PÚBLICO-POLICIÁRIO
CAMPEONATO NACIONAL
Temporada 2006-2007
Prova nº 2
“Smaluco no Casino”, de Inspector Boavida
Treze. Treze anos de prisão efectiva foi a pena “decretada” pelo Tribunal. Natália Vaz ouviu a sentença e quedou-se muda a olhar no vazio. Treze, o seu número da sorte, o seu talismã, caiu brutalmente nos seus ouvidos e ecoou fundo na memória do seu passado. Treze – ouviu –, e baixou os olhos, triste, melancólica, talvez até envergonhada e decerto arrependida do crime cometido. Treze! – repetiu entre dentes –, e depois sorriu, meiga e docemente, para o detective Smaluco, sentado no meio da assistência, que a conheceu exactamente numa alegre e festiva madrugada de um dia 13!... no pós-25 de Abril, em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso).
Naquele remoto dia, Smaluco encontrou-a em Alfama, nos festejos de Santo António, no meio de um grupo de jovens actores que comemorava o padroeiro de Lisboa, o aniversário de Natália e o retumbante sucesso da estreia de mais um espectáculo que havia subido à cena naquela noite num velho teatro da capital. Ele ficou “vidrado” nela assim que a viu. Já a tinha visto em cena numa peça de Gil Vicente e achou-lhe pouca graça como mulher, mas ao vê-la ali, ao vivo, tudo era diferente… Como ela era bonita, santo Deus!
A jovem actriz tinha um encanto especial no olhar, no sorriso. Havia abandonado as pinturas, não tinha o mais leve toque de maquilhagem, nem vestígios de bâton ou mesmo de rímel… Ela estava ali ao natural, linda, sensual. Smaluco perdeu a timidez, fez-lhe um rasgado elogio sobre as suas excelentes qualidades de actriz e reclamou um autógrafo. Ou melhor, uma foto autografada. Conversa puxa conversa, uma sardinha para cada um em dois nacos de pão, uma salada mista a meias, uma garrafa de cerveja de boca em boca e a química aconteceu…
Duas horas depois de se terem conhecido, Smaluco e Natália prolongavam a festa de aniversário da actriz, os dois a sós, em plena Sala de Jogos Tradicionais do Casino Estoril. A roleta foi o jogo escolhido. Ele não acertava com os números da sorte e ela divertia-se por entre dezenas de jogadores, de dois copos (o dele e o dela) na mão, bebendo um gole por cada aposta falhada, alternando de copos, enquanto a boca dele secava de tanto azar. O 13 era invariavelmente o número em que Smaluco colocava as suas fichas e o resultado continuava inalterável: perdia! Natália ria, cada vez mais alto, naturalmente por causa das borbulhas do espumante rasca que se vendia no bar e por via do nervoso miudinho que se apoderara dos seus sentidos.
Faltava apenas uma hora para o encerramento do Casino. A banca da roleta número 13 anunciou que ia reabrir para as últimas jogadas da noite. Quase todos os jogadores que se encontravam nas roletas mais próximas correram em debandada para lá. Azarados e sortudos, jogadores de ocasião ou viciados, gente de grandes fortunas ou pobres de espírito buscando na sorte do jogo a saída do seu infortúnio, todos correram para a banca. “Nada mais” – ouviu-se. Fez-se um silêncio quase sepulcral. “Treze.” Saiu finalmente o número 13. E foi a festa! Natália deu gritos, saltos, urros, e distribuiu beijos e abraços por toda a gente.
O detective estava incrédulo. Esfregava os olhos. Nem queria acreditar no que estava a acontecer. Pediu até a Natália que o beliscasse. Mas…, e por esta é que ele não contava, estava apenas uma ficha no 13 e, azar dos azares, foram três os jogadores que reclamaram o prémio: Smaluco, um homem de óculos fumados e um sujeito de laço. Como os três tinham vindo de bancas diferentes, por casualidade todos eles tinham fichas da mesma cor: bordeaux. Gerou-se alguma confusão e foram os três chamados ao gabinete do fiscal de sala para esclarecimento e resolução do problema.
Smaluco estava absolutamente convencido de que apostara no 13, número em que tinha vindo a colocar as suas míseras fichas de 20 escudos nas várias jogadas feitas nas outras roletas, em homenagem à sua companheira de jogo, que fazia anos naquele dia 13 de Junho de 1975. Tinha decidido trocar uma ficha de mil escudos por duas de 500, decidido a apostar cada uma delas em duas derradeiras jogadas, antes de partir com a “sua” Natália à descoberta de mais uma madrugada sem rumo certo, mas que prometia tornar-se inesquecível para ambos. Porém, como estava mais ou menos bem bebido, pode eventualmente ter acontecido qualquer lapso e ter apostado noutro número, mas não o confessa.
O homem dos óculos fumados dizia não ter a mínima dúvida de que apostara em pleno no número 13, assim como o fizera em todos os outros números de cor vermelha. Isto porque são 18 os números com aquela cor e eram também 18 as fichas que tinha na mão quando resolveu fazer a sua última jogada da noite. Já tinha perdido perto de cem mil escudos e havia decidido abandonar a sala de jogos antes que a sorte madrasta que o acompanhara durante toda a noite desse cabo do pecúlio que tinha amealhado nos dias anteriores na Bolsa de Valores de Lisboa, em cinco jogadas de mestre que lhe valeram boa maquia.
O sujeito do laço também não abdicava do prémio. Um pleno no 13, que lhe dava direito a 36 vezes 500 escudos, o que perfaz a bela quantia de 18 mil escudos (o que para a época era bastante dinheiro). E ele estava absolutamente certo de que apostara no número 13 porque, segundo disse, registara-se uma situação bastante curiosa e feliz na ocasião da aposta: ele tinha posto duas fichas no número 12, mas um outro jogador tocou inadvertidamente com a manga do casaco numa das fichas, ao de leve, e esta foi parar no número que fica mesmo ao lado. Como uma das fichas continuou no seu número preferido, achou que devia deixar lá ficar a outra, no 13, não fosse a sorte estar a bater-lhe à porta e ele não a franquear!
O fiscal de sala sorriu, enigmático mas profundamente incomodado com a situação, olhou directamente para dois dos jogadores e perguntou-lhes calmamente se queriam sair pelos seus próprios pés, sem sofrerem qualquer consequência pelo sucedido, a não ser a proibição de voltarem a entrar no Casino, ou se preferiam que ele chamasse o representante da Inspecção-Geral de Jogos e, claro, a polícia. É óbvio que os dois jogadores em questão abandonaram imediatamente o Casino, de mansinho e sem qualquer reclamação. Mas quais foram eles e como foi que o fiscal descobriu que estavam a mentir?
Solução de Inspector BoavidaTipo de Ocorrência: extorsão dissimulada, de forma tentada por dois indivíduos sem escrúpulos, sem carácter… sem nome!
Vítima (potencial): um dos suspeitos do delito (o popular e destemido detective Smaluco, como se veio a provar após brevíssimo interrogatório feito no local da ocorrência).
Data e Hora da Ocorrência: 13 de Junho de 1975, dia de Santo António de Lisboa, ou de Pádua como defendem os italianos (o autor começa por situar a sua narrativa em dia, mês e ano incertos, remetendo-nos depois para um delito “vivido” numa data precisa, em pleno período revolucionário).
Local da Ocorrência: Sala de Jogos Tradicionais do Casino Estoril, lugar onde os detentores de grandes fortunas do “antigamente” passeavam o luxo e a elegância, de braço dado com as amásias ou com as suas “legítimas”, enquanto os lacaios do regime anterior à Revolução dos Cravos e outros vendilhões da (nossa) Liberdade lhes faziam salamaleques e arriscavam os “trinta dinheiros” na roleta, no black jack, no bacará, na banca francesa ou nas slot machines…
Suspeitos do Delito: Smaluco, detective em início de carreira; um Sujeito de Laço, pobre de espírito que crê numa espécie de novo-riquismo conquistado à mesa de jogo, embora não tenha qualquer experiência no “ramo”; e um Homem de Óculos Fumados, vulgar vigarista daltónico “sem cotação no mercado”, mas com a mania das grandezas bolsistas.
Autores do Delito: Sujeito de Laço e Homem de Óculos Fumados, que escaparam às “malhas” da justiça graças à benevolência do fiscal de sala do Casino Estoril em serviço aquando da ocorrência.
Era Uma Vez…Uma Noite de Jogo e de SeduçãoO detective Smaluco ouviu, completamente em desespero, a leitura da sentença do julgamento que condenou a “mulher da sua vida” a treze anos de cadeia efectiva e reviveu em pensamento, nesse mesmo instante, em pleno Tribunal, o dia em que se apaixonou por ela. Foi no já longínquo ano de 1975, no velho bairro alfacinha de Alfama, numa madrugada que anunciava um “Verão Quente”, que ele a viu de perto pela primeira vez. Conhecia-a dos palcos, encarnando as mais diversas personagens em inúmeras peças de teatro, mas nunca a tinha visto como Natália, a mulher, a pessoa…
Junho ia quase a meio. Nascia o dia consagrado ao Santo que foi baptizado com o nome de Fernando Bulhão e que destronou no coração do povo o verdadeiro padroeiro de Lisboa, São Vicente. A velha cidade das sete colinas encheu-se de bailaricos, sardinhas, manjericos, fogueiras, alcachofras e muita animação. Em Alfama celebrava-se Santo António… e mais um aniversário da jovem actriz Natália Vaz! O ho0je celebérrimo detective Smaluco viu-a no meio de um magote de gente, alguns colegas de profissão e populares que a conheciam apenas da televisão a “preto-e-branco”.
O detective não se amedrontou. Aproveitou uma “aberta” nas manifestações de afecto dos admiradores que a rodearam efusivamente logo que a avistaram e decidiu pedir-lhe um autógrafo, ou melhor ainda, uma fotografia autografada… com dedicatória e tudo! O seu perfume inebriou-o. Os cabelos de Natália cheiravam a alfazema, a sua pele irradiava jasmim, os seus olhos brotavam raios de luz mais intensos do que o luar que inundava becos e vielas, a sua boca expelia um leve odor quente a mentol… e Smaluco quedou-se como que enfeitiçado perante tanta beleza.
A jovem actriz tinha estreado naquela noite um novo espectáculo num velho teatro (Laura Alves) de Lisboa, que havia sido em tempos sede da Federação Espírita Portuguesa, mais tarde cinema (Rex) de filmes de “reprise”, e agora “jaz” ali na rua da Palma “amortalhado” em loja de atoalhados, artigos domésticos de plástico e várias bugigangas “made in Índia”. A peça tinha sido recebida entusiasticamente, com grandes aplausos e muitos “bravos”. Natália Vaz estava radiante e feliz. Era tanto o brilho da sua felicidade que Smaluco “cegou” de paixão.
Empalidecido pela timidez que lhe tolhia a vontade irreprimível de dar liberdade ao coração, que se esvaía de prazer, atingido certeira e “fatalmente” pela seta do Cupido, Smaluco sentiu, de repente, as faces ruborizarem e um ligeiro suor frio correr a galope pela espinha. O detective tomou o “freio nos dentes” e cavalgou nos seus intentos com tal empenho, que nada o faria parar. Acercou-se cada vez mais de Natália, primeiro a medo, depois mais solto e confiante, até lhe conquistar os favores. Algum tempo depois seguiam, sós, num velho mini vermelho em direcção ao Casino Estoril.
Smaluco e Natália quiseram experimentar a sorte no jogo, talvez para contrariar o provérbio popular que diz “sorte no amor, azar ao jogo”. A roleta foi o jogo escolhido e ao princípio a voz do povo falou mais alto: os dois apaixonados não acertavam nos números sorteados! Mas, eis que, de súbito, tudo mudou. A esfera que percorria a roleta aos saltos por entre os trinta e sete números, de zero a trinta e seis, anichou-se no treze, o número talismã da jovem actriz… e a aposta continuada de Smaluco ao longo da noite. Mas durou muito pouco a festa!...
Para além do detective, que estava convencido de que apostara no treze, embora admitisse poder ter acontecido qualquer lapso e ter apostado noutro número, apareceram mais dois apostadores que juravam ter direito ao prémio: um homem de óculos fumados, que dizia não ter dúvidas de que apostara no treze, assim como o fizera em todos os outros números de cor vermelha; e um sujeito de laço, que dizia estar certo de que apostara no treze porque tinha posto duas fichas no doze, mas um jogador tocou numa das fichas, ao de leve, e esta foi parar no número treze que fica mesmo ao lado.
Para reforçar a certeza de que apostara no treze e que o prémio lhe era devido, o homem dos óculos fumados afirmou que já tinha perdido perto de cem mil escudos e havia decidido abandonar a sala de jogos antes que a sorte madrasta que o acompanhara durante toda a noite desse cabo do pecúlio que tinha amealhado nos dias anteriores na Bolsa de Valores de Lisboa, em cinco jogadas de mestre que lhe valeram boa maquia. Perante este imbróglio, e como só havia uma ficha no número treze, foi chamado o fiscal de sala para dirimir o conflito.
Antes da Revolução dos Cravos, a Sala de Jogos Tradicionais do Casino Estoril era apenas frequentada por uma elite constituída por gente do grande capital e da alta burguesia, a que se juntavam políticos do antigo regime, pequenos industriais e comerciantes bem sucedidos, artistas e profissionais liberais que gozavam de alguma notoriedade pública. Até então vivíamos num país governado pelo poder da força e da opressão, onde reinava a injustiça e imperava a fome, a miséria, ignorância, e que se fechava por dentro de si… orgulhosamente só!
Entre as muitas portas que Abril abriu, graças à coragem e abnegação de homens com a estirpe e a grandeza de Salgueiro Maia, também aquela Sala se franqueou a outras gentes, alterando-se radicalmente o perfil dos seus frequentadores e assistindo-se a uma espécie de democratização do Casino. Só isso poderá explicar as ingénuas e falaciosas argumentações esgrimidas por dois dos jogadores para reclamarem como seu o prémio ditado por uma jogada de reabertura aos apostadores de uma roleta que ostentava como identificação o número sorteado: o treze!
De facto, se o “sujeito do laço” fosse experiente naquelas andanças não teria dito que tinha deixado uma ficha no 13, só porque um outro jogador tocou com a manga do casaco numa das suas fichas, “ao de leve”, e esta foi parar ao número que fica mesmo ao lado do seu, o 12. Porque, neste caso, estamos perante uma impossibilidade física: na banca das apostas, o número 13 fica exactamente do lado oposto ao 12. Uma mentira que não poderia nunca escapar a um fiscal de sala de Casino, profissional com naturais e profundos conhecimentos sobre toda a “máquina” do jogo.
Por sua vez, o “homem dos óculos fumados”, se não fosse também ele virgem no jogo da Roleta, não teria justificado ter a certeza absoluta de que havia apostado no 13 com o facto de ter colocado uma ficha em todos os números de cor vermelha, como aquele. Por uma única e muito simples razão: o 13 faz parte do conjunto de números que tem cor preta! Sublinhe-se entretanto que, se fosse seu intento apostar em todos os números de uma só cor, seria escusado colocar uma ficha em cada número. Para o efeito, bastaria deixar as suas fichas na opção cor: preto ou vermelho!
Acresce ainda que este último jogador acabaria por usar uma outra mentira também relacionada com “apostas impossíveis”, ao dizer que tinha amealhado um bom pecúlio nos dias anteriores, na Bolsa de Valores de Lisboa, em cinco jogadas de mestre. Também por uma única razão: por determinação da Junta de Salvação Nacional, as Bolsas de Valores não funcionavam desde o dia 29 de Abril de 1974, tendo a Bolsa de Lisboa reaberto apenas a 12 de Janeiro de 1976 condicionada à transacção de obrigações…
Resumindo: pelas razões acima aduzidas, o “homem dos óculos fumados” e o “sujeito do laço” foram desmacarados pelo fiscal de sala do Casino e trataram de dar “às de Vila Diogo”, antes que a coisa ficasse ainda mais feia para o lado deles, enquanto que o “detective” Smaluco arrecadou a “massa” que legitimamente havia ganho (36 vezes quinhentos escudos, ou seja, a ficha que apostou mais trinta e cinco de igual valor, o que perfaz a quantia de dezoito mil escudos, e partiu com a sua Natália pela madrugada dentro à descoberta do amor...
Inspector Boavida
PÚBLICO-POLICIÁRIO
CAMPEONATO NACIONAL
Temporada 2006-2007
Prova nº 1
“Aconteceu há 50 Anos”, de Rip Kirby
Havia anos que não encontrava o meu amigo Eduardo Trindade na nossa cidade situada à beira da Ria Formosa. Os nossos encontros, ultimamente, aconteciam em Lisboa, mas no dia 10 de Junho de 2005 encontrei-me com ele lá na nossa cidade.
Sentados à mesa de um café conversámos e recordámos algumas passagens da nossa adolescência e juventude. Foi a associação destas recordações com a data atrás referida que me fizeram recordar os factos a seguir relatados.
Havia precisamente 50 anos, tal como neste dia, eu e o Eduardo estávamos num café. Nessa altura, a nossa conversa não versava sobre recordações, ainda era cedo para isso, mas sim factos do nosso dia a dia.
A certa altura, juntou-se a nós o Silveira que nos deu a notícia que corria pela cidade. O Carlos Gustavo havia sido encontrado morto na sua casa havia poucos minutos, dizia-se que tinha sido assassinado.
Carlos Gustavo era um abastado ex-imigrante muito conhecido na cidade. Vivera muitos anos nos Estados Unidos, tendo regressado a Portugal quando se aposentara. Diziam as más-línguas, não sei se com razão, que a sua abastança provinha de negócios ilícitos levados a cabo naquele país. Havia até quem afirmasse que ele havia sido um dos lugares-tenentes de Al Capone.
Na ocasião, o facto interessou-nos tanto quanto poderia interessar a jovens como nós. Lembro-me, contudo, que foram indiciados três suspeitos entre os quais um sobrinho da vítima, que, apesar de jurar a sua inocência, viria a ser condenado a 20 anos de prisão. Acabou por não cumprir a pena toda, pois decorria o nono ano da pena quando se suicidou. Lembro-me também que a sua condenação gerou alguma controvérsia na cidade onde as opiniões acerca do caso divergiam.
Houve outros suspeitos.
Um deles foi o Zé Americano. Alguns anos mais novo que Carlos, estivera também nos Estados Unidos e a sua fama não era melhor que a de Gustavo, mas a sua prosperidade não fora nenhuma. Dizia-se que o Zé havia pertencido a um gang rival daquele a que pertencera Gustavo e que uma noite, durante uma operação de transporte de bebidas alcoólicas, a policia surpreendeu o bando daquele. O Zé havia conseguido escapar, acusou o Gustavo de os ter denunciado e jurara que o havia de matar. Quando regressaram a Portugal, o seu relacionamento era de certo modo pitoresco. Davam-se bem, estavam quase sempre juntos falando dos velhos tempos, mas quando o Zé bebia lá vinham as ameaças de morte. Estas ameaças constantes e o facto de terem sido encontradas as suas impressões digitais na coronha da arma, ainda que não muito recentes e meio encobertas, foram os fundamentos para ser considerado suspeito.
O outro suspeito foi Ricardo Gonçalves, agente da PSP e grande amigo do sobrinho de Gustavo.
Falei deste episódio a Eduardo. A princípio ele teve alguma dificuldade em se recordar, mas acabou por se lembrar, discutimos sobre o mesmo e tal como então não estávamos de acordo. Eu achava que havia algo de errado em todo aquele drama, enquanto Eduardo afirmava que nada de estranho acontecera.
Perante a minha insistência, ele prometeu que iria aos arquivos tentar ver o processo. Passados alguns dias, apareceu-me com um volumoso maço de fotocópias, que o chefe do arquivo, seu amigo, autorizou que ele retirasse dos documentos originais. Durante algumas horas, vasculhámos aquela papelada e seleccionámos algumas passagens que achámos importantes.
No seu depoimento, alguns dias depois do crime, o sobrinho da vítima havia dito que, como não trabalhara naquele dia, 9 de Junho, tinha ido para a praia onde estivera até perto das 15h00. Para isso pedira emprestado um pequeno barco. A confirmação pelo dono do barco de que de facto o tinha emprestado não teve valor, pois era irmão do suspeito. Também não foi possível encontrar quem tivesse visto o jovem na praia. Apesar de estar um tempo excelente, poucas pessoas foram para a praia naquele dia. Após ter voltado, esteve com uns amigos com quem foi ao cinema, o que foi confirmado pelos invocados. À noite, dormiu em casa de uma namorada. Não foi possível arrancar-lhe o nome dessa namorada nem nenhuma mulher se apresentou como tal, apesar dos múltiplos apelos que, nesse sentido, foram feitos. Lembro-me que depois começara a circular o boato de que a namorada em questão seria uma mulher casada.
O Zé Americano, quando interrogado, afirmou que no dia 9 logo pela manhã tinha ido para Faro, para o velório de um familiar próximo, falecido no Hospital da Misericórdia. Voltara no dia 10 bastante perto das 17h00. Invocou 20 testemunhas que poderiam atestar as suas afirmações.
Para o facto de existirem as suas impressões na arma, que lhe foi mostrada, explicou:
“Ora, a arma é do Gustavo e eu quando ia lá a casa gostava de brincar com ela. Saudades de velhos tempos.”
Ricardo Gonçalves, devido à sua amizade com o sobrinho do velho gangster, era frequentador assíduo da residência de Gustavo. Segundo afirmou, o dia 9 fora o seu dia de folga, estivera de serviço durante a noite, mas devido ao aperto desse dia tivera que prestar serviço das 15h00 até às 18h00. Porém, antes de iniciar o serviço, um pouco depois das 14h00, foi a casa de Gustavo; este pedira-lhe para ir lá, pois tinha um assunto importante para tratar com ele. Na realidade, o que o velho queria era que ele o ajudasse a preencher um impresso – tinha dificuldades com o português –, para depositar 100 contos no banco ainda nesse dia.
Prestou o auxílio que o velho lhe pediu e saíram os dois a caminho do banco, tendo-se separado à porta do estabelecimento bancário.
O velho Gustavo entrou e ele dirigiu-se para a esquadra. Ficou de voltar lá a casa depois de sair do serviço, Gustavo convidara-o para ir comer um arroz de conquilhas, mas não o voltou a ver. Quando lá foi cerca das 19h00 bateu à porta mas não foi atendido.
Na esquadra foi confirmado que ele havia ali chegado minutos antes das 15 horas. A polícia passou uma busca na morada de Gustavo, tentando encontrar alguma pista que ajudasse a deslindar o caso. A arma usada encontrava-se sobre uma mesa a alguns metros do cadáver e não muito longe deste a cápsula da bala disparada.
A casa, excluindo o sangue derramado, encontrava-se impecavelmente limpa. Na cozinha, os cromados do fogão a lenha brilhavam tal como brilhavam as panelas de cobre alinhadas numa estante. Num armário, pratos, copos e talheres encontravam-se devidamente arrumados. A um canto da cozinha, junto ao fogão, no balde destinado ao lixo, haviam restos de uma refeição. Num compartimento que Gustavo utilizava como escritório foi encontrado preenchido o impresso atrás referido, mas sem qualquer sinal de que o depósito tivesse sido processado. A assinatura, embora mais firme do que de costume, parecia ser a do velho. Dos 100 contos nem sinal.
Um comerciante de Santa Catarina da Fonte do Bispo confirmou que tinha comprado uma propriedade a Carlos Gustavo e que lhe havia pago 100 contos em dinheiro dois dias antes da sua morte. O velho não gostava de cheques.
O médico que examinou o corpo logo que fora encontrado no dia 10, cerca das 8h00, afirmou que a morte não fora instantânea, teria ocorrido cerca das 17h00 do dia anterior e fora causada por uma bala que lhe perfurou um pulmão, provocando grande hemorragia. Afirmou ainda que, apesar de grande, a hemorragia não fora intensa. O que moderara a intensidade da perda de sangue fora uma carteira que o velho tinha no bolso do casaco e que ficou entalada entre o ferimento e o chão, tendo de alguma forma servido de tampão e demorado o derrame de sangue. Perguntaram ainda ao médico porque razão não teria o velho pedido auxílio, ao que ele respondeu que a vítima havia perdido os sentidos. Quando os recuperou, se é que os recuperou, já estava demasiado combalido. Desde que fora atingido até que a morte ocorreu teriam passado entre 2 a 3 horas.
Entre os objectos de uso pessoal do sobrinho de Gustavo foram encontradas cinco notas de mil escudos. O rapaz mostrou-se muito surpreendido. Negou que aquele dinheiro fosse seu e não foi capaz de explicar a sua proveniência ou como teria ido parar nos seus pertences. Afirmou sempre não ter nada que ver com a morte do tio.
Durante o julgamento o jovem foi defendido por um jovem advogado nomeado pelo tribunal que pouco se interessou pelo seu constituinte. Brilhante mesmo foi o delegado do Ministério Público, que nas suas alegações finais pintou o jovem como um monstro capaz de matar um tio que o estimava e com quem vivia.
A investigação estivera a cargo de um velho e obscuro agente, em cuja folha de serviço nunca havia sido averbado qualquer facto relevante para a sua carreira.
No final da leitura daqueles documentos, o inspector virou-se para mim e disse-me: “Tens razão, Rip, houve aqui muita incompetência.”
Será que na realidade houve incompetência?
Explique pormenorizadamente.
Solução de Inspector BoavidaTipo de Ocorrência: Crime de Homicídio, com arma de fogo.
Vítima: Carlos Gustavo, ex-emigrante nos EUA, que se julga ter sido homem de confiança do lendário Al Capone.
Data e Hora da Ocorrência: 9 de Junho de 1955, Dia de Corpo de Deus, Feriado Nacional; 14h00/14h45 (o autor situa a sua narrativa no dia 10 de Junho de 2005 e remete-nos para um acontecimento registado exactamente cinquenta anos antes, na véspera do Dia de Camões – na época, “da Raça”…; o médico legista atesta que a vítima faleceu às 17h00 e que terá sido alvejada duas a três horas antes – resolvemos tirar 15 minutos à previsão do técnico forense porque o autor do crime, como se verá mais abaixo, entrou na esquadra de polícia onde presta serviço às 15h00…).
Local da Ocorrência: Residência da vítima, na Cidade de Tavira (a acção decorre à beira da Ria Formosa, nessa altura Olhão ainda era Vila e um dos suspeitos apresenta como álibi o facto de estar ausente da Cidade onde ocorreu o crime, num velório realizado em Faro; nenhuma outra Cidade é “banhada” pela Ria – o concelho de Loulé sim, mas a sua “cidade sede” não!).
Suspeitos do Crime: “Zé Americano”, também ele ex-emigrante nos EUA, que se consta ter “trabalhado” para um “gang” rival daquele onde a vítima prestava “serviço” na mesma época; “Fulano Gustavo”, sobrinho da vítima; e Ricardo Gonçalves, amigo deste último, agente da PSP e amante de... conquilhas!...
Suspeito Acusado, Julgado e Condenado em Tribunal: “F. Gustavo”, sobrinho da vítima, condenado a 20 anos de prisão efectiva por crime de homicídio, que viria a suicidar-se nove anos depois, na cadeia.
Verdadeiro Autor do Crime: Guarda Ricardo (Gonçalves, polícia de verdade, e não a homónima personagem criada pelo saudoso cartoonista Sam), que cinquenta anos depois de ter cometido um crime “branqueado” pela incompetência da justiça, está agora a “dois passos” de bater com os “costados” na cadeia, graças à argúcia do nosso confrade Rip Kirky, ao voluntarismo do seu amigo Eduardo Trindade e à preciosa ajuda de um arquivista policial não identificado.
Era Uma Vez…Um Crime Em Tavira
Ano de 2005, 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Eduardo Trindade e Rip Kirby voltaram a encontrar-se na Cidade vizinha da Vila (Olhão – agora também Cidade) que os viu nascer, onde já não se reuniam há um bom par de anos. Tavira continuava linda e formosa como a Ria que se estende a seus pés, na periferia, da cor de prata ao luar e de oiro resplandecente quando o Sol a beija.
O Verão não tardava a chegar e o calor já aquecia as gargantas. Duas imperiais fresquinhas, uma dose bem aviadas de conquilhas, dois dedos de conversa e mil e uma recordações de um tempo passado que perdura para sempre na memória dos dois inseparáveis amigos de infância. Por curiosidade, fazia nesse dia exactamente cinquenta anos que receberam à mesa de um outro café local a notícia da morte de Carlos Gustavo.
Rip Kirby tem os acontecimentos desse dia muito mais presentes do que Eduardo Trindade. Recorda-se de tudo como se fosse hoje. Lembra-se que o Silveira – um amigo comum – entrou esbaforido pelo café e gritou: “Eh, marafados, mataram o velho Gustavo com um tiro em cheio no peito! Aposto que foi o Zé Americano. Desta vez é que o gajo vai dentro. Ele passava a vida a ameaçar o velho de morte, por causa de umas coisas quaisquer que aconteceram lá pelos states”.
Ninguém estranhou, portanto, que o Zé Americano pudesse ser acusado da morte do Gustavo, mas toda a gente ficou surpreendida por as suspeitas terem recaído também sobre o Guarda Ricardo e sobre o sobrinho do morto. Pior ainda foi quando o Ministério Público acusou este último pela morte do tio e o Tribunal o condenou a 20 anos de cadeia. Levantou-se um burburinho dos demónios, com toda a gente a “dar palpites”, e, já nessa altura, o Rip Kirby achou que havia ali algo de errado.
Passados cinquenta anos, o Zé de Olhão (perdão, o Rip Kirby) continuava com a mesma intuição. Ele estava absolutamente convicto de que se tinha cometido um erro grosseiríssimo ao condenar-se o infeliz do sobrinho do velho Gustavo. E era tão forte a sua convicção que Eduardo Trindade, embora se confessasse um pouco contrariado, fez a vontade ao amigo e conseguiu que este tivesse acesso ao Processo do Crime, graças à ajuda de um colega dos Arquivos.
“Eureka! Eu tinha razão. Vês. O sobrinho do Gustavo estava inocente!” – gritou Rip Kirby depois de ler, e reler, as fotocópias do Processo, alguns dias depois. “O gajo teve foi um azar dos diabos. Primeiro, porque não apareceu ninguém que testemunhasse tê-lo visto na praia, onde ele alegou ter estado com um barco emprestado, na hora em que o crime foi cometido. E, depois, porque o testemunho de quem lhe cedeu o barco não podia ser valorizado, por ser seu irmão”.
Embalado, Rip Kirby acrescentou: “Convém recordar que pouca gente foi a banhos nesse dia, sobretudo pessoas ali residentes ou conhecidas do rapaz, talvez porque boa parte delas terá aproveitado para visitar familiares e amigos que viviam noutras paragens. Uma ponte daquelas não se pode perder – era quinta-feira, feriado nacional, 9 de Junho de 1955, Dia de Corpo de Deus, no dia seguinte comemorava-se o Dia da Raça, igualmente feriado, e Sábado e Domingo também eram dias de descanso”.
“O facto do sobrinho do Gustavo ter dito que não trabalhara no dia em que ocorreu o crime está justificado: era feriado!” – sublinhou Rip Kirby, com a convicção de que aquela era a pista que o levaria ao verdadeiro criminoso. “Por essa mesma razão, por ser feriado, o jovem teve ainda oportunidade de conviver durante a tarde com alguns amigos, cujo programa culminou com uma ida ao cinema, como foi confirmado por aqueles em tribunal”.
“Outra coisa, porém, que não ajudou muito o rapaz” – enfatizou Rip Kirby – “foi o facto de ele não ter ido dormir a casa do tio, com quem coabitava, e não ter dito onde e com quem pernoitou. Apenas disse que passou a noite em casa de uma namorada, mas não quis revelar o seu nome, nem a moça apareceu no tribunal para testemunhar em sua defesa, apesar dos inúmeros apelos feitos nesse sentido. Entretanto, circulou pela cidade o boato de que ela era casada, mas…”.
Rip Kirby fez uma breve pausa e continuou: “Para cúmulo do azar do rapaz, foram encontrados cinco mil escudos entre os seus objectos pessoais. Ele mostrou-se surpreendido pelo achado, e negou que o dinheiro lhe pertencesse. Porém, como o móbil do crime parecia ter sido o roubo de cem contos que Gustavo havia recebido dias antes pela venda de uma propriedade, era indispensável que alguém pudesse explicar o aparecimento daquelas notas no meio dos haveres do seu sobrinho”.
Rip Kirby respirou fundo e exclamou: “O rapaz não tinha explicação para aquele achado, nem os investigadores, nem o tribunal… mas eu tenho”! Eduardo Trindade ficou em suspenso, mas o amigo preferiu adiar a explicação para mais tarde: “Já lá vamos. Deixa-me falar primeiro sobre os outros suspeitos. Comecemos pelo Zé Americano, sobre quem pendiam, como é normal, as maiores suspeitas porque passava boa parte do seu tempo, quando estava bêbedo, a ameaçar o velho Gustavo de morte”.
Eduardo Trindade estava divertido, por ver o amigo a vestir a pele de investigador. E lá continuava Rip Kirby: “Segundo se consta havia entre eles um contencioso que remontava ao tempo da Lei Seca, decretada nos Estados Unidos da América, nos anos 20 do século passado, quando ambos faziam pela vida naquele país, como emigrantes, ‘trabalhando’ para grupos rivais que tinham como objecto de negócio privilegiado o contrabando de bebidas alcoólicas”.
Rip Kirby riu-se da peculiar relação que existia entre os dois velhos ex-emigrantes: “Apesar de Zé Americano culpar Carlos Gustavo pelo falhanço de uma operação de contrabando de bebidas, por denúncia, que só por sorte o não levou à cadeia, mas que arruinou por completo a sua ‘reforma’, fazendo-o viver à míngua desde que regressou à terra natal ‘com uma mão à frente e outra atrás’, a verdade é que eles mantinham uma relação muito estreita”.
Eduardo Trindade continuava em silêncio, enquanto Rip Kirby prosseguia o seu raciocínio: “Eles andavam sempre juntos e era frequente o Zé Americano visitar a casa do seu ‘amigo’, onde passava boa parte do tempo a brincar com a arma do velho do Gustavo. Este curioso passatempo justifica o facto de existirem vestígios de impressões digitais do Zé Americano na arma do crime, que fora cometido exactamente com a pistola da vítima”.
Rip Kirby não tem dúvidas: “É óbvio que estamos perante um homicídio, porque a arma foi encontrada a alguns metros da vítima, em cima de uma mesa. E também é natural que todas as suspeitas da autoria do assassínio recaíssem sobre o Zé Americano, mas este tinha um álibi imbatível. No dia em que ocorreu o crime, ele partira manhã cedo para Faro, onde estivera no velório de um familiar seu, conforme podiam atestar vinte testemunhas por ele invocadas, e só regressou no dia 10 à sua cidade.”
Para que não subsistissem dúvidas, Rip Kirby sublinhou: “O médico legista que observou o corpo de Gustavo foi peremptório quanto à hora da sua morte, que ocorreu às cinco da tarde, e também não tem dúvidas acerca do tempo que medeia entre esta e o momento do disparo, que se terá verificado duas a três horas antes. Ou seja, entre as duas e as três da tarde! Desta forma, podemos concluir que o Zé Americano não é o assassino, uma vez que nessa altura ele estava ausente, em Faro, de onde regressou às sete da tarde do dia 10”.
Eduardo Trindade estava espantado com a eloquente exposição feita por Rip Kirby, que continuou imparável: “Neste momento estarás tu a interrogar-te, meu caro amigo, sobre quem matou então o velho gangster. Na verdade, se eu afirmo que o sobrinho da vítima está inocente, como ele sempre reclamou, aliás, e se isento o Zé Americano de qualquer envolvimento no crime, quem foi o assassino? Esta pergunta só tem uma resposta: foi o guarda Ricardo”!
Sem dar tempo a que Eduardo Trindade reagisse, Rip Kirby continuou: “Quem trabalha por turnos acaba por perder a noção dos feriados, mais a mais quando eles são móveis. E foi isso que fez perder o guarda Ricardo. No seu depoimento, ele alega que estivera nesse dia em casa da vítima por volta das duas da tarde e que saíra com o velho alguns minutos depois, acompanhando-o até a uma agência bancária, onde o viu entrar. O guarda Ricardo mente. Os bancos não funcionam nos feriados”!
Eduardo continuava sem palavras, ao contrário do seu amigo Rip Kirby, que não parava: “Talvez o velho Gustavo também não fizesse ideia de que aquele dia era feriado nacional. Ele tinha cem contos e queria depositá-los no banco. Já tinha almoçado, deixara a casa impecavelmente limpa, a cozinha em ordem, a loiça arrumada nos armários, e quando estava já de casaco vestido (foi a carteira que atrasou a hora da sua morte), e se preparava para levar os restos de comida para o lixo, a campainha tocou”.
“E quem tocava à porta?” – perguntou Rip Kirby, sem esperar pela resposta – “Era o guarda Ricardo, visita frequente lá de casa, que vinha à procura do sobrinho do Gustavo. O velho disse-lhe que o rapaz já tinha saído e resolveu pedir ao polícia que o ajudasse a preencher o talão de depósito, escusando assim de chatear os funcionários do banco. Naquela época o analfabetismo grassava no país e era comum os mais velhos apenas saberem escrever, e mal, o seu nome. Era, pelos vistos, o caso de Gustavo”.
Eduardo concordou absolutamente com o raciocínio do amigo, que continuou: “Ao receber o pedido do velho, o agente da PSP não se fez rogado. Ele só tinha de entrar ao serviço às três da tarde e não lhe custava nada fazer aquele favor. Até aqui estava tudo bem, mas quando, ao preencher o talão de depósito, o guarda Ricardo percebeu o dinheiro que o velho tinha em seu poder, a coisa mudou de figura. Cem contos, naquela época, em 1955, era mesmo muita massa, meu Deus”!!!
Rip Kirby baixou os olhos e disse com tristeza: “Há quem diga que a honra de qualquer homem tem um preço, e, no caso do guarda Ricardo, o seu valor era muito baixo. Uma vida humana vale muito mais do que cem contos, que diacho! O velho tinha a sua arma à mão de semear, como se percebe pelas declarações do Zé Americano, que sempre que lá ia a casa brincava com o revólver, e o miserável do polícia não teve contemplações: um tiro no peito arrumou de vez com a vida de Carlos Gustavo”!
Rip Kirby empolgou-se: “O guarda Ricardo apagou as marcas dos seus dedos deixadas no gatilho, no cano e na base inferior da coronha da arma do velho Gustavo, apagando dessa forma parte das impressões digitais do Zé Americano, que, apesar de tudo, ainda por lá ficaram nalgumas zonas da coronha, embora quase imperceptíveis porque não muito recentes. Não há dúvida que Ricardo limpou a arma com os conhecimentos próprios de um verdadeiro profissional!...”
“Os canalhas não têm nervos” – sentenciou Rip Kirby, prosseguindo de imediato: “Calma e tranquilamente, Ricardo poisou a arma em cima da mesa, acabou de preencher o talão do depósito, falsificou a assinatura do velho, como se percebe pela forma carregada como ela se apresenta, deixou Carlos Gustavo caído no chão, julgando-o já morto, e só depois é que saiu. Antes, porém, pegou em cinco das cem notas de mil que havia roubado ao velho e deixou-as por entre os haveres do seu sobrinho”.
Rip Kirby soltou uma gargalhada e continuou: “Se até ali o Ricardo havia agido com a perícia de um criminoso sábio, depois passou a actuar como um desastrado. É tão infantil a história por ele inventada de que terá voltado mais tarde a casa do velho para comer um arroz de conquilhas, para que tinha sido alegadamente convidado, que até ‘mete dó’!... Se o Gustavo lhe tivesse feito esse convite, decerto que haveria, algures pela cozinha, um recipiente de água com conquilhas, para lhes retirar a areia. O que não se encontra registado no Processo”!...
Rip Kirby prosseguiu: “Naquela época não havia hipermercados, ou outras superfícies comerciais, que vendessem “mariscos” prontos a cozinhar. As amêijoas, os berbigões… as conquilhas, eram adquiridos na lota, nos mercados, ou na rua, e tinham que ser previamente lavados e limpos de areias. Tamanha ingenuidade só pode ser ditada por uma cabeça toldada por estranhos desejos de vingança! Tenho para mim que a verdadeira razão da ida do Ricardo a casa do Gustavo relaciona-se com a desconfiança de que o sobrinho deste o traía com a sua mulher! Embora não se perceba bem pela leitura do Processo, parece que o polícia estava de serviço na noite em que o rapaz ficou fora de casa com uma namorada…”.
Eduardo Trindade não tinha a mesma opinião, mas o seu amigo Rip Kirby não desarmou: “OK, eu dou de barato que a leitura que faço do Processo nesse particular não é a mais correcta, mas de uma coisa estou certo – o malandro do Ricardo quis culpar o sobrinho do velho Gustavo pela autoria da morte do tio… e conseguiu! E de outra coisa também tenho a certeza – o criminoso é o guarda Ricardo. Ou será que estou enganado, caro amigo Inspector Eduardo Trindade?”
Eduardo não hesitou nem um instante: “Não, Rip. Tu tens razão. Houve muita incompetência durante a averiguação do crime e no seu julgamento em tribunal. São tão frágeis e desconcertantes as alegações do guarda Ricardo, na fase de instrução do Processo e no Tribunal, que só um investigador inepto, um advogado de defesa néscio, um delegado do ministério público corrupto ou incapaz e um juiz indigno de envergar a toga, permitiriam que, em seu lugar, fosse castigado um jovem inocente”!
“É de facto espantoso como nenhum deles se lembrou que nesse dia 9 de Junho se comemorou o Dia de Corpo de Deus, estando a Cidade em festa, com procissões e romarias de manhã à noite, como era hábito na época” – acrescentou Eduardo, para concluir: “Era feriado e os bancos estavam fechados, pelo que o guarda Ricardo havia mentido! Por outro lado, também é curioso que não se tenha questionado o facto do talão de depósito bancário apresentar sinais claros de falsificação da assinatura do velho Gustavo, nem se tenha levantado o ‘problema’ das conquilhas por lavar…”
“Também é óbvio que o polícia quis deixar pistas que pudessem levar à acusação do sobrinho da vítima, só não sabemos bem porquê. Será que o rapaz era um garanhão de muitas namoradas e a mulher do Ricardo era uma delas? O certo é que no dia 10 não foi em casa dela que ele dormiu, porque supostamente o marido estava lá. Só se o fez na véspera, na noite em que o agente esteve de serviço, segundo o que está lavrado no Processo. Ou noutra qualquer noite, quem sabe?…” – acrescentou Eduardo Trindade.
“Ao que se consta, eles eram muito amigos, mas …” – continuou Eduardo Trindade, que tentava agora encontrar explicação para o talão do depósito dos cem contos estar lá por casa… preenchido: “É estranho. Será que o guarda Ricardo quis que os investigadores fossem levados a concluir que o sobrinho do Gustavo apanhou o tio dentro do banco e impediu que ele fizesse o depósito, arrastando-o, depois, até casa, onde o matou para consumar o roubo?...”
“Isto só faz algum sentido porque o polícia construiu toda a sua história por cima de um pressuposto impossível: o facto de ser feriado e o banco estar fechado! Embora pouco verosímil, esta argumentação não deixa de ter lógica. Até porque não encontro outra” – afirmou Eduardo Trindade, para concluir: “Se o guarda Ricardo queria mesmo um pretexto para se vingar do sobrinho do velho e retirar daí alguns dividendos financeiros, não se saiu mal. Matou o velho, ficou com cem contos e mandou o puto para a cadeia”.
“O pior nisto tudo é que o sobrinho do velho Gustavo não suportou a revolta da injustiça de que foi alvo, nem o sofrimento da clausura, e acabou por se suicidar ao fim de nove anos de prisão” – recordou, com tristeza, Rip Kirby. “Já não podemos devolver a vida ao rapaz, mas ainda estamos a tempo de meter o guarda Ricardo na choça, meu caro Rip” – rematou com vigor o Inspector Eduardo Trindade, que acrescentou: “Não há crime que não tenha castigo. Mais tarde ou mais cedo, a verdade impõe-se à mentira. Obrigado, Rip. Sem ti, a nossa Justiça seria ainda mais pobre!....”
Inspector Boavida