e implacável cirrose alcoólica, Madalena experimentou o pão que o diabo amassou. E aqui o diabo não é figura de estilo. É mesmo o demo, o belzebu, o homem mau de cornos afiados e de língua viperina, personificado no progenitor, no pai que quis ser tutor, patrão e amante. O pão, esse, era duro como pedra e amargo como fel. E não se pense que foi fácil digeri-lo. Noite após noite, depois de uma primeira investida quando ela tinha apenas catorze anos, o António da Mula metia-se por entre os lençóis da cama da filha e castigava-a sexualmente. Um dia a mãe acordou sobressaltada e gritou “António, onde estás?” Aquele nome, António, ainda hoje ecoa na sua cabeça como se viesse das profundezas do inferno, onde ele deve estar cumprindo penitência dolorosa, decerto tão dolorosa quanto foram (e quiçá ainda são) as dores de que fez Madalena padecer.

Ao telefone, o Inspector António Jorge insistia: “mas não faz mesmo ideia onde e com quem possa estar neste momento a sua prima?” Que não, continuou Sónia. E até jurou. Falso, mas jurou: “não sei, juro que não sei”. O inspector não acreditou, mas optou por não forçar a confissão. Preferiu mudar de estratégia e disparou: “o número de telefone 977081006 diz-lhe alguma coisa, sabe de quem é?” Sónia vacilou: “sim, sei” – balbuciou – “é o número de telemóvel da Vanessa, a empregada brasileira da confeitaria da Praça das Flores”. Curioso, muito curioso – pensou António Jorge... – “e o nome António Neto é-lhe familiar?” Não, Sónia nunca tinha ouvido aquele nome. Não sabe quem seja, jura que não faz mesmo a mínima ideia. Quanto a Vanessa, apenas sabe que ela está em Portugal há pouco mais de três anos e que assim que chegou ao nosso país foi logo trabalhar para a confeitaria “Pão de Canela”, onde Madalena toma habitualmente o seu pequeno-almoço antes de ir para o atelier.

Não havia inauguração de exposição, acontecimento social, desfile de moda, estreia de filme, concerto ou peça de teatro que Madalena e Vanessa perdessem. O “Frágil” no Bairro Alto ou os Bares mais “in” das docas de Alcântara eram o ponto de abrigo de quase todas as noites para as duas amigas, que raramente caíam na cama antes das três da madrugada, quase sempre sós ou mal acompanhadas. E cinco horas depois lá estavam elas de olhos e sorriso abertos na Praça das Flores para iniciarem mais um dia de trabalho igual a todos os outros: Vanessa a servir bebidas e pastelaria variada na confeitaria; Madalena a cortar e a costurar roupa dos mais diversos modelos e feitos no atelier - até que o lusco-fusco do fim de tarde viesse, qual príncipe encantado, despertar as suas “príncezinhas” para mais uma noite de entretenimento, cultura, convívio, copos e prazer.

Durante perto de ano e meio, Vanessa e Madalena foram assim uma espécie de “roque e amiga – por onde vais tu vou eu”, tão ou mais unidas do que “unha com carne”, tão fiéis confidentes como beata e sacerdote na sacristia ou no altar do Senhor, companheiras inseparáveis de todos os dias quer fizesse chuva, sol ou vento. Mais irmãs do que gémeas nascidas do mesmo ventre, mais solidárias do que união feita de sangue e lágrimas, elas não existiam uma sem a outra. Porém, um certo dia, ou noite, vá-se lá saber porquê, as duas amigas desentenderam-se e agora não podem ver-se nem pintadas. Há quem diga que a zanga ficou a dever-se a um conflito que teve origem na disputa pelos amores de um jovem e promissor treinador de futebol de uma equipa de segunda linha na zona de Cascais, por quem ambas se apaixonaram perdidamente, mas Sónia jura que não sabe.

O inspector António Jorge não quis ouvir absolutamente mais nada. Fartou-se de “juras” de quem com toda a certeza omite factos ou mente descaradamente e, irritado, antes de desligar o telefone, intimou Sónia a comparecer na sede da Judiciária no dia seguinte às nove da manhã para prestar declarações. Entretanto, e sem mais delongas, meteu os pés a caminho até ao Príncipe Real, desceu à Praça das Flores e foi experimentar um “bretzel” no “Pão de Canela”…

a)Inspector Huga Booga


Sexto Capítulo

Exactamente à mesma hora em que António Jorge chegava à alfacinha Praça das Flores para experimentar a especialidade da pastelaria alemã que fazia furor na confeitaria “Pão de Canela” e conhecer de perto a intrigante brasileira Vanessa, Madalena procurava estacionar numa das mais conhecidas ruas do parisiense Quartier Latin o carro que havia alugado há dias numa “salerosa” cidade raiana, e António Rosa voltava finalmente à sua amada Lisboa que o viu nascer, a ele e aos seus dois filhos, e à casa onde sempre viveu com Maria Otília após o seu casamento de mais de quinze anos que a partir de agora conheceria dias cruelmente difíceis e decerto insuportáveis por via da sua inesperada incursão por terras castelhanas atrás de um sonho colorido, ou de uma negra ilusão, que por pouco não terminou de forma trágica para ele.

As mesas da confeitaria estavam quase totalmente ocupadas pela clientela do lanche das cinco. Um casal de velhotes, de idade a roçar os oitenta, ele de bigode branco e farto e de calvície acentuada, ela de rosto lavado e de sombra discreta nos olhos azuis cor-do-céu-claro, trocava dois dedos de conversa enquanto partilhava chá e torradas à mistura com muita ternura e alguma brejeirice. Um jovem com pouco mais de vinte anos, só e embrenhado num livro de Biologia que fazia companhia a mais três calhamaços de Química, Psicologia e Ciências da Educação, mordiscava uma chamuça estaladiça enquanto a bica arrefecia em chávena aquecida. Duas mulheres, tias solteironas decerto, já para lá dos cinquenta, depenicavam uma duchesse e um russo, acompanhados a leite morno, enquanto desfiavam intrigas sobre a vizinhança ausente. Dois namorados, ainda adolescentes, de mãos entrelaçadas, repetiam promessas de amor, de olhos lânguidos e vidrados, alheios a tudo e a todos, como se o mundo tivesse parado para contemplar a felicidade de ambos. Um vagabundo, talvez poeta, escritor ou artista, de olhar profundo e visionário, olhava a Praça através da vidraça da montra, de beata perdida entre os dedos amarelecidos pelo tabaco enquanto a cinza caía sobre o jornal do dia anterior dobrado em quarto sobre a mesa. António Jorge ficou-se pelo balcão. Vanessa, a empregada brasileira, morena clara, de cabelo cor de amora, olhos de amêndoa, de seios generosos e bunda saliente, como o orgulho macho de António Jorge tanto apreciava, sorriu docemente para ele, que só conseguiu balbuciar: um bretzel e um chá verde, por favor.

O Boulevard Saint Michele estava apinhado de carros. Não havia um só “buraco” onde Madalena pudesse deixar o seu Opel rent-a-car enquanto procurava a casa onde viviam os seus protectores parisienses, que ela ansiava conhecer pessoalmente. Tinham trocado inúmeros email’s e alguns telefonemas breves, para além de muitas mensagens por sms e de postais no natal e nos dias de aniversário, depois de conversas quase intermináveis num “chat” de moda onde marcavam presença diariamente, mas era a primeira vez que ela ia estar cara a cara com Monique e Antoine. Não havia quase nada sobre os dois que ela não soubesse, tal fora a sua laboriosa pesquisa na net e em jornais e revistas, onde recolheu praticamente toda a vida de ambos, através de entrevistas, comentários, notícias breves e notas de rodapé ou legendas de fotografias, que tinham como enfoque aqueles dois reputados nomes do estilismo europeu. Numa publicação especializada em alta costura, Madalena ficou a saber que Antoine e Monique tinham reparado no seu trabalho e que nutriam alguma admiração pela forma como ela vinha impondo aos poucos a sua marca de estilista na corrente conservadora que imperava em Portugal. Foi este o ponto de partida para uma bela amizade que ganhava agora novos contornos com a sua ida para Paris, onde procurava afirmar definitivamente o seu inegável valor de criadora de moda. Do seu país ela queria esquecer tudo, apagar todas as memórias. Antes, porém, queria ajustar umas pequenas contas com alguém em Lisboa e ia fazê-lo já… pelo telefone.

António Rosa regressou a casa para sossego dos filhos, mas para seu desconforto. Os miúdos reencontravam a tranquilidade e a segurança que haviam sido ameaçadas com a sua partida, mas ele sentia-se perdido em terreno movediço e perigoso. Havia agora que explicar muito bem perante a mulher, os sócios e… a polícia, as verdadeiras razões da sua estada em Oropesa del Mar, o motivo do seu internamento hospitalar e do estranho desaparecimento da sua roupa e demais pertences pessoais, para os quais apenas tinha um resposta: a vida é uma viagem em permanente mutação, num perpétuo e indomável movimento, que não comandamos de facto, muito menos com a razão. Por mais que queiramos racionalizar todas as nossas atitudes, acabamos sempre por esbarrar em sentimentos e vontades que não controlamos. Ele, que desfrutava de uma estabilidade profissional e financeira invejável, que sempre entendeu a família como uma instituição sólida e inabalável, que tinha os filhos como um elo inquebrável de uma relação imune a todas as tentações, acabou por não resistir aos encantos daquela misteriosa e bela mulher. Ainda agora, depois de ter escapado por sorte a uma terrível experiência que quase o matou, António Rosa não conseguia esquecer Madalena. Como ele a amava, Santo Deus!

O telefone da confeitaria interrompeu a interessante conversa que António Jorge havia iniciado com Vanessa, tendo por tema o Bretzel e as suas origens, as suas propriedades e valores energéticos, as suas vantagens dietéticas e os seus poderes afrodisíacos, mais bla, bla, bla, bla, enfim, conversa mole de macho latino mais interessado em “carne fresca” do que em pastelaria fina. A brasileira pediu muita desculpa e foi atender o telefone. Por deformação ou interesse profissional, o “nosso” inspector ficou atento à conversa. “É você ?” – dizia ela. “Mas onde é que você está?”… “Em Paris?” … “E ele, que é feito dele?” … “Meu Deus” … “Sim” … “Tudo tem o seu tempo”… “Você não deve agir sozinha”… “O improviso pode deitar tudo a perder”… “Nada, não ouvi dizer nada, acredite” … “Preciso de ter a certeza primeiro”… De súbito, o telemóvel de António Jorge resolveu marcar presença. Era Abílio Mata-Moscas, o seu assistente:
- Chefe. Temo-la na mão. Foi localizada.
- Como?
- Ela usou novamente o telemóvel do Neto.
- Bingo! Eu sabia. A parva havia de cair de novo no erro. Onde está ela?
- Em Paris.
- Óptimo. Mete o Jeff em campo. Tu, mantém o Rosa debaixo de olho e vigia a Sónia.
- E a brasileira?
- Eu trato da Vanessa. Encontramo-nos logo à noite, na sede. Até já.

A empregada brasileira continuava ao telefone. “Está bem, você é que sabe. Eu falo com Sónia e deixo com ela o envelope”… “Não, descanse, eu tomo cuidado”… “Não, espere… espere… espere”. António Jorge sorriu quando ela desligou. Vanessa retribuiu com um sorriso amarelo, de sobrolho carregado. O inspector ganhou alento, segurança. Tinha na sua frente uma mulher fragilizada, desguarnecida, sem defesas, mais facilmente disponível para novas “amizades”. O convite para um “copo” após o emprego não tardou. A brasileira não reagiu bem. Com quem pensava ele que estava a falar?!... António Jorge pediu que não o interpretasse mal. Ele apenas queria ajudar. Pareceu-lhe que ela precisava de algum conforto, de espairecer, desanuviar, ou até mesmo desabafar. Mas tudo bem. Fica para a próxima.

Na despedida, ele estendeu-lhe a mão: “O meu nome é António Jorge. Voltaremos a ver-nos em breve, tenho a certeza” – disse-lhe o “nosso” inspector, sorrindo. “Espere… António, António… Jorge. Pensando melhor, se o convite ainda estiver de pé, podemos encontrar-nos logo à noite, nas Docas, em Alcântara. Acha bem?” – reagiu Vanessa. “Não prefere que a vá buscar a algum sítio?” – disse-lhe António Jorge, ao mesmo tempo que lhe pegava, com ternura, na mão. “Está bem. Aqui, no Pão de Canela, ás 10 e meia, pode ser?” Combinado.

“O Mata-Moscas que se dane. Falo com ele amanhã de manhã” – pensou António Jorge.

a) Ma(r)ta Hari


Sétimo Capítulo

Abílio Mata-Moscas passou por duas vezes o dedo polegar da mão esquerda pelo bigode, primeiro do centro para a esquerda e depois no sentido inverso partindo do mesmo ponto, fez uma breve pausa “expressiva” de concordância relativamente ao que lia, recostou-se na cadeira, coçou de novo a cabeça junto à nuca onde uma pequena careca reluzente reflecte a luz do candeeiro que ilumina o gabinete sombrio em que diariamente, e há cerca de cinco anos, as suas meninges e os velhos músculos já cansados de quase cinquenta anos de vida dura procuram dar corpo às missões que lhe são incumbidas pelo inspector António Jorge, um dos mais combativos e inteligentes quadros da secção de homicídios da “Judite”, e voltou a mergulhar sôfrega e apaixonadamente na leitura da página “tantas” do relatório que tinha à sua frente sobre a secretária. Molhou novamente o dedo indicador da mão direita na ponta da língua e folheou mais uma página. “Madalena, jovem de pouco mais de trinta anos, morena, de olhos grandes e negros, nasceu perfeita, bela e sadia, em Abril, numa chuvosa e cinzenta sexta-feira de Páscoa, no seio de famílias humildes. Cresceu depressa e quase não foi criança. Deixou cedo a escola e abandonou a aldeia natal na pré-adolescência para aos quinze anos começar a trabalhar na grande cidade, no atelier de costura de que hoje é co-proprietária. Revela profundas preocupações sociais, contribui financeiramente para a formação académica de uma prima de cuja existência andou perdida e não se lhe conhecem antecedentes criminais”– lia-se.

É aquele belo exemplar de mulher, de perfil quase angélico, sobre quem recaem enormes suspeitas de quatro crimes de homicídio qualificado, que o judeu Jeff Cohen, americano nascido em Bóston e há dez anos residente em Paris, colaborador da judiciária portuguesa em terras de França, tem de acompanhar passo-a-passo a partir de hoje. Mata-Moscas avisou-o: as boas aparências às vezes escondem espíritos negros e sombrios, capazes das mais terríveis atrocidades, pelo que todo o cuidado é pouco. Jeff não teme nenhum desafio por mais arriscado que seja. As experiências vividas e dissecadas ao longo da sua extensa e brilhante folha de serviços vacinaram-no contra todos os perigos, os mais imprevisíveis e delicados, os mais complexos e transcendentes, pelo que o “pessoal” da “Judite” que dirige as operações em Lisboa pode ficar tranquilo – Madalena não tem hipóteses de escapar ao seu olhar de lince. Ele vai viver em função do que ela viver e ao ritmo da vida que ela fizer. Jeff será o espelho dela, a sua sombra em cada momento, esteja ela onde estiver, vá ela para onde for. Nada escapará ao faro profissional do judeu americano de Paris mais português de que há memória na história da Policia Judiciária!

Não há dúvida: quanto a Madalena, estamos conversados. O inspector pode descansar, que ela vai ser seguramente mantida “debaixo de olho” e sobre rédea curta. No que respeita ao Rosa, a coisa também parece tranquila e pacífica: ele está sob escuta e a sua “queridinha” esposa tão cedo não o deixa pôr os pés na rua! Relativamente à Vanessa, o “chefe” decidiu assumir pessoalmente a função de a vigiar e com ele nada falha. O seu grau de eficácia nas tarefas a que se propõe é de tal forma elevado que a “coisa” está segura. Resta-nos a Sónia. Quanto a esta, para já, a estratégia é ligar-lhe anonimamente para casa de quando em vez e aparecer uma vez por outra no politécnico às horas em que ela tem aulas ou junto da seguradora onde mantém um matutino part-time. Há cerca de uma hora atrás ela estava em casa. Mata Moscas volta a ligar-lhe e se Sónia atender o telefone, ele pode ir finalmente descansar, que amanhã também é dia de serviço. “Mas, que raio, ela não atende. São dez e meia da noite e a pequena não está em casa!...” – pensou, com ar grave, o detective Abílio Mata Moscas, ao mesmo tempo que coçava mais uma vez a sua pequena careca reluzente e mordia o seu farto bigode com os dentes do maxilar inferior.

Sónia tinha acabado de sair no preciso momento em que Mata-Moscas decidiu ligar-lhe para casa pela segunda vez naquela noite. Ela tinha recebido alguns minutos antes um telefonema de Vanessa a reclamar a sua presença em Lisboa, nas docas de Alcântara, para um “servicinho de luz branca”. A priminha da “emigrante” Madalena não perdeu tempo. Vestiu à pressa os jeans mais justos que possui no seu guarda-roupa, calçou uns ténis cor-de-rosa salpicados de estrelas azuis que lhe dão um ar gaiato e provocador, trocou a camisa largueirona e desbotada que usa no seu dia-a-dia de casa por uma T’Shirt anã que lhe destapa o seu tentador umbigo, soltou os cabelos ao vento, pegou no carro e lá foi ela, “acelerador a fundo”, rumo à capital. O seu velho Fiat na A2 treme por todos os lados, com um ruído de chapa capaz de fazer perder a cabeça a um santo surdo. Sónia, que já conhece muito bem as manhas daquela máquina dos anos oitenta do século passado, vai dizendo baixinho e a sorrir: “vá, ‘treme-treme’, vamos depressa que serviço é serviço e a vida não está fácil para ninguém. Se te portares bem, amanhã encho-te o depósito antes de ir ter com o tal inspector ‘não sei quantos’ à Judiciária”.

A noite está cálida e clara. É tanta a gente que passeia junto ao rio que até parece que Lisboa resolveu sair à rua para festejar a chegada do verão nas docas de Alcântara. A luz da lua, gorda de cheia, deixa ver o Tejo em toda a sua extensão entre margens, calmo, como se estivesse dormindo, protegido pelas estrelas que guiam os justos e embalado pelo som do voo das gaivotas. No outro lado do rio, Cristo, o todo poderoso, envolve a cidade com os seus longos braços abertos numa bênção dos céus. Ali bem perto, Sónia prepara-se para atravessar a ponte ao volante do seu velho Fiat de vinte anos que quase desmaia aos roncos quando pára junto da portagem. O portageiro sorri descaradamente de troça, mas ela nem dá por isso, ou simplesmente não quer tomar conhecimento, porque, apesar do aspecto, o seu “treme-treme” “gasta” pouco e chega sempre onde chegam todos os outros carros. Mais devagar, mas chega. A verdade é que saiu de Troino há pouco mais de quarenta minutos e ela já consegue ver ao longe, da ponte, Lisboa e as suas docas.

António Jorge e Vanessa passeiam junto ao Tejo, falando de banalidades, numa conversa feita de lugares comuns e de frases feitas, como se as palavras de ambos apenas quisessem encobrir o que os dois pensam de facto. Ele fazia conjecturas menos profissionais do que devia, mais interessado na mulher do que na “suspeita”, mais preocupado em ser “caçador” do que em ser polícia. Ela tinha o pensamento em Sónia e num estranho plano que as duas vinham arquitectando há já algum tempo e que têm adiado por falta “caça” apropriada. Ao passarem por uma esplanada muito animada, com gente muito jovem, António Jorge propõe que se sentem. Vanessa sugere um local mais discreto e menos ruidoso, que ela conhece, um pouco mais adiante. Um candeeiro de via pública apagado e quatro mesas abandonadas de uma esplanada sombria, na periferia da animação que nasce no Cais do Sodré e acaba ali, já quase em Belém, é o que primeiro se retém do local escolhido pela brasileira. O inspector tomou aquela escolha como um convite a uma maior intimidade e pegou-lhe na mão. Ela não o repeliu. Sentou-se a um sinal dele e respirou fundo. António Jorge “avançou” mais um pouco e os seus lábios poisaram ao de leve na palma da mão direita de Vanessa. De súbito, e antes que António Jorge progredisse ainda mais nos seus devaneios, a empregada do “Pão de Canela” levantou-se. “Olha quem ali vem. Sónia! Sónia! Sónia!”

“Muito prazer. O meu nome é António Jorge”. Sónia ficou paralisada de medo. Aquela voz é a mesma do telefonema da tarde… e o nome. Meu Deus!...

a) Madame Eclética


Oitavo Capítulo

O surpreendente aparecimento da prima Sónia fez António Jorge constatar como as coincidências, ou pseudo coincidências, podem trazer chuva na eira e sol no nabal. Certo das mentiras da “priminha”, já que lhe tinha estendido a armadilha do 977081006 que ela infantilmente “mordera”. Agora, era António Jorge que se esbofeteava por dentro por, com a surpresa, ter piado audível e desnecessariamente o seu próprio nome! Podia ter apertado com convicção o braço da Vanessa, em lugar de estar perdido na chuchadeira de lhe beijocar a mão... e, calando-a, voltar a dominar os acontecimentos. É que, relembrava, este caso já lhe trouxera outros inesperados cruzamentos, sacados do buscador informático da “Judite”.

“António Ferreira Neto”, entre aspas, levara aí ao achamento do cadáver mas conduzira também a uma inesperada pista que começava pela cópia da pungente carta que um Narciso Filipe, o “Pinguinhas”, tinha escrito meses antes ao Presidente da Câmara de um ridente concelho estremenho. Recebido nos Paços do Concelho com outros dois colegas e representando assim 60% da força de trabalho da falida “Resineira de Santa Leocádia”, relatara como os trabalhadores da mesma, vencimentos perdidos, deserção do patronato, mal sucedida recuperação de empresa e explicação confusa de procedimentos, se sentiam espoliados do pouco que ainda restava antes das portas serem definitivamente fechadas e o terreno desocupado para fins imobiliários. Ouviu-o o atento presidente, solene como convinha, instalado entre a bandeira nacional e um busto da República, generosamente patriota.
Certo era que, de há muito, os negócios daquela empresa não andavam bem! Quanto à “massa” em caixa, então nem se fala! Os donos permaneciam biombados num anónimo vão de escada gibraltino, o gerente catalão não punha os pés no estabelecimento e a zona de produção só se manteve menosmalmente enquanto por ali andou o Eng. Lobato. Farto de promessas por cumprir, o Lobato acabou por ir de frosque e deixou o quiosque ainda mais desamparado.
Veio então outro engenheiro, António Ferreira Neto, que logo mostrou preocupar-se muito com o reactor grande e pertences, tudo comprado em Itália, num mercado de equipamento químico em segunda mão. Mediu-o, fotografou-o e pediu ao José da Costa que, daquele amontoado chamado arquivo, destacasse todos os desenhos e documentação que lhe respeitassem.
O processo de recuperação de empresas dera já o que tinha a dar. Continuavam a não pagar vencimentos, primeiro em partes, depois no todo. O dinheiro mantinha-se em “nenhum” e os credores “em muitos”. Destes, os principais, tinham-se entendido bem quanto ao espaço e nada quanto à viabilização industrial. Criaram-se duas sociedades, a imobiliária e a outra, remetendo para esta o pessoal. Recusando saídas claramente abaixo do que pensavam poder esperar, os trabalhadores limitavam-se a vigiar o espaço que fora também deles, sem outro sítio para onde ir ou esperança a que recorrer. A falência tornara-se um facto real e um reaparecido António Neto viera desempenhar pouco claras funções dentro de um processo que parecia não mais ter fim. Assim, foi com dificuldade que o regressado engenheiro lá os convenceu, naquele fim de ano de 2001, a abandonar os portões entre o Natal e o dia de Reis com o argumento de que, findas essas duas semanas, estaria a tempo de os readmitir e de reatar a produção com um rentável fabrico a feitio que iria contratar, matérias-primas da conta do cliente, produto a levantar contra dinheiro fresco, deixando-os então imediatamente compensados de tudo o que por agora se lhes ficara a dever. Entretanto, durante as festas, a fábrica ficaria fechada a cadeado, ninguém se chatearia por isso e pronto!
Foi com surpresa e revolta que, regressado em Janeiro, o pessoal se apercebeu da ardilosa saída do reactor grande e suas adjacências. Um vizinho da fábrica contou que, no fim de uma daquelas tardes de festa, tinha chegado um camião coberto, de matrícula espanhola, que entrara às arrecuas no pátio e que só saíra na manhã seguinte. Um tipo mal encarado apareceu na venda, comprou conservas e cerveja e, em provocada conversa, disse terem vindo trazer uns bidons de matérias-primas para o novo fabrico. Confortou os presentes com isso, a ponto de gerar um passa-palavra tranquilizador. E de facto os bidons lá estavam, mas usados, amolgados e vazios, verdadeiramente de “para português ver”.
Dos adquirentes da firma nem notícia, do Eng. Neto muito menos, só tinha aparecido por ali o advogado da imobiliária a verificar se o espaço estava já liberto. Apertado com perguntas foi evasivo: o processo de falência estava concluído, os trabalhadores teriam direitos certamente acautelados. Quanto ao reactor, fez-se de novas e disse que de nada sabia, arriscando que poderia ter sido vendido como sucata ou até devolvido aos seus legítimos proprietários pois constara-lhe que tal equipamento nem sequer tinha sido totalmente pago. Assunto entre o tribunal e os credores e de disposição da massa falida, em extensão que não sabia o falante precisar.
Logo a seguir à constatação do despojamento, Narciso “Pinguinhas” e colegas subiram ao escritório e arquivo para ver se ainda lá estavam as coisas que o José da Costa coleccionara para o António Neto. Faltava tudo isso e não só, onde só restava a memória: o José da Costa lembrava-se do que colocara junto da secretária do interessado engenheiro, dos desenhos do reactor, enfiados em envelopes entretelados e azuis, dos dossiers de correspondência, de duas ou três pesadas caixas de madeira que continham os manuais técnicos e os livros diários de fabrico.
E agora, senhor presidente, aqui estamos para lhe narrar isto, pedir-lhe as providências da Câmara e um aconselho sobre o que devemos fazer?!
Só me saem duques do baralho, pensou o presidente! E começou o “discurso-modelo três” dos momentos desgraçados de crise. Sabem, meus amigos, não há muito que a Câmara possa fazer nestes casos. Falem já com o vosso sindicato e com o vosso advogado, aquele que o sindicato designou e que acompanhou o processo e expliquem-lhes tudo tim-tim por tim-tim. Recordem os elementos que puderem sobre isso do reactor, do camião e dos documentos. pois pode ser preciso ir ao tribunal ou à guarda falar-lhes nisso ou, sei lá, formalizar mesmo uma queixa, no caso da saída ter sido irregular. Mas, sem dúvida, comecem é já pelo sindicato e pelo vosso advogado. Hoje mesmo! E só por curiosidade, qual é o tamanho daquilo? E o material, qual é? Ah, um inox especial... está bem de ver! Há sucateiros por aí que adoram inox! Poderia aquilo interessar a alguém tal como está? Dizem vocês que daria para fazer quase tudo... essa é boa! Digam isso também ao advogado e, se for preciso, ao delegado, à guarda, à direcção regional do ministério da economia, já agora, e aos rapazes do ambiente, que são muito sensíveis a essas coisas... Por ora, não vos vejo outra solução. Sindicato e advogado já! Nisto de crises, os principais pagadores acabam sempre por ser os mesmos...como na história do mexilhão! Agora desculpem, tenho de ir inaugurar o espaço para o futesal no Abelhense. Obra asseada! Entramos com um subsídio para aquilo... E digam-me coisas do que resultar! Sempre à vossa disposição!

Mexeram-se bem os rapazes, como lhes tinha sido dito. Ou pelo sindicato, pelo tribunal ou pela guarda, a verdade é que parecia ter havido um descaminho de património em processo pendente. O nome de António Ferreira Neto vinha-lhe enrolado e o computador dera com ele. Curioso!

Os desenhos deixados no “carro do morto” batiam certo com o tal panelão fabril algures desviado. O 977081006, “número não atribuído”, reincidia no computador através, também, do pícaro negócio que se passara “em casa do Oropesa”.
Até segundos atrás pudera esperar que a tal Sónia lhe viesse amanhã dizer algo de interessante! Jogava na surpresa, no cenário, no enquadramento, no “acagaça-se um bocadinho, lacrimeja o suficiente e acaba por cantar tudo”! E agora tinha-a ali, desnecessariamente ali, uma verdadeira porra de incomodidade e uma potencial nuvem negra a fazer mais negrume numa noitada que esperava radiosa! Jogando nas vantagens dos inconvenientes, olhava a brasileira ao seu lado e a prima à sua frente, deixando vir-lhe à esquentada cabeça quantos significados bizarros se podem utilmente apegar ao anglicismo “sanduíche”!

a) Inspector Moka


Nono Capítulo

Não é fácil fazer uma sanduíche quando o fiambre se encontra preocupado – e esta metafórica expressão traduzia bem o sentir de António Jorge. Sempre aprendera que uma das qualidades do investigador é não acreditar nas coincidências, e – aparentemente – ali estava uma a ser-lhe servida em travessa, com batatinha na boca, como se ele a fosse comer ou ser comido. Imediatamente pensou como poderia raspar-se de uma forma minimamente airosa, certo de que a reacção quase imperceptível da moça lhe dera uma notícia de alarme e de que, dentro de horas, a deveria ter pela frente na « sala das perguntas » que prolongava o seu gabinete. Que se lixasse pois, pelo menos por agora, o sonho fugazmente sonhado de substituir os lilases no «Le Printemps» de Tamara de Lempicka ! Não havia tempo a perder !. Só lhe restava uma habilidosa simulação, mandando-se para a piscina, arrastando consigo a toalha e o cinzeiro, murmurando um « não me estou a sentir bem », caindo com convicção e experiência de judoca, contando que não houvesse um médico prestimoso e próximo e esperando que fosse rápida e eficaz a redentora chegada do «nóninóni».

Saiu-se bem ! Quando o levaram, queixou-se de tremuras e suores frios. Com voz razoavelmente arrastada declarou ser diabético e não ser aquela a primeira crise. Passado o perigo, a recuperação daquele aparente episódio hipoglicémico iria revelar-se surpreendentemente rápida.

O telefonema para Abílio Mata Moscas apanhou-o em cuecas, à mesa da sala de jantar, mais uma vez debruçado sobre a sua colecção de «Ceres». «Recolhedor do cuspo universal», como já alguém tinha apodado depreciativamente os filatelistas, este diligente funcionário policial era não menos cultor de tal actividade desde que, aos catorze anos, arrematara numa rifa beneficente, por tuta e meia, um velho album que alguém descarregara por imprestável para ali, mas que continha surpreendentes exemplares dos selos que, tendo sido os primeiros a arvorar valores em Escudos na jovem República, continuam a ser uma dor de cabeça favorita para muitos filatelistas portugueses. Mata-Moscas orgulhava-se da sua colecção que, secreta mas insistentemente, ia enriquecendo e estudando.. Chegado tarde, depois do ultimo telefonema para Sónia, o tal que ficara sem resposta e que, porque « encostado » à sessão do dia seguinte, iria repetir só mais uma vez às onze e meia, através da Central, estava por isso ainda desperto quando António Jorge lhe telefonou :
– Ei, Chefe ! Esperei por si até tarde…tenho seguido telefonicamente a Estudante .., que estava em casa às nove e meia da noite, mas já não estava às dez e meia, e como o Chefe não apareceu deixei-lhe uma mensagem na central telefónica e vim para casa…
– Certo ! Preferia que a fulana não andasse tão solta, mas isto da economia de meios… Agora note bem : amanhã você vai mais cedo para evitar fífias no cenário, ela aparece para falar comigo, você recebe-a sem dizer o seu ou o meu nome, ou nome algum, faz-lhe as perguntinhas que sabe dever fazer, tudo discretamente video-gravado, despacha-a com a nota de que voltaremos a querer falar com ela… ou avisa-me se acaso surgir algo de peixe grosso que justifique que a gente imediatamente a recolha no piso de cima…
– Mas…e se a dita perguntar quem sou eu ?
–Vai ver que não pergunta, o que será muito significativo. Mas se perguntar, você diz que é um colaborador meu e que eu estou desde a manhã de hoje em serviço urgente fora de Lisboa! Registe toda e qualquer demonstração de surpresa. Ela está convencida que acaba de estar comigo nas docas e que eu me esquivei de qualquer artimanha que ela ou a Moreninha ou ambas me estariam a armar! Não dê o flanco: o seu chefe, hoje ou ontem, porque o dia já está a passar-se, não pôs mesmo o cu nas docas. Se havia um fulano parecido lá, seria certamente outro e não o seu chefe. Talvez alguém a passar-se por ele! Mas vai ver que ela não vai perguntar nada…Ok ?
– Certo, chefe !
– Depois diga-me qualquer coisa !
– Use o meu gabinete. Se quiser falar comigo, o único problema que tem é sair da sala e ligar pelo télélé ou pedir a ligação à Imprescindível, da secretária dela! Eu, entretanto, aproveito o dia para ir falar com o «Quiabos», ao quiosque dele. Vou até lá. Muito cedo, como convém, para o apanhar livre e fresquinho. Boa noite !

No dia seguinte, a conversa com o «Quiabos», antecipada por um simples telefonema, iniciou-se na Faculdade às oito em ponto. Colega de António Jorge no liceu e amigos desde aí, o «Quiabos» tinha escolhido a Química e depois a Engenharia Química como actividade profissional e, mercê de uma dedicação furiosa, tinha facilmente subido na escala académica, sem desprezar uma componente profissional externa permanentemente actualizada. Muito embora a «instituição» que empregava António Jorge tivesse o seu próprio «satff» científico, os seus laboratórios e, bem assim, o seu rol de peritos, este costumava ouvir «à capucha» as opiniões daquele Zeferino Eleutério Ribeiro, de forte cepa ribatejana, mais conhecido pela insólita alcunha que celebrava a bem-sucedida tentativa de cultivar quiabeiros em Alpiarça.

António Jorge relatou os factos anteriores em toda a sua nudez e complexidade, desde o desaparecimento do «reactor», até à cena parva de Oropesa, desde a morte de António Neto, engenheiro, até à suposta movimentação dos personagens. Exibiu os desenhos e esquemas cedidos pelos frustados trabalhadores e retirados do espólio recolhido no «carro do morto». Facultou registos e escritos, incluindo o estranho número que parecia de telemóvel, recolhido em dois sítios bem diferentes e motivador duma mentira num terceiro.

O «Quiabos» ouviu tudo, com o comportamento gravador que todos lhe invejavam. Examinou meticulosamente os desenhos e documentos, traçando, a lápis, garatujas estenográficas em folhas A4 dobradas na vertical, formando caderno. Quis saber se havia notícia de alguém, pessoa singular ou colectiva, que se tivesse interessado pelo reactor, de algum ferro-velho conhecido que dele vendesse peças ou porções, de qualquer passagem de fronteira que fosse assinalada.
– Sabes que com isto se pode fazer muita coisa, boa ou má ? Que há gente que se pelaria por ter na mão um porta-aviões destes ?
– Por eu adivinhar mais ou menos isso e porque tudo me cheira a esturro nesta história é que eu venho ouvir a tua opinião e pedir as tuas sugestões ! Que te parece ?
– Parece-me que, à pala de sucata, alguém quer uma prenda muito especial, é o que me parece. E, porque há legislação sobre estas coisas, temos que ver se não se aplica ou se está a ser «bypassada» ! Para além do equipamento, resta saber o propósito. E é aí, em toda a restante caldeirada que inclui um furto na fabriqueta falida, a morte do engenheiro que andou metido nisso, o pretexto de uma gaja que vai para a estranja com embalagens e indicações que também a ligam ao caso e depois se pira daquela forma, que tudo me cheira mais a esturro ! Mas esperemos que não seja nada. O povo é sereno… Para já vou fazer algumas contas, já tomei nota do essencial e dir-te-ei brevemente alguma coisa.

Só ao fim da tarde voltou ao gabinete. Sabia já, pelo telefone, o que se tinha passado entre uma Sónia que de facto nada quis saber de quem tinha à frente e só mostrava vontade de, apavorada e perplexa. se pirar dali depressa, e um Mata-Moscas calvo e bigodudo que não era quem ela esperava que fosse, e que lhe prometeu que tudo não ficaria por ali, regressou a casa anormalmente cedo. Sem vontade de jantar, pois tinha aproveitado a tarde para entremear algumas «caapelinhas» com outras tantas livrarias, petiscando numas e noutras, deixou o tempo passar no exame de diversos dossiers pendentes e só despertou quando tocou o telemóvel, pelas dez da noite. Era o « Quiabos », em grande excitação, disparando logo :
– Ouve lá, posso falar ? Estás perto de algum computador? Que tenha «net» ?
– Podes ! Estou no gabinete e tenho um dos computadores sempre ligado… e posso imediatamente ir à «net» !
– Olha lá, o tal pseudo-número de telefone que me deste e que apareceu duas vezes era mesmo o 977081006 ?
– Deixa ver ! Era mesmo…
– Então vai a um motor de pesquisa qualquer e consulta-o sobre o « CAS 77-81-6 », assim mesmo, como te digo. Com espaço, hífens e tudo!
– Um momento… estou a consultar ! está … Porra !
– Porra digo eu ! Temos mesmo de conversar !
– Pois temos… ! Centaurea cyanus !
– Lineu !

a) Inspector Moka


Décimo Capítulo

A noite está calma que nem criança dormindo no aconchego do leito materno; quente que nem peito de mulher abraçada ao amante há muito desejado em sonhos ardentes e arrebatadores; … e Sónia treme que nem seara verde em madrugadas de ventos ciclónicos!... Correntes de suores frios, quase gelados, rebentam por todos os poros do seu jovem e delicado corpo de mulher ainda menina. A testa lateja, as pernas fraquejam. O seu estado geral, físico e psíquico, é quase catatónico. Ela não consegue esquecer a vergonha da experiência vivida naquela manhã num escarafunchoso e húmido gabinete de um sombrio e triste inspector da Polícia Judiciária, que dá pelo nome de António Jorge, mas cuja “graça” parece estranhar quando assim é chamado, dando sinais de inquietação quase infantil, através do seu bigode farfalhudo mimado por constantes carícias, que parece eriçar enquanto o seu rosto ruboriza, como criança apanhada numa qualquer mentira inconsequente.
A noite anterior fora passada em claro e o sono acabou por não ser bom conselheiro. Sónia trocou os pés pelas mãos, gaguejou entre afirmações pouco consistentes e explicações esfarrapadas para justificar o injustificável. No meio do interrogatório ficou a saber que afinal o suposto número de telemóvel que ela havia descoberto casualmente numa das agendas de Madalena não era de nenhum “celular da brasileira Vanessa”, como a prima sustentou quando questionada sobre aquele estranho número que começa por 97. Madalena convenceu-a de que se tratava de um número de uma operadora móvel brasileira coberta por um qualquer satélite instalado algures na Europa. A explicação terá sido na altura convincente mas o que é certo é que ela nunca mais esqueceu o número. Podia ter experimentado ligar para aquele “97” só por curiosidade, mas na verdade nunca o fez. Se o tivesse feito, teria logo percebido que se tratava de um logro.
Agora Sónia sabe que há algo mais para além daquilo que ela julgava saber sobre as razões de tantos crimes cometidos em nome de uma suposta seita ou religião secreta que promete a vida eterna, orientada por uma velha mãe de santo que reclama sangue humano em troca de favores terrestres e de vida luminosa e farta noutra esfera, dimensão ou plano astral. Na Judiciária fala-se em armas nucleares, em algo muito, muito sério... de terrorismo até! Sónia já não sabe o que sabe, nem quer saber mais do que sabe. E sobre querer, apenas sabe que não quer nada, absolutamente nada… a não ser, talvez, um buraco por onde tome sumiço, por onde desapareça no nada. O que se passa não se resume a um simples pesadelo de onde possa sair incólume com um despertar salvador. O que ela viu, ouviu e sente, está mesmo a acontecer-lhe, não é ficção ou sonho!

Noutro canto da vida, no extremo da grande Lisboa, num modesto mas recente e bem equipado apartamento de quatro assoalhadas, algures entre os “dormitórios” citadinos Olivais e Bela Vista, António Rosa está triste, pesaroso, desalentado. Acabou de deitar a prole nas suas camas e tem Otília à espera, sentada num sofá em frente à televisão, na sala de estar. Apetece-lhe estar só consigo mesmo, mas não vai ser possível porque ela já fez questão de lhe fazer saber que não deixará. Segundo ela, há muito, muitíssimo, para conversar!
Durante o todo o jantar ele disse apenas meia dúzia de frases: “vai lavar as mãos, Rui; “traz o pão para a mesa, Rita”; “segura como deve ser na faca, Rui”; “deixa o teu irmão sossegado, Rita”; “deixem-se de brincadeiras, moços”; “passa-me a fruta, Otília”. E agora ali está ela, a mulher que lhe deu filhos e pouco mais, à espera que ele lhe conte tudo, “tim-tim por tim-tim”, desde que saiu de Lisboa, após a Páscoa, até ao seu regresso a casa.
Mas o que lhe há-de ele contar? Que o seu coração não resistiu aos encantos de Madalena? Que o seu amor está todo ele naquela estranha mulher que o abandonou quase desfalecido, entregue à sorte, numa cama de hotel em Espanha, após uma sexualmente prometedora noite de copos e animação numa discoteca manhosa? Que Madalena o enfeitiçou de tal maneira que já nada será como dantes, em casa, com Otília e com os seus próprios filhos? Que a modista, estilista, da Praça das Flores não é apenas a “mulher dos trapos”, como a designa Otília com desdém, só para rebaixar a rival com quem ele terá cometido, na sua opinião de fêmea ofendida, um “pequeno” devaneio?
Não! Na verdade, Madalena não é “só” a mulher que ele ama! Madalena é a mulher que ele sempre amou em todas as mulheres que teve!!! A mulher que ele desejou em todas as noites de insónias vividas nas muitas camas que fez e desfez na vida, a amiga que ele buscou em todas as horas de desespero e de inquietação entre sonhos feitos e desfeitos em castelos de areia, a companheira que ele procurou em todas as lutas que travou com a sorte e com o destino que lhe quiseram impor em cada dia da sua vida. Ela é a sua irmã, a sua mãe, a sua amante, a sua alma… gémeas de si, feitas do mesmo sangue, da mesma carne, do mesmo sal!!! Mas isto Otília não vai querer ouvir!...

Em Paris, Madalena devia estar alegre, bem disposta, sorridente… mas não está. Tem à sua frente, a alguns dias, semanas ou meses de distância, o futuro que sempre ambicionou. Para tal, basta apenas que deixe correr lesto o tempo por entre desenhos e paletas de cores determinadas pelo seu talento, amparada pelos amigos parisienses Antoine e Monique, para que o sonho aconteça! Mas não, isso não é agora o mais importante. O seu pensamento está distante, tão distante, a muitas serras, estradas, rios, mares e marés, céus e estrelas, satélites e planetas de distância, entre Paris e … o além, julga ela.
Para Madalena, António Rosa é já nada, pó, corpo inerte, sepultado com certeza segundo todos os rituais religiosos, chorado por mulher e filhos, recordado com saudade por amigos de infância e por ex-companheiros de faculdade e colegas de trabalho. Ela matou o homem que ama… que sempre amou! Levou-o para uma viagem de que ela sabia não ter retorno. Lutou contra si própria até ao momento em colocou o veneno fatal na bebida de António Rosa. Nessa ocasião, o que ela mais desejava era abraçá-lo com a toda força do seu ser, beijá-lo vezes sem conta até sufocar e partilhar com ele a noite dos amantes, de todos os amantes! Voar pelos céus e dançar ao som dos sinos celestiais tocados por querubins do amor e do sexo. Mergulhar na cama da luxúria e no prazer e entregar-se incondicionalmente, sem reservas, preconceitos ou tabus. Dar-se, enfim… finalmente!

Em Troino, os remorsos dos males cometidos, e os medos das suas consequências, arrasam os nervos de uma jovem estudante trabalhadora que enfrenta o doloroso arrependimento das horas extraordinárias gastas ao serviço do crime, e que agora serão provavelmente pagas, crê ela, em muitos dias e noites de cadeia. Em Lisboa, na parte oriental da cidade, o desespero e o despeito de uma “esposa traída” que não sabe tolerar ameaçam incendiar uma relação em fim de vida, talvez mais por culpa própria do que por causa alheia. Em Paris, a saudade fala mais alto do que a ambição de uma mulher que se perdeu de amores por um homem…”morto”, de morte falhada. Na alfacinha Praça das Flores, o gozo e a satisfação de dever cumprido dão um estranho brilho ao olhar da brasileira Vanessa, que faz inusitadas arrumações nocturnas na confeitaria Pão de Canela. Tudo isto à mesma hora em que Abílio Mata Moscas, deitado na sua cama de corpo-e-meio de solteiro incorrigível, dá voltas e mais voltas por entre os lençóis, atormentado por uma terrível insónia provocada por um pesadelo inquietante: o corpo do inspector António Jorge deu à costa na margem do sul do Tejo, com uma bala enfiada na cabeça!!!

a) Ma(r)ta Hari

 
quinta-feira, outubro 21, 2004
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

Ma(r)ta Hari não tem concorrência no “Pão de Canela”. Expirado o prazo para o envio textos relativos ao décimo capítulo do nosso romance de escrita colectiva (?...), a caixa de correio do "detective" Smaluco registou apenas a recepção de uma proposta subscrita por aquela jovem “escritora”.

Compete-nos agora (a todos nós, sem excepção) o exercício do direito de voto, através de “mail” enviado para o endereço ssantos@tnsj.pt, até ao próximo dia 27 de Outubro (o voto não é obrigatório, mas desaconselha-se a abstenção – quem quiser pode votar em branco…). Para tal, basta escrever:

“Voto na Proposta nº. 1 – original de Ma(r)ta Hari”

(Informamos, entretanto, que os primeiros nove capítulos do romance “Pão de Canela” podem também ser consultados em http://www.danielfalcao.net, onde estão disponíveis em PDF)


PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL
Pão de Canela (título provisório)
Décimo Capítulo
Proposta nº. 1 – original de Ma(r)ta Hari

A noite está calma que nem criança dormindo no aconchego do leito materno; quente que nem peito de mulher abraçada ao amante há muito desejado em sonhos ardentes e arrebatadores; … e Sónia treme que nem seara verde em madrugadas de ventos ciclónicos!... Correntes de suores frios, quase gelados, rebentam por todos os poros do seu jovem e delicado corpo de mulher ainda menina. A testa lateja, as pernas fraquejam. O seu estado geral, físico e psíquico, é quase catatónico. Ela não consegue esquecer a vergonha da experiência vivida naquela manhã num escarafunchoso e húmido gabinete de um sombrio e triste inspector da Polícia Judiciária, que dá pelo nome de António Jorge, mas cuja “graça” parece estranhar quando assim é chamado, dando sinais de inquietação quase infantil, através do seu bigode farfalhudo mimado por constantes carícias, que parece eriçar enquanto o seu rosto ruboriza, como criança apanhada numa qualquer mentira inconsequente.
A noite anterior fora passada em claro e o sono acabou por não ser bom conselheiro. Sónia trocou os pés pelas mãos, gaguejou entre afirmações pouco consistentes e explicações esfarrapadas para justificar o injustificável. No meio do interrogatório ficou a saber que afinal o suposto número de telemóvel que ela havia descoberto casualmente numa das agendas de Madalena não era de nenhum “celular da brasileira Vanessa”, como a prima sustentou quando questionada sobre aquele estranho número que começa por 97. Madalena convenceu-a de que se tratava de um número de uma operadora móvel brasileira coberta por um qualquer satélite instalado algures na Europa. A explicação terá sido na altura convincente mas o que é certo é que ela nunca mais esqueceu o número. Podia ter experimentado ligar para aquele “97” só por curiosidade, mas na verdade nunca o fez. Se o tivesse feito, teria logo percebido que se tratava de um logro.
Agora Sónia sabe que há algo mais para além daquilo que ela julgava saber sobre as razões de tantos crimes cometidos em nome de uma suposta seita ou religião secreta que promete a vida eterna, orientada por uma velha mãe de santo que reclama sangue humano em troca de favores terrestres e de vida luminosa e farta noutra esfera, dimensão ou plano astral. Na Judiciária fala-se em armas nucleares, em algo muito, muito sério... de terrorismo até! Sónia já não sabe o que sabe, nem quer saber mais do que sabe. E sobre querer, apenas sabe que não quer nada, absolutamente nada… a não ser, talvez, um buraco por onde tome sumiço, por onde desapareça no nada. O que se passa não se resume a um simples pesadelo de onde possa sair incólume com um despertar salvador. O que ela viu, ouviu e sente, está mesmo a acontecer-lhe, não é ficção ou sonho!

Noutro canto da vida, no extremo da grande Lisboa, num modesto mas recente e bem equipado apartamento de quatro assoalhadas, algures entre os “dormitórios” citadinos Olivais e Bela Vista, António Rosa está triste, pesaroso, desalentado. Acabou de deitar a prole nas suas camas e tem Otília à espera, sentada num sofá em frente à televisão, na sala de estar. Apetece-lhe estar só consigo mesmo, mas não vai ser possível porque ela já fez questão de lhe fazer saber que não deixará. Segundo ela, há muito, muitíssimo, para conversar!
Durante o todo o jantar ele disse apenas meia dúzia de frases: “vai lavar as mãos, Rui; “traz o pão para a mesa, Rita”; “segura como deve ser na faca, Rui”; “deixa o teu irmão sossegado, Rita”; “deixem-se de brincadeiras, moços”; “passa-me a fruta, Otília”. E agora ali está ela, a mulher que lhe deu filhos e pouco mais, à espera que ele lhe conte tudo, “tim-tim por tim-tim”, desde que saiu de Lisboa, após a Páscoa, até ao seu regresso a casa.
Mas o que lhe há-de ele contar? Que o seu coração não resistiu aos encantos de Madalena? Que o seu amor está todo ele naquela estranha mulher que o abandonou quase desfalecido, entregue à sorte, numa cama de hotel em Espanha, após uma sexualmente prometedora noite de copos e animação numa discoteca manhosa? Que Madalena o enfeitiçou de tal maneira que já nada será como dantes, em casa, com Otília e com os seus próprios filhos? Que a modista, estilista, da Praça das Flores não é apenas a “mulher dos trapos”, como a designa Otília com desdém, só para rebaixar a rival com quem ele terá cometido, na sua opinião de fêmea ofendida, um “pequeno” devaneio?
Não! Na verdade, Madalena não é “só” a mulher que ele ama! Madalena é a mulher que ele sempre amou em todas as mulheres que teve!!! A mulher que ele desejou em todas as noites de insónias vividas nas muitas camas que fez e desfez na vida, a amiga que ele buscou em todas as horas de desespero e de inquietação entre sonhos feitos e desfeitos em castelos de areia, a companheira que ele procurou em todas as lutas que travou com a sorte e com o destino que lhe quiseram impor em cada dia da sua vida. Ela é a sua irmã, a sua mãe, a sua amante, a sua alma… gémeas de si, feitas do mesmo sangue, da mesma carne, do mesmo sal!!! Mas isto Otília não vai querer ouvir!...

Em Paris, Madalena devia estar alegre, bem disposta, sorridente… mas não está. Tem à sua frente, a alguns dias, semanas ou meses de distância, o futuro que sempre ambicionou. Para tal, basta apenas que deixe correr lesto o tempo por entre desenhos e paletas de cores determinadas pelo seu talento, amparada pelos amigos parisienses Antoine e Monique, para que o sonho aconteça! Mas não, isso não é agora o mais importante. O seu pensamento está distante, tão distante, a muitas serras, estradas, rios, mares e marés, céus e estrelas, satélites e planetas de distância, entre Paris e … o além, julga ela.
Para Madalena, António Rosa é já nada, pó, corpo inerte, sepultado com certeza segundo todos os rituais religiosos, chorado por mulher e filhos, recordado com saudade por amigos de infância e por ex-companheiros de faculdade e colegas de trabalho. Ela matou o homem que ama… que sempre amou! Levou-o para uma viagem de que ela sabia não ter retorno. Lutou contra si própria até ao momento em colocou o veneno fatal na bebida de António Rosa. Nessa ocasião, o que ela mais desejava era abraçá-lo com a toda força do seu ser, beijá-lo vezes sem conta até sufocar e partilhar com ele a noite dos amantes, de todos os amantes! Voar pelos céus e dançar ao som dos sinos celestiais tocados por querubins do amor e do sexo. Mergulhar na cama da luxúria e no prazer e entregar-se incondicionalmente, sem reservas, preconceitos ou tabus. Dar-se, enfim… finalmente!

Em Troino, os remorsos dos males cometidos, e os medos das suas consequências, arrasam os nervos de uma jovem estudante trabalhadora que enfrenta o doloroso arrependimento das horas extraordinárias gastas ao serviço do crime, e que agora serão provavelmente pagas, crê ela, em muitos dias e noites de cadeia.
Em Lisboa, na parte oriental da cidade, o desespero e o despeito de uma “esposa traída” que não sabe tolerar ameaçam incendiar uma relação em fim de vida, talvez mais por culpa própria do que por causa alheia.
Em Paris, a saudade fala mais alto do que a ambição de uma mulher que se perdeu de amores por um homem…”morto”, de morte falhada.
Na alfacinha Praça das Flores, o gozo e a satisfação de dever cumprido dão um estranho brilho ao olhar da brasileira Vanessa, que faz inusitadas arrumações nocturnas na confeitaria Pão de Canela.
Tudo isto à mesma hora em que Abílio Mata Moscas, deitado na sua cama de corpo-e-meio de solteiro incorrigível, dá voltas e mais voltas por entre os lençóis, atormentado por uma terrível insónia provocada por um pesadelo inquietante: o corpo do inspector António Jorge deu à costa na margem do sul do Tejo, com uma bala enfiada na cabeça!!!

 
quarta-feira, outubro 13, 2004
  PASSATEMPO DE ESCRITA POLICIAL

No dia 20 de Outubro termina o prazo de envio das propostas de textos para o décimo capítulo do romance "Pão de Canela". Restam-lhe, pois, apenas sete dias (mais coisa, menos coisa) para confirmar os seus dotes de manipulador de palavras e de fabricante de emoções.
O "detective" Smaluco espera por si, no endereço ssantos@tnsj.pt.


 
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