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domingo, dezembro 16, 2007
  SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 1

“MISTÉRIO NO PARQUE”, de Rip Kirby

Cinco horas e trinta minutos de uma madrugada fria de finais de Novembro, mais precisamente, do dia 29. O casal Cardoso, Venâncio e Verónica, dirige-se para o trabalho num bar das redondezas de que são proprietários e para isso, por ser o caminho mais curto, atravessam o Parque Eduardo VII, um pouco acima da sua extremidade sul, quando deparam, precisamente a meio da sua travessia, com um estranho e volumoso objecto. Curiosos, aproximam-se e verificam que o tal objecto, afinal, é um homem.
Venâncio, apesar das tentativas da mulher para o impedir, debruça-se sobre o corpo e verifica que está inanimado. Pede à mulher para ir procurar algum polícia nas proximidades dos bancos que ficam a cerca de 200 metros, mas esta nega-se; tem medo de voltar a atravessar o parque. Recusa-se, também, a ficar ali sozinha com o desconhecido, não vá este acordar enquanto o marido procura ajuda.
Aguardaram alguns minutos, na esperança de que surgisse alguém que se prontificasse a ficar ali com o desconhecido ou que fosse procurar a ajuda precisa, mas ninguém apareceu. Portanto, a solução foi irem os dois. Verónica ainda sugeriu ao marido que se fossem embora e não se preocupassem mais com o estranho, mas o marido recusou tal sugestão e lá foram.
Encontraram um polícia que se preparava para tomar o pequeno-almoço, num café que tinha acabado de abrir, e comunicaram-lhe o seu estranho achado. O agente Ricardo Teixeira, como se podia ler no crachá preso no blusão do uniforme, sugeriu que não se preocupassem com o bêbado, mas, perante a insistência de Venâncio, que teimava em afirmar que não se tratava de um alcoólico, acabou abandonando a sua torrada e o galão e, acompanhado pelo casal, dirigiu-se ao local. Uma vez ali chegado, tomou o pulso do homem inanimado e imediatamente se apercebeu de que estava morto. Através do rádio informou a esquadra e recebeu ordem para não mexer em nada e manter os curiosos afastados do local; iam mandar imediatamente reforços, o que efectivamente aconteceu.
O comissário João Saramago chegou pouco depois das 6 horas, acompanhado, como habitualmente, por todos os seus auxiliares especializados nas diversas áreas de investigação. Vinha mal-humorado e esse mau humor logo se fez sentir sobre o agente Ricardo, quando, tendo-lhe feito uma pergunta, este, deitando um olhar em redor, não lhe soube responder. Finalmente, mais calmo, dirigiu-se para o corpo e deteve-se, alguns instantes, a observá-lo.
O cadáver encontrava-se estendido ao comprido, de peito para baixo, tendo a cabeça encostada a um velho saco de viagem que estava meio vazio e junto do qual se via um pequeno bloco de apontamentos e uma esferográfica. O resto do seu conteúdo encontrava-se espalhado no chão em redor - eram diversas bugigangas. Tinha o braço esquerdo estranhamente dobrado sob o corpo e a mão direita, fechada, estava apoiada no saco, tendo o dedo indicador espetado apontando para Sul, como que a indicar algo dentro daquele quadrante. Talvez o monumento erigido algumas dezenas de metros mais abaixo.
O rosto encontrava-se muito inchado e, nas partes do corpo que estavam visíveis, viam-se muitas e extensas escoriações.
Saramago encarregou os seus homens de algumas diligências e ficou observando o médico legista que, naquele momento, dava por findo o seu trabalho e se dirigia para junto dele.
“Então?” Perguntou o comissário. O médico franziu o nariz, coçou a calva, olhou para o relógio e, por fim, respondeu:
“O tipo apanhou uma valente sova. São agora oito horas; deve estar morto há pelo menos quatro. Mais do que isto só depois da autópsia.” E afastou-se.
O comissário ainda ficou alguns minutos mais, observando os seus homens que faziam as últimas fotos e buscas antes de o corpo ser levado.
Alguns dias depois, talvez uma semana, sentado à sua secretária, João Saramago lia os relatórios dos seus subordinados que o seu secretário havia condensado.
O morto, segundo documentos encontrados com ele, era Joaquim Fonseca. Tinha 30 anos e havia sido um brilhante estudante, mas não chegara a formar-se. A sua homossexualidade primeiro, as más companhias depois e a droga por fim afastaram-no dos estudos, quando lhe faltavam alguns meses apenas para se formar em História. Agora, para sobreviver, vendia bugigangas e também droga, que recebia de outros para revenda. Segundo as informações colhidas pelos agentes, havia quatro indivíduos que, já por diversas vezes, tinham ameaçado o Joaquim, mas que ainda não fora possível localizar.
O relatório da autópsia, passando por cima dos pormenores técnicos, dizia que o infeliz sofrera várias fracturas, entre as quais as do crânio e de duas costelas que lhe perfuraram os pulmões, daí advindo a sua morte que não havia sido instantânea, embora não tivesse demorado muito.
Após a leitura, João Saramago convocou os seus auxiliares e disse-lhes que queria ali, rapidamente, todos os suspeitos, sob pena de os colocar a todos eles, auxiliares, fazendo patrulhas nas ruas da cidade.
Acicatados pela ameaça do chefe, os agentes redobraram os esforços e ainda nessa tarde lhe apresentaram o primeiro suspeito. Tratava-se de Alberto Queirós, antigo agente da PSP, de onde fora expulso devido a excessos cometidos, especialmente, sobre homossexuais. Era um indivíduo corpulento, talvez 1,90m de altura e 100 kg de peso. Ganhava a vida como porteiro num dos bares nocturnos do Cais do Sodré, actividade onde já por diversas vezes usara a sua corpulência, o que lhe acarretara alguns dissabores com as autoridades.
Tendo-lhe sido perguntado por onde andara e o que fizera na noite de 28 para 29 de Novembro, respondeu que não se lembrava, mas que devia ter estado em casa, na margem sul, até cerca das 20h. Quando saiu, foi para se dirigir para o trabalho, onde permaneceu até ao encerramento do bar, cerca das 5 horas da madrugada. Logo que saiu, foi apanhar o barco para voltar para casa.
No dia seguinte, quando o Comissário chegou ao serviço, estava à sua espera o Francisco Torres, outro dos suspeitos, conhecido por “Fininho”. Esta alcunha condizia com o seu aspecto físico, pelo que me dispenso de o descrever. Constava que negociava com droga, mas nunca tinha sido apanhado. Já por diversas vezes estivera prestes a cair nas redes que as autoridades lhe lançaram, mas tinha sempre conseguido passar por entre as suas malhas.
Andava sempre rodeado por quatro guarda-costas que tinham a habilidade de nunca estarem à vista dos seus inimigos, mas estarem sempre ao alcance da sua voz. Não constava que alguma vez se tivesse servido dos seus guardiões para resolver as suas pendências, o que geralmente fazia ameaçando os seus devedores num tom de voz frio e cortante que os aterrorizava.
Às perguntas do comissário respondeu:
“Como me vou lembrar disso? Já passaram tantos dias… Eu nem me lembro do que jantei a noite passada!” Dizendo isto, largou uma gargalhada, mas, perante o olhar severo de João Saramago, logo se conteve e disse:
“Desculpe, senhor comissário. De facto, não me lembro do que fiz nessa noite, mas possivelmente teria andado a tratar dos meus negócios, ali para a zona do Cais do Sodré e Bairro Alto; é o que geralmente faço à noite, já que de dia descanso. Talvez algum dos seus homens me tenha visto por lá nessa noite.”
António Sebastião apresentou-se nesse mesmo dia cerca das 11h. Era um antigo pugilista, de corpulência parecida à de Alberto Queirós. A sua actividade, segundo ele afirmava, era a de cobrador de dívidas. Na noite referida pelo comissário, tinha estado, tratando de negócios, até cerca das 2h30 da madrugada, num bar nas proximidades do Cais do Sodré. Depois, saíra com uma garota e já não voltara; havia passado o resto da noite com a garota referida. Não se aproximara, em momento algum, da zona do Marquês.
Às 17 horas, chegou Valdir Pereira, o último dos suspeitos. Brasileiro naturalizado português, jogador de futebol com algum valor, respondeu da seguinte forma:
“Lembro-me perfeitamente do que fiz, porque a minha esposa fez anos nesse dia. Fomos jantar a Cascais com alguns amigos e, depois, fomos a um espectáculo no Casino. A seguir, vagueámos de bar em bar e só regressámos a casa perto das 6 horas, mais ou menos. Por causa disso, o clube aplicou-me uma multa, mas não me arrependo.”
No dia seguinte, João Saramago convocou os agentes que na noite do crime haviam feito serviço na zona do Cais do Sodré e pediu-lhes informações sobre o que eles, eventualmente, saberiam sobre os suspeitos. Um dos interrogados disse que se lembrava de ter visto, de facto, o Sebastião a sair de um bar com uma mulher, cerca das duas horas ou pouco mais e não o voltara a ver. Dos outros suspeitos, embora os tivesse visto, nada sabia que os tivesse tornado notados nessa noite.
O comissário mandou um dos seus homens procurar a moça com quem Sebastião havia saído e perguntar-lhe até que horas estivera com o suspeito.
O agente voltou com a seguinte história que a moça lhe contou:
Não sabia se o Sebastião estivera com ela toda a noite e nem sabia tão pouco por que motivo o maldito a convidara para casa dele. Afinal, quando lá chegou, deu-lhe qualquer coisa a beber que a colocou a dormir, acordando só pela manhã, com uma terrível dor de cabeça e o Sebastião ressonando-lhe aos ouvidos.

Será que, com estes elementos, os meus amigos serão capazes de elaborar um relatório que facilite o trabalho do comissário João Saramago?
Desse relatório, devem constar as seguintes informações:
Que pergunta teria o Comissário feito ao agente Ricardo, a que este não soube responder?
Quem teria sido o autor da sova da qual resultou a morte de Joaquim Fonseca?
O dedo indicador da mão direita apontando para Sul terá algum significado?
Todas as afirmações devem ser pormenorizadamente justificadas


Solução de Inspector Boavida

Seis da manhã. Tinha adormecido há pouco mais de três horas e acordei de um pesadelo de arrepiar os cabelos e todos os outros pelos do meu corpo, mesmo os mais recônditos. Sebastião José de Carvalho e Melo, o carrasco dos Távora, o inimigo “mortal” dos jesuítas, o cruel e implacável ministro de el-rei D. José, tinha tomado conta do meu sono, gritando aos meus pobres ouvidos alguns dos mais feios e menos nobres impropérios que jamais escutei em toda a minha (boa)vida.

Já acordado, enroscado nos lençóis, de cabeça coberta, meio estremunhado e a tremer de medo, ainda me parecia ouvir a enérgica voz do marquês de Pombal: «Eu sei que cometi algumas atrocidades, que me consideram um déspota, um tirano, um bárbaro, mas avise os seus amigos do policiário que não me metam ao barulho nos vossos enigmas de crimes e mistérios, senão provocarei um tal terramoto no site do minhoto Falcão que nem as classificações do ranking escapam à minha ira».

Levantei-me ainda a tremelicar e “atirei-me” ao computador para me certificar se o “Clube de Detectives” estaria a salvo. E foi aí que descobri a irritação do conde de Oeiras. Na primeira prova do Torneio “Sete de Espadas”, editada na véspera, Rip Kirby expõe Joaquim Fonseca, a vítima de um horroroso crime que meteu pancada de “criar bicho”, de dedo em riste apontado para a estátua erigida na Praça Marquês de Pombal como “pista” denunciadora do seu cruel assassino: Sebastião!

O homónimo do mais notável estadista português do século XVIII, autor material do homicídio do infeliz Joaquim, é um antigo boxeur, o que explica o rosto amassado e as fracturas produzidas no crânio e nas costelas da vítima. Como se sabe, os pugilistas aprendem a bater no rosto, na cabeça, no peito e na região abdominal dos seus adversários, uma vez que naquela modalidade desportiva, também chamada de “nobre arte”, não é permitido atingir os opositores abaixo da cintura.

Sebastião é um homem alto e robusto (…”de corpulência parecida à de Alberto Queirós” – um dos suspeitos ilibados, como se verá mais à frente) e ganha actualmente a vida como cobrador de dividas, actividade que, pelos vistos, exerce de forma pouco diplomática, servindo-se do corpo, dos músculos e… do muito que aprendeu nos ringues de boxe. O pobre Joaquim era alvo fácil: um homossexual toxicodependente, que sobrevivia apenas da revenda de bugigangas várias e de… droga.

Segundo testemunhos recolhidos, “havia quatro indivíduos que, já por diversas vezes, tinham ameaçado Joaquim”. Sebastião era um deles! Quando foi chamado a prestar declarações, o ex-pugilista afirmou que, na noite referida pelo comissário Saramago, havia estado num Bar situado próximo do Cais do Sodré a tratar de negócios até por volta das 2h30, de onde saiu na companhia de uma garota com quem passou o resto da noite. E foi exactamente esta história que “traiu” Sebastião!

É verdade que os agentes que prestaram serviço nessa noite nas imediações do Cais do Sodré o viram sair com uma garota, mais ou menos à hora por ele indicada. Mas esta, ao ser interrogada, manifestou a sua indignação pelo corpulento Sebastião não ter cumprido o seu dever de “macho”. Segundo a garota, o ex-pugilista levou-a para casa, e, assim que lá chegou, despejou qualquer soporífero numa bebida que a deixou a dormir. Quando ela acordou, Sebastião roncava-lhe aos ouvidos!...

Sebastião utilizou apenas a “menina” como álibi. Ela não sabe “por que motivo o maldito a convidara para casa dele”, mas a explicação é muito simples. Ele precisava de alguém que testemunhasse que estava em casa na hora em que “acertasse contas” com o desgraçado do Joaquim, uma vez que a coisa poderia “dar para o torto”. Assim, e com o pretexto de comprar os favores sexuais da jovem, levou-a para casa, deu-lhe uma bebida que a pôs a dormir e partiu no encalço da sua “presa”.

Sebastião sabia onde encontrar Joaquim. Era exactamente no Parque Eduardo VII, conhecido local de prostituição masculina e de tráfico de estupefacientes entre homossexuais e seus parceiros de ocasião, que a vitima costumava negociar sexo, droga e as mais diversas bugigangas. Já passava das três da madrugada quando “caçador” e “presa” se confrontaram (recordo que o médico legista afirmou, às oito horas da manhã, que Joaquim estava “morto há pelo menos quatro horas”).

Sebastião exigiu o pagamento imediato de uma qualquer divida que há muito estaria em falta, utilizando “argumentos” fortes e convincentes… Porém, o pobre devedor não tinha maneira de satisfazer as exigências do ex-pugilista e este não perdoou: breves e potentes “jab” precederem quatro ou cinco golpes “cruzados” na cabeça, vários “directos” na zona torácica, inúmeros “upper” nos queixos e meia dúzia de ganchos” na região abdominal, que levaram Joaquim ao “tapete”!

Joaquim não pereceu logo (segundo a autópsia, “a sua morte não havia sido instantânea, embora não tivesse demorado muito”). Ele ainda teve tempo suficiente para pensar numa forma de denunciar o autor da agressão. Tinha mesmo ao seu lado, junto a um velho saco onde guardava alguns dos seus parcos pertences, um bloco de apontamentos e uma esferográfica. A sua primeira ideia foi escrever no bloco uma declaração que incriminasse Sebastião. Mas, infelizmente, não conseguiu.

Joaquim mal se podia mover com tantas dores... e fracturas. O seu braço esquerdo (“estranhamente dobrado sob o corpo”) estava partido e não conseguia escrever nada no bloco apenas com a mão direita. De súbito, ocorreu-lhe outra forma de denunciar Sebastião: apontar com o dedo indicador da mão direita o seu homónimo que se encontra no cimo da estátua ao sul do Parque, acompanhado de um imponente rei da selva! Alguém havia de decifrar este enigma: eu, claro, o Inspector Boavida!!!!

O “carrasco” Sebastião já tinha chegado a casa quando Joaquim Fonseca sucumbiu. Enfiou-se na cama, ao lado da “garota do Cais do Sodré”, que ainda dormia a sono solto por força do soporífero que havia ingerido por volta das três da madrugada. Era já manhã quando ela acordou, com Sebastião ressonando aos seus ouvidos. Este estava convencido de ter cometido o crime perfeito, graças ao “álibi” que havia partilhado a cama consigo, mas…

Não foi só o “orgulho profissional ferido” da prostituta que tramou Sebastião quando foi chamada a prestar declarações. Também este se denunciou a si próprio involuntariamente em sede de interrogatório, ao dizer que nessa madrugada “não se aproximara, em momento algum, da zona do Marquês”! Como é que ele adivinhara o local onde se dera a ocorrência que determinara a sua “convocação” para um “encontro” com a polícia? Se não é bruxo… é ele o assassino!!!

Um policial tão exigente com os seus subordinados, como aparenta ser o comissário João Saramago, o mínimo que exige de si próprio é “não abrir totalmente o jogo” com os suspeitos durante os interrogatórios. Em momento algum terá dito, portanto, a Sebastião o que tinha acontecido e em que local, limitando-se obviamente à pergunta quase “sacramental”: “onde esteve e o que fez na madrugada de 28 para 29 de Novembro?”

Esta mesma questão terá sido formulada aos outros três suspeitos. O primeiro a ser ouvido foi Alberto Queirós, antigo agente da PSP que trabalha agora num Bar do Cais do Sodré, como porteiro, um indivíduo cuja compleição física e homofobia afasta do estabelecimento clientes “pouco interessantes” para aquele ramo de negócio. Os excessos por si cometidos no relacionamento com homossexuais, no passado recente, não abona muito a seu favor, mas nada havia que o inculpasse neste caso.

O ex-policia disse que não se recordava muito bem do que fizera naquela noite, mas tinha quase a certeza de que estivera em sua casa, situada na margem sul do Tejo, até por volta das oito da noite, porque é essa a rotina de todos os seus dias. Como é habitual, esteve de serviço no Bar até ao encerramento, o que acontece por volta das cinco da manhã, e regressou de imediato a casa, usando como sempre um dos barcos que fazem a travessia do Rio.

Tudo o que ele disse “bateu” certo com as informações prestadas posteriormente pelos seus ex-colegas da esquadra do Terreiro do Paço que rondaram os bares junto ao Conde Barão, Corpo Santo e Cais do Sodré na noite de 28 e madrugada de 29 de Novembro. Eles não notaram nada de diferente no comportamento de Alberto Queirós que seja digno de registo. Terá entrado ao serviço à hora do costume e saído à hora habitual, pois, se assim não fosse, teriam dado “conta”.

O segundo suspeito a ser ouvido foi Francisco Torres, o “Fininho”, uma personagem pouco recomendável, que vive de “expedientes” ilícitos ainda não provados, sempre guardado à distância por três ou quatro gorilas que lhe protegem a retaguarda, para evitar que os clientes mais afoitos e menos cordatos aproveitem a sua fraca figura para fazer vingar a revolta de qualquer pendência mal resolvida ou atitude menos bem “explicada”.

Disse o “Fininho” que não se lembrava do que havia feito naquela noite, mas que decerto terá andado pela zona do Bairro Alto e do Cais do Sodré a tratar dos seus negócios, como faz geralmente todos os dias, o que acabaria por ser comprovado pelos agentes da PSP que prestam serviço por aquelas bandas e que andam sempre de “olho nele”, a ver se o apanham com a “boca na botija”, com a “mão na massa”… a “mijar fora do penico”!

O último suspeito ouvido é um popular (“com algum valor”) jogador de futebol brasileiro, naturalizado português, de seu nome Valdir Pereira, que afirmou recordar-se perfeitamente do que fizera e por onde andara na noite referida pelo comissário Saramago, porque sua mulher nascera sob o signo de Sagitário, a 28, e decidira festejar a data com ela e alguns amigos! Jantaram em Cascais, foram ver um espectáculo ao Casino e depois vaguearam de bar em bar até perto das seis da “matina”.

O futebolista acabou, aliás, por ser multado pelo seu clube por causa daquela noitada, que, com toda a certeza, terá sido comentada nos jornais desportivos e na restante comunicação social cá do burgo, que não perde “pitada” dos “fait-diver” e escândalos que envolvam os homens que gravitam em torno do mundo da bola. O polícia de giro confirma tê-lo visto pelas bandas do Cais do Sodré, madrugada adentro, e nada registou que indiciasse qualquer relação com a morte do pobre Joaquim.

O comissário João Saramago estava satisfeito com o comportamento da sua equipa e com a prestação dos homens da PSP que estiveram envolvidos neste caso ou foram chamados a dar o seu contributo. Apenas um, o guarda Ricardo Teixeira, havia deixado algo a desejar: primeiro, levou algum tempo a dar resposta ao pedido de auxílio do casal que descobriu o cadáver; depois, não tomou as devidas medidas de precaução quando chegou ao local da ocorrência.

De facto, o comissário João Saramago não ficou com a melhor impressão do guarda Ricardo. E por uma simples razão: aquela que está subjacente à primeira pergunta formulada por Rip Kirby no final do enunciado do seu enigma! Saramago terá perguntado ao agente da PSP qualquer coisa como «viu alguém ou algo suspeito nas imediações quando chegou aqui, ao local do crime?», ao que este não soube responder, “deitando um olhar em redor”.

Quanto às outras questões formuladas pelo “brasileiro de Olhão”, apenas sublinho que foi Sebastião o autor da sova da qual resultou a morte de Joaquim, uma vez que sobre a última pergunta já disse o que tinha a dizer e não repito, porque temo que o conde de Oeiras e da Redinha; marquês de Pombal; alcaide-mor de Lamego; senhor donatário das vilas de Oeiras, Pombal e Carvalho; comendador das ordens de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, etc. etc., destrua de vez o site do Daniel Falcão, como muito bem ameaçou, e ele faz-nos muita falta!...


SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 2

“SOSSEGO PERTURBADO”, de Nove

A habitual pacatez da Rua dos Moinhos Velhos foi perturbada numa manhã do fim de Março, que se apresentou cinzenta e fria, em franco contraste com os soalheiros quatro dias anteriores. No interior da entrada do nº 15, um edifício de cinco pisos e nove moradores, apareceu morto o Sr. Tomé Nunes, comerciante de 47 anos de idade, residente no 3º direito desse prédio. A Polícia foi avisada às 8h57, por telefonema do Sr. Francisco Pereira, o vizinho do 3º esquerdo.
O Sr. Nunes, de acordo com as primeiras observações da polícia e do médico legista, fora atingido mortalmente na cabeça por um objecto contundente. Tratava-se de um homicídio, sem qualquer dúvida.
Quando o Inspector Botelho chegou foi informado da preciosa colaboração do Sr. Pereira, o qual repetiu o que já dissera aos agentes Paiva e Varela:
“Eram oito e meia, estava eu a terminar a minha corrida, quando verifiquei que me esquecera da chave da porta do prédio. Como vi luz no hall esfreguei o vidro embaciado para ver se estava alguém a descer. Para minha grande surpresa avistei um corpo caído. Esfreguei ainda mais e cheguei à conclusão de que era o Sr. Tomé Nunes. Fiquei uns segundos sem saber o que fazer. Depois pensei que o melhor era avisar a Polícia e evitar que alguém mexesse no corpo. Peguei no telemóvel e liguei-vos de imediato. A seguir abri a porta e fiquei aqui a tomar conta do meu infeliz vizinho. Desde que descobri o cadáver e até chegarem aqueles senhores guardas, só passaram pelo hall os vizinhos do 4º e 1º direitos. Mas não vi quem tenha saído directamente pela garagem. E é verdade… quando estava a chegar ali ao fundo da rua, ainda antes de ter verificado que não tinha as chaves da porta do prédio, vi sair o matulão do Serafim, um tipo muito simpático, que mora no 2º esquerdo”.
O Sr. Serafim, que foi localizado pouco depois, declarou ter dado pelo Chico Pereira a correr na direcção de casa, seriam umas 8h30, mas jurou não ter visto pessoa alguma no hall.
O Inspector Botelho sorriu. Tinha ainda de colher muitos dados e ouvir várias pessoas. No entanto, parecia-lhe que o agressor do desafortunado Sr. Tomé Nunes já se tinha dado a conhecer.

Quem era ele e como é que se denunciou?


Solução de Inspector Boavida

São 8h30. Termina hoje o prazo para o envio da solução da segunda prova do Torneio “Sete de Espadas” e tenho pela frente um dia completamente preenchido, com inúmeros afazeres profissionais em três cidades distintas nos seus usos, costumes, tradições... e gastronomia!!! Por volta do meio-dia, tenho almoço de trabalho no Porto “das tripas e das rabanadas”; A meio da tarde, espera-me a assinatura de um protocolo em Aveiro “das enguias e dos ovos-moles”; Noite dentro aguarda-me um lugar na plateia do Centro Cultural de Vila Flor para um espectáculo musical em Guimarães “do pica no chão e do leite-creme queimado”. Só vejo uma forma de cumprir em tempo útil o dever a que a louca paixão pela decifração de enigmas me obriga. Vou ter que imitar o Chico Pereira e fazer um... “Jogging Policiário”. Ou seja, redigir em “passo de corrida” a solução ao problema proposto pelo Nove. E para não pôr em causa a minha chegada à meta com vida, vou fazê-lo de um só fôlego, de “um jacto” como o Pessoa, a correr, linha a linha, sem tropeçar em vírgulas ou pontos inúteis nem fazer pausas em parágrafos desnecessários. Primeiro devagarinho, sem muito esforço, poupando energias, depois mais rápido, rapidíssimo, em “sprints” curtos, sem tirar os dedos do teclado do computador. Abastecido com uma garrafa de litro e meio de água, uma laranjinha descascada, duas latinhas de red bull, três pacotinhos de bolachas de água e sal, quatro tabletes de chocolate, uma caixa de aspirinas, uma malinha de pronto-socorro apetrechada com tudo e para tudo o que der e vier… E, pronto, cá vou eu, caros amigos:

Chico Pereira, o “Carlos Lopes” da Rua dos Moinhos Velhos, corre depressa, mas é pouco lesto a chamar a polícia; embacia à distância vidros de portas em espaços livres e abertos, só com o calor que emana do seu corpo, mas é capaz de matar gente a sangue frio; vê corpos caídos onde mais ninguém vê e abre portas com chaves que diz não ter; tem um “faro” tão apurado que só pelo cheiro, e através de portas fechadas, consegue determinar quando um corpo caído está morto ou vivo; não gosta de incomodar vizinhos simpáticos com pedidos de ajuda quando se esquece das suas chaves, mas não se coíbe de transformar o chão do hall de entrada do condomínio em cemitério; vive num prédio habitualmente pacato, com mais oito moradores, sem que nenhum deles reaja aos gritos de um homem agredido até à morte; tem vizinhos que passam por cadáveres como “cães por vinha vindimada” e vão à sua vidinha sem se preocuparem com um homem que jaz no hall de entrada; é tão “manhoso” que prepara as suas “corridas matinais” de forma a fazer recair sobre terceiros a autoria de crimes que ele próprio comete. Chico possui chaves que abrem portas e… cabeças (sem deixar quaisquer vestígios de sangue?) !!!???

Serafim, o grandalhão que vive no segundo esquerdo daquele imóvel de cinco pisos, que apenas tem nove moradores (se cada andar tem “direito” e “esquerdo”, mesmo que só habite uma pessoa em cada piso, há por ali pelo menos uma casa devoluta…), diz que viu o Chico “esperto” por volta das 8h30 a correr em direcção ao prédio. O Chico “atleta” diz que por perto dessa hora deu conta de que se tinha esquecido da sua chave de entrada no edifício onde mora. É estranho, portanto, que não tenha chamado de imediato o vizinho (ainda por cima tido por simpático...), ou corrido no seu encalço, pedindo-lhe ajuda na abertura da porta. Diz ainda o Chico “corredor” que eram 8h30 quando chegou à porta do prédio. Segundo ele, havia luz no hall de entrada, mas não se via nada para o interior porque o vidro da porta estava embaciado. O dia nascera frio e cinzento e assim perdurara até ao momento. O Chico “desportista” diz que esfregou o vidro embaciado uma e outra vez até que conseguiu finalmente ver alguma coisa no interior da entrada do prédio, o que não faz qualquer sentido. Havendo frio no exterior, as vidraças desse lado não podiam estar embaciadas de forma alguma. Quanto muito, o vidro poderia estar embaciado, sim, mas no lado oposto. Admitindo, porém, como provável o facto do vidro estar embaciado (do lado de dentro…), a luz acesa no interior permitiria visualizar o que por lá se passava. Insiste o Chico “culturista”, no entanto, que só depois de esfregar o vidro, do lado de fora, pela segunda vez, viu um corpo caído no hall. Esfregou o vidro de novo e conseguiu concluir que era o seu vizinho do terceiro direito que estava caído no chão. Morto, diz ele! Mas como é que ele sabia que o corpo caído estava cadáver? Podia estar apenas desmaiado. Será que o Chico “das petas” tem “faro canino” e cheirou-lhe, através da porta, que o homem estava morto?!... É curioso. Curioso e impossível!!! Ficou alguns segundos confuso, sem saber muito bem o que fazer, e ligou logo de seguida para a polícia. Curioso, também, é que o telefonema foi ali registado apenas às 8h57, quase meia hora depois do corpo ter sido descoberto! Curioso e estranho é ainda o facto do seu simpático vizinho do segundo esquerdo, o matulão Serafim, ter passado pelo hall às 8h30 (mais ou menos à hora a que Chico diz ter chegado à porta do prédio) e não ter por lá avistado ninguém, nenhum cadáver!... Mesmo que o Chico “fitness” tivesse o seu relógio ligeiramente adiantado, a “coisa” não bate certa porque Serafim o viu em passo de corrida em direcção à porta. Passaram, portanto, breves instantes entre a saída de um e a chegada do outro ao prédio. E o primeiro não viu o que o segundo diz ter visto, através de um vidro embaciado… por fora, em dia cinzento e frio! O Chico do “jogging” diz que abriu a porta e ficou a tomar conta do infeliz vizinho. É estranho, muito estranho! Primeiro o Chico das “corridinhas” disse que não tinha a chave consigo e depois afirma que abriu a porta. Pergunta-se: como é possível? Será que, além de praticar “atletismo” pela manhã, o Chico “artista” ganha a noite como ilusionista e nessa qualidade é dotado de truques ou artes mágicas que lhe permitem produzir chaves em menos tempo do que a famosa “Fábrica de Chaves do Areeiro”?!... Terá sido com essa chave (um objecto contundente!...) que ele matou o pobre Tomé Nunes, o seu vizinho do lado direito? E o sangue? Ao que parece (por omissão no enunciado do Problema), não havia sangue no chão do hall. Ora, tendo a vitima sido assassinada com um golpe desferido na cabeça com um objecto contundente, o hall de entrada do prédio estaria forçosamente “inundado” de sangue. Será que o vizinho do terceiro direito “foi à vida” noutro local (na garagem?... no apartamento devoluto?...) e o Chico “atlético” depositou-o depois no hall, transportando-o “em ombros”? Por outro lado, também é muito estranho que nenhum dos outros moradores do prédio tenha ouvido qualquer barulho estranho. Gritos, por exemplo!... A vítima deve ter gritado por socorro… ou, pelo menos, de dor, quando foi selvaticamente atacada! Num prédio habitualmente tão pacato, seria natural que os vizinhos tivessem ocorrido para saber o que passava. Mas a verdade é que ninguém apareceu. E havia pelo menos dois vizinhos no prédio, os do primeiro e do quarto direitos, que passaram pelo hall quando o corpo lá estava, já para não falar de outros vizinhos que eventualmente tenham saído directamente pela garagem, como admite o Chico “matador“. E por que raio é que os vizinhos, que saíram pela porta, passaram pelo hall e foram à sua vida, sem manifestarem qualquer solidariedade pelo vizinho morto... ou curiosidade pelo sucedido? Que gente insensível!!! Será que era hábito encontrar o vizinho do terceiro direito caído no hall àquela hora da manhã (ébrio?...) e não tiveram a mínima ideia da gravidade da situação?!... Não viram sangue no chão?! Ou não havia mesmo sangue na entrada do edifício!?... Será que o Chico “mentiroso” lhes disse que não havia nada de cuidado e que já tinha chamado o INEM e a Polícia?!... Decerto que a polícia não deixará de ouvir aqueles e os outros moradores do prédio... O Chico perdeu-se em mentiras e mais mentiras, enredou-se nas estranhas e frágeis malhas que ele próprio teceu, e sendo ele o contraditório de si mesmo, acabou por se denunciar como autor do assassinato do infeliz Tomé... que não chegou a “ver para crer” o buraco que o Chico “furador” lhe fez na cabeça. Com a chave (perdida!?…) do prédio?!. Com outro objecto contundente?! Assim, sem mais nem menos, por “dá aquela palha”, ou após discussão acalorada com reminiscências em atritos passados de vizinhos mal comportados?!... Tudo isto será cabalmente esclarecido pela polícia, após aturadas e minuciosas investigações e… apertados e “veementes” interrogatórios a “doer”, que farão suar as estopinhas do Chico “corredor”, obrigando-o a confessar ser ele o homicida e ter sido sua intenção fazer recair as suspeitas do crime sobre o simpático Serafim. E como? Fácil, muito fácil. Depois de ter dado cabo do “canastro” ao Tomé, era preciso encontrar um bode expiatório, que assacasse as responsabilidades do assassinato por ele cometido. Sabendo que o grandalhão Serafim saía regularmente do prédio por volta das 8h30, “pôs-se à coca” ao fundo (ao principio…) da rua, e iniciou a sua “corrida” em direcção da casa, de forma a que ele o visse. Depois colocou o corpo da vítima no hall e engendrou a história como se ela tivesse ocorrido exactamente à hora em que o vizinho Serafim havia de confirmar ter saído pela porta do prédio, quando o Chico regressava da sua “corrida matinal”. Porém, como a história foi mal contada e os investigadores não são parvos, o Chico dos “falsos joggings”, o “Carlos Lopes” da Rua dos Moinhos Velhos, levará uma “corrida em osso” e passará a morar num “resort de luxo”, em Alcoentre ou em Pinheiro da Cruz, num “apartamento” com portas gradeadas, sem vidros que embaciem por fora ou com chaves “mágicas” que matem (?...) vizinhos!

Uff. Cheguei à meta a tempo. Estou cansado, mas feliz por ter cumprido a tarefa a que me obriguei. Agora vem mesmo a calhar um valente banho de imersão. Mas, antes disso, vou “clicar” clubededetectives@gmail.com… anexo a solução e pronto, aqui vai ela, com o desportivismo de sempre... Mas, por favor, deixem-se de “tretas” e venham de lá esses dez pontinhos, com uma menção honrosa!!! Já chega de prémios do azar!!!...


SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 3

“O CASO DO LEILÃO DE PINTURA REALISTA”, de Inspector Boavida

Manuel Pimpão, construtor civil que subiu na vida a pulso, actualmente possuidor de uma enorme fortuna, não é propriamente um “expert” em matéria de artes plásticas, muito pelo contrário, mas tem um particular fascínio por obras de arte realistas, sobretudo as que espelham com rigor paisagens, monumentos e pessoas pelas quais nutre respeito e admiração, sendo neste momento detentor de uma vasta e valiosa colecção.
Aquela sua paixão levou-o há dias a um leilão de Obras de um pintor-retratista dotado de extraordinária sensibilidade, falecido em circunstâncias pouco claras num acidente de viação ocorrido numa “picada” em Angola, quando ali rebentou a guerra colonial, que tinha a particularidade de pintar figuras públicas socorrendo-se apenas de fotografias publicadas em capas de revistas, retratando-as até ao mais ínfimo pormenor, a expressão, o brilho do olhar e até o carácter...
O leilão foi calmo, sem fulgor, sem chama, com os licitadores a arrematar cada uma das Pinturas sem despiques de relevo. Pimpão arrematou um belíssimo Quadro onde se via Salazar a agraciar um soldado de uma companhia de comandos com a medalha de Cruz de Guerra, numa parada militar, junto ao Mosteiro dos Jerónimos, depois de dois lances disputados com um misterioso sujeito de bigode farto e retorcido, vestido de gabardina, adquirindo de seguida, sem oposição, uma Obra que retratava o antigo presidente da República General Spínola no dia da sua tomada de posse.
Para além daquele despique, aconteceu ainda uma pequena “picardia” entre os mesmos protagonistas quando o leiloeiro anunciou um soberbo Retrato do grande Eusébio, com a camisola das quinas, rematando, no seu estilo inconfundível, para um dos cinco golos com que Portugal “brindou” a selecção da Coreia do Norte no Campeonato do Mundo de Futebol, realizado em Inglaterra, que o sujeito de gabardina acabou por arrematar por um valor apreciável.
Mas a grande discussão gerou-se quando o leiloeiro anunciou a última peça, um fantástico Retrato 1,80x1,20 a óleo, com o capitão Salgueiro Maia em pleno largo do Carmo, em cima da Chaimite que o trouxe da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, até Lisboa, naquela primavera de cravos e sorrisos, que abriu as portas à Liberdade. Após quatro lances “inflamados”, Pimpão acabou por arrematar aquela preciosa Obra que o deixou radiante de felicidade.
Porém, quando, no final do leilão, se preparava para passar o cheque com o valor das Obras que havia arrematado, Pimpão viu-se envolvido de repente numa enorme confusão de gritos, insultos e agressões físicas, que só não tomou proporções muito mais graves graças à pronta intervenção do subchefe Pinguinhas que se encontrava em serviço no local.
Firme e decidido, impondo a sua autoridade, Pinguinhas pôs fim à altercação e levou o construtor civil Manuel Pimpão, o tal sujeito de bigode farfalhudo e o leiloeiro, até ao posto da Polícia, onde resolveu o caso em “menos de nada”. Primeiro identificou os três e depois mandou dois deles de volta e deu ordem de detenção ao outro. Pergunta-se: quem ficou detido e porquê?

Solução de Inspector Boavida

Neste estranho “Caso do Leilão de Pintura Realista”, a decisão do subchefe Pinguinhas só podia ter sido uma: o leiloeiro ficou detido a fim de ser presente ao Juiz de Turno para explicar a origem daquelas Obras arrematadas por Manuel Pimpão e por José Saudoso do Regime (o nome do tal sujeito de bigode farfalhudo e de gabardina vestido…), porque todas elas são falsas!

O pretenso autor daquelas Telas faleceu num acidente de viação numa “picada” em Angola, quando ali rebentou a guerra colonial, o que aconteceu em 1961, razão pela qual ele não poderia ter retratado a óleo o nosso Eusébio vestido com a camisola das quinas quando a selecção portuguesa de futebol venceu a sua congénere da Coreia do Norte por 5-3, no Campeonato do Mundo de Inglaterra, realizado em 1966.

Exactamente pela mesma razão, não poderiam ser da autoria daquele pintor a Tela onde se vê o malogrado capitão Salgueiro Maia em cima do Chaimite que o levou de Santarém até Lisboa, na madrugada de 25 de Abril de 1974, para ocupar o Terreiro do Paço e depois o Quartel do Carmo, nem a Pintura onde se “vê” o General Spínola a tomar posse como Presidente da República, o que só aconteceu em 1974, na sequência da Revolução de Abril.

O pretenso autor daquelas Obras, falecido em 1961, que era reconhecido pela particularidade de pintar figuras públicas socorrendo-se de fotografias publicadas em revistas, também não poderia ter retratado Salazar junto ao Mosteiro dos Jerónimos aquando da condecoração de um soldado “comando”, porque aquela Força Especial só foi criada no nosso país depois de eclodir a guerra colonial e as cerimónias públicas de homenagem aos militares combatentes nas antigas colónias terem tido sempre lugar no Terreiro do Paço, a 10 de Junho, então Dia da Raça, sendo que a primeira ocorreu em 1963!


SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 4

“TEMPICOS E OS IRMÃOS SHERIF”, de A. Raposo & Lena

Os irmãos Sherif eram gémeos monozigóticos, iguais como fotocópias, filhos de mãe alemã e de pai paquistanês.
Eram ainda crianças quando os pais se separaram e se desfez o casamento. Um ficou com o pai e o outro com a mãe.
Cresceram, assim, em ambientes completamente diferentes de crenças e hábitos. Um foi educado à maneira europeia e o outro, no Paquistão, à maneira muçulmana. Hermann veio com a mãe para a Alemanha e Malik ficou com o pai.
Quando voltaram a encontrar-se, já adultos, verificaram que tinham um certo pendor para a “golpada”, não obstante terem sido educados separadamente. A culpa talvez fosse dos genes.
Pensaram e formaram uma associação criminosa. Como eram iguais, decidiram ter a mesma identidade, isto é, serem o mesmo Sherif, Hermann ou Malik, conforme a conveniência do momento, ou serem duas pessoas diferentes, como de facto eram. Mas tudo sempre baralhado. Ambos pediram segundas vias dos respectivos passaportes (alegando extravio ou roubo) que depois trocaram entre si. Cada um passou a ter duas identidades e dois passaportes com nomes diferentes. Uma espécie de homens duplicados! Podiam portanto coexistir em termos de identificação documental os seguintes pares: Hermann/Malik, Malik/Malik, Malik/Hermann e Hermann/Hermann
Deste jeito, era fácil a um fazer um roubo e ao outro fornecer um álibi!
A sociedade, formada no dealbar do século XXI, foi medrando e ganhando muito dinheiro. As polícias sabiam que havia ali marosca mas oficialmente nada podiam fazer. Faltavam as provas. Eles actuavam separados, comunicando-se por telemóvel. Por vezes, enquanto um actuava, o outro fazia-se deter por um qualquer delito menor. Passados uns dias o preso pagava a fiança e saía alegremente.
Nos assaltos “à Sherif” notava-se que o ladrão usava luvas e tinha o cuidado de não deixar qualquer resíduo orgânico, pois nunca se encontrara a mais pequena dedada, cabelo ou escama de pele que pudesse ser atribuída a um Sherif, salvo dois casos insólitos que refiro a seguir. Durante a operação do roubo, presume-se que o mano assaltante se vestia como se estivesse numa sala de operações cirúrgicas. Estranhamente, apanhou-se de uma vez um alicate e de outra uma chave de parafusos, as quais, por incrível que pareça, tinham exclusivamente as impressões digitais do mano encarcerado.
Não há muito tempo – estava eu de serviço na P.J. em Lisboa – calhou-me ir visitar (por mera curiosidade, pois aquele caso não me pertencia) a cela da Judiciária onde Malik Sherif se encontrava detido. Tinha ficado preso no dia anterior por uma questão pouco importante e fora identificado pelo passaporte.
E aconteceu o que alguns adivinhavam, o Malik fez-se prender para o seu mano actuar, fornecendo-lhe um álibi, pois, naquela mesma noite, uma ourivesaria em Frankfurt fora assaltada “à Sherif”e aliviada de imensas jóias, conforme informação posterior da polícia alemã. Um golpe de mestre.
Lembro-me bem do que vi.
O preso vestia e tinha o aspecto de um autêntico paquistanês, com uma belíssima barba a condizer. No momento em que entrei estava em plena oração, ajoelhado num tapete de sua propriedade.
A cela era pequena, mas arejada. Naquele fim de tarde, o sol entrava pela janela de grades. Pensei que a expressão – o sol aos quadradinhos – se adequava muito bem à cena, pois Sherif, ao elevar-se da prece, e antes de se voltar para mim, ficou com a quadrícula das grades desenhada na cara.
Ele falava correctamente várias línguas e saudou-me afavelmente:
– Alá é grande e Maomé o seu profeta.
Tinha dinheiro e notei que o guarda lhe facilitara a vida.
Naquela tarde de Agosto o calor forte fizera com que o carcereiro (a troca de algum) lhe arranjasse uma sandes mista e uma Sagres. Sabiam melhor que o rancho do refeitório da polícia. Um livro que devia ser o Corão também lhe fazia companhia.
À saída troquei com o guarda breves impressões sobre o comportamento do preso.
Disse-me que era muito educado e cumpridor escrupuloso dos preceitos da sua religião.
– Um verdadeiro crente – acrescentei eu antes de me despedir.
Saí a pensar que um dos irmãos estivera a trabalhar e o outro a “construir” o respectivo álibi na prisão, para ser mais convincente. Porém, já estava certo sobre qual dos dois tinha pernoitado na PJ. E por exclusão, quem fizera o roubo na Alemanha.
Julgo que os meus amigos também irão descobrir quem fez uma coisa e a outra e por que razões os dois manos actuavam como indiquei atrás.


Solução de Inspector Boavida

Embora não tenha herdado o genes ateísta do meu saudoso pai, que se dizia «ateu, graças a deus», a verdade é que o meu agnosticismo constitui um grande “handicap” a uma bem sucedida decifração do enigma proposto pelo casal A. Raposo & Lena, que fala de Corão e de Maomé. Religião não é, de facto, assunto que me incomode ou estimule. Muito pelo contrário. Até porque, confesso, não sei coisíssima nenhuma sobre o tema, apesar dele estar cada vez mais na ordem do dia, sobretudo nos “media” e nos fóruns políticos, por via dos radicalismos e das violências que encerra. E foi por isso que decidi pedir ajuda ao velho pároco da Igreja de Santo Ildefonso.

Ora “oiçam-no”: «O Corão, meu filho, é um livro… aliás é isso mesmo que Corão quer dizer: o Livro, a Escritura. É como nós com a Bíblia, que é o que a Bíblia quer dizer, o Livro, só que o Corão quer dizer a mesma coisa, mas em árabe, e nós dantes era em latim, embora tenha vindo de byblos, do grego… Mas como ia a dizer, o Corão, que também quer dizer a Leitura, é um livro cheio de contradições, de absurdos, de…O Corão?! O Maomé! Porque tudo isto vem do Mafoma. Ou Hahhemed que era o verdadeiro nome de Maomé, que queria dizer ‘o famoso’ ou ‘o muito conhecido’. Muito conhecido, só se for lá na terra dele, porque nós aqui…»

Já estava farto de ouvir o “padreco”, mas não fui capaz de o calar. Ele estava embalado: «Tudo isto começou porque Maomé era doente, coitado. Sofria de uns ataques, de uns tremeliques. E, para fingir que não era doença a doença que tinha, começou a dizer que, nessa altura, via o Anjo Gabriel, a que eles chamam Jbril, porque os muçulmanos têm mau ouvido. E convenceu toda a gente que era Profeta. No fundo, Maomé era como se fosse um Cardeal, um Arcebispo, vá, um Bispo, e… que… por não conseguir fazer-se Papa, isto é… por não conseguir ser eleito pelos outros Bispos… ou Arcebispos ou Cardeais, inventou uma nova Religião para se vingar dos colegas!»

Fiquei de rastos. O padre deixou-me tão confuso, que decidi ir até a uma Mesquita vizinha, na rua do Heroísmo. Precisava de ouvir a outra parte, o contraditório como se diz agora. Mas também não fui lá muito feliz. Ora “oiçam” o que eu ouvi: «O Cristianismo é uma Religião cheia de contradições, de absurdos. Dizem que adoram um só Deus mas depois, vai-se a ver, adoram três que são só um… ou que é três, conforme as ocasiões. Um é um velhinho com barbas brancas que está sentado em cima de uma nuvem. O segundo é o Profeta que eles veneram como se fosse Deus, o tal Issa, o filho de Maryam, a quem eles chamam Jesus. O terceiro é, imagine, uma pomba!...»

Não queria crer no que me estava a acontecer. O homem não parava: «Três que são um que é três?! Aprenderam mal connosco a aritmética!... Ah... e dizem que não adoram falsos deuses, mas depois enchem as Igrejas com imagens de deusinhos. E o Paraíso para eles está cada vez mais inacessível! Não lhes bastava o Céu e o Inferno e acabaram por inventar mais um sítio a que chamam o Purgatório. Mais: o Deus deles é tão complicado e tão improvável que precisam de Universidades para o entender. E em vez de estudarem a Aritmética, a Álgebra, sei lá, estudam uma coisa chamada Teologia que consiste em usar o Raciocínio para concluir que é a fé que salva!».

Se já estava baralhado, mais baralhado fiquei. De facto, as religiões, ou melhor, os seus representantes “formais”, só servem para nos confundir, atrapalhar, obstruir, entupir. Cada um à sua maneira dá-nos a volta ao miolo e acaba por não nos esclarecer dúvidas algumas. Para eles, a coisa resume-se a isto: «a minha Religião é muito melhor do que a tua»! Absorto nestes pensamentos e quando me preparava para sair, vi entrar na Mesquita um jovem com vinte e poucos anos, de jeans, t’shirt e ténis, de rosto impecavelmente barbeado, que me pareceu gémeo do meu filho mais novo. Só a pele era um pouco mais morena, por que de resto…

Resolvi meter conversa com o jovem muçulmano. Paquistanês, por sorte minha. Mostrei-me surpreendido por ele não ostentar fartas (“belíssimas”) barbas e fiquei a saber o que queria, no que diz respeito aos pêlos que se desenvolvem nas faces e nos queixos dos homens das “ásias” que professam o islamismo. Segundo ele, os paquistaneses andam normalmente de rosto pelado. Isso das barbas é mais coisa dos Judeus, dos Rabinos. Estes sim, é que são caracterizados por longas barbas. É verdade que há barbudos entre os muçulmanos, sobretudo entre os seguidores da Al-Qaeda que vêm espalhando o terror pelo Ocidente. Mas esses apenas confirmam a regra…

Enfim, quanto a pêlos estávamos conversados. Já no que respeita às roupas paquistanesas, o meu jovem companheiro falou-me dos hijabs (véus para cobrir a cabeça), das niqbas, vestes que cobrem as senhoras da cabeça aos pés, quase sempre de cor preta, e das indispensáveis abayas, brancas ou negras, que as mulheres têm de envergar quando saem à rua, quase sempre calçadas com vistosas sandálias. Mas nada disto tem a ver com os homens, porque estes vestem normalmente como qualquer comum cidadão do ocidente. Não foi assim no passado, mas, em pleno século XXI, raramente encontramos na Europa um paquistanês que se revele pelo seu vestuário.

O que é evidente e inegável, ao contrário do que sugere o enigma em apreço, é que não há pêlos ou vestes que distingam os paquistaneses que professam o islamismo de quaisquer outros muçulmanos, sejam eles da Ásia, da África, da Europa, da Oceânia ou da América. Em qualquer parte do Mundo há fiéis de Alá. O seu Profeta Maomé tem seguidores na Guiné, no Irão, no Senegal, em Marrocos, na Mauritânia, no Egipto, no Afeganistão... e até em Portugal. E ninguém pode determinar pelo aspecto de um qualquer muçulmano, sustentado principalmente nas barbas ou no vestuário, se ele é um “autêntico” paquistanês, iraquiano, afegão... ou português!

Na Mesquita foi possível ver alguns muçulmanos de longas vestes brancas. Mas poucos. Os outros passariam completamente despercebidos se nos cruzássemos com eles na rua. Apenas o olhar deles não mente. É sempre escuro, profundo, fugidio. Eles praticam as orações diárias com o máximo fervor. Ao entrar, descalçam os sapatos, alinham-nos junto da parede. Cumprem o ritual da lavagem, três vezes seguidas. Pés, mãos, cara, tudo tem de estar limpo. Para começar a oração têm de estar puros. Depois, sentam-se sobre os calcanhares virados para Meca, dobram-se sobre a cintura, prostrados com a fronte no chão, e entram, então, em oração (salat).

É verdade que o Paquistão, a par da Índia, do Irão e da Turquia, é um dos maiores países do Mundo produtores e exportadores de tapetes de lã, muito apreciados pela sua variedade e qualidade. É também verdade que os paquistaneses têm um particular apreço pelas suas tradições, mas não fazem o culto do seu “tapete” nas orações, professem eles o cristianismo, o islamismo ou qualquer outra Religião. E para os muçulmanos só existe Alá e o Profeta Maomé. Não há imagem ou qualquer outra matéria física, para além do Corão, que seja parte integrante da sua fé. Nas suas orações não se impõe o uso de vestes (no caso dos homens…) ou de tapetes!...

Bom… e os muçulmanos não rezam propriamente ajoelhados! Fazem-no sentados e voltados para Meca, para o Oriente – zona onde o Sol nasce. O que significa que o Sherif que orava na cela da Polícia Judiciária, em Lisboa, no enigma do casal A. Raposo & Lena, não era o mano Malik, criado no Paquistão com o seu papá. Tempicos viu-o em plena oração ajoelhado... e voltado para oeste, para poente. Era fim de tarde, e o Sol, que entrava pela janela, desenhava as grades desta no rosto do prisioneiro, quando ele estava em prece. Meca fica exactamente para o lado contrário. Aquele Sherif era um “farsante”: não entendia mesmo nada de islamismo!!!...

Outra coisa aprendi também naquela manhã: carne e álcool são elementos proibidos (haram), segundo a Religião islâmica! Um muçulmano não come qualquer tipo de sandes, muito em moda no “fast-food” importado das américas... só se forem vegetarianas! Se a sandes fôr mista, daquelas tipicamente portuguesas, com fiambre, então estaremos a falar de algo haram! O mesmo se pode dizer da cerveja, mesmo que esta seja daquelas que dizem ser… “sem álcool” (porque elas mentem: têm de facto uma apreciável percentagem de álcool!...). Um verdadeiro muçulmano não bebe cerveja. Bebe chá de hortelã, por exemplo... O Sherif preso na “Judite” é o Hermann!!!

O Malik estava em Frankfurt… com passaporte europeu, emitido em nome do gémeo criado na Alemanha. Aliás, não era muito prudente que qualquer dos manos se aventurasse numa viagem pelo ocidente na época, com documentação paquistanesa. Já tinha ocorrido o atentado às Torres Gémeas, em Nova Iorque (a “sociedade Sherif & Sherif” fora fundada no inicio do século XXI mas aquele “negócio” ocorrera há não muito tempo…). Nessa altura, qualquer “turista” paquistanês seria alvo de atenção especial, sempre com a polícia “à perna”, o que dificultaria o sucesso do trabalho programado para o Estabelecimento que viria a ser aliviado de uma fortuna em jóias.

No lugar onde havia jóias terão ficado algumas dedadas do mano Hermann, que se tinha feito prender propositadamente, nesse dia, por suspeita de um qualquer crime menor, com a identidade do gémeo muçulmano. As impressões digitais por aquele deixadas previamente em qualquer objecto estrategicamente abandonado no local do assalto em Frankfurt inculpariam, assim, um sujeito que gozava de um álibi poderoso: ele estava encarcerado na Polícia Judiciária, em Lisboa, agarrado ao Corão, a praticar as cinco orações diárias (ao nascer do sol, ao meio dia, ao meio da tarde, ao pôr do sol e à noite), ajoelhado num “tapete”, quando as jóias voaram da Ourivesaria alemã.

Este já tinha sido o método adoptado em assaltos anteriores, quando foram descobertos um alicate e uma chave de fendas que tinham exclusivamente as impressões digitais do mano Sherif que se encontrava detido por um qualquer pequeno delito. Nessas duas ocasiões, presumiu-se que o mano assaltante trabalhara vestido “como se estivesse numa sala de operações cirúrgicas”, o que explica o facto daqueles achados terem as dedadas de um sujeito encarcerado nas vésperas dos roubos: o assaltante tinha as mãos vestidas de luvas de látex (esterilizadas), matéria que não só evita que o seu portador deixe “marcas” no que toca como não deixa que “apague” nada onde mexa.

O telemóvel era, no entanto, a “grande arma secreta” dos Sherif’s. Eles sabiam que estavam sob escuta. Há muito que as polícias andavam “à coca” deles e as escutas telefónicas são o “pão nosso de cada dia”, tanto na Scoltand Yard como na Judiciária portuguesa. Os manos combinavam todos os crimes através do telemóvel exactamente para enganar, iludir, a polícia. Utilizando uma linguagem comum, normal, diziam o que queriam que a polícia soubesse. Ou seja, falavam claramente sobre o crime que um deles iria cometer, no meio de uma conversa que “escondia” o crime maior que o outro iria protagonizar na mesma data, mais ou menos à mesma hora, noutro local.

Foi por isso que, no dia que apanharam o falso Malik em Lisboa – enquanto o verdadeiro estava a “limpar” a Ourivesaria em Frankfurt –, ele já estava (mal)mascarado de muçulmano, de vestes “paquistanesas” e de barba a (des)condizer, de Corão debaixo do braço e… de tapete na mão! Foi dentro, como pretendia. Enquanto esteve engaiolado na Judiciária manteve a “palhaçada” do islamismo, como o alter-ego do Raposo teve ocasião de ver, assumindo-se como um escrupuloso cumpridor dos preceitos daquela Religião. «Alá é grande e Maomé o seu Profeta», disse ele quando pretendeu saudar Tempicos. Enganou-se. Devia ter dito: assalamu alaikum (a paz esteja consigo)!

«Alá é grande e Maomé o seu Profeta» não é uma saudação, mas sim uma das obrigações que quem professa o islamismo. Todos os islamitas devem prestar o testemunho (chahada) público que Alá é o único Deus e Maomé é o seu profeta; fazer a oração ritual (salat) cinco vezes ao dia, voltados para Meca e prostrados com a fronte por terra; dar a esmola legal (zakat) para a purificação das riquezas e a solidariedade entre os fiéis; fazer uma peregrinação (hadjdj) a Meca ao menos uma vez na vida (se não tiverem recursos, devem fazê-lo por meio de procurador); e jejuar do nascer ao pôr-do-sol, durante o nono mês do calendário muçulmano (ramadan).

A propósito desta coisa “dos comes e bebes”, gostaria de confessar que, a fazer fé no enunciado do enigma (“a visita de Tempicos à cela do mano Sherif, quando este orava a Alá, ocorreu não há muito tempo numa tarde de Agosto”), cheguei a pensar que aquele acontecimento podia ter tido lugar no nono mês do calendário islâmico (Ramadão) de um qualquer ano após 2001, o que, a confirmar-se, obrigaria o prisioneiro (se ele professasse o islamismo) a jejuar durante todo o dia, pelo que só poderia ingerir quaisquer alimentos pela noite dentro. E naquela altura ainda o sol entrava pela janela da sua cela!

Como já havia perdido o rasto do “gémeo” paquistanês do meu filho mais novo, socorri-me na Net e, depois de cerca de meia hora de pesquisa intensa, conclui que no calendário islâmico os meses não correspondem às estações do ano e que cada mês começa cerca de 11 dias mais cedo em cada ano solar. Apurei ainda que o primeiro dia do ano islâmico de 1423 começou ao pôr-do-sol do dia 15 de Março de 2002 do nosso calendário, pelo que não restam dúvidas: o ramadão (ramadan) nunca coincidiu com o mês de Agosto no século XXI. E assim sendo, dou por concluída a minha viagem ao mundo do Islão, despedindo-me de todos com o máximo respeito: assalamu alaikum!


SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 5

“O INSPECTOR FIDALGO E O MORTO EM FAMÍLIA”, de Inspector Fidalgo

O Jorge esteve envolvido numa situação estranha e complicada, naquele dia 24 de Março, precisamente quando a Primavera já dava os primeiros passos.
Tal como muita gente fazia naquela terra, a cerca de 50 quilómetros de Espanha, Jorge partiu bem cedo, para o “lado de lá”, onde o comércio permanecia aberto quase todo o dia, aos domingos, aguardando os portugueses e os seus euros.
Por volta das 21 horas, a polícia foi ao seu encontro, em casa, e levou-o para a esquadra, onde veio a encontrar o seu irmão João, para ambos serem interrogados sobre a morte do seu próprio pai.
Este fora agredido violentamente com um bastão, na futura cozinha da casa que andava a construir para si mesmo e que, nessa fase, pouco mais parecia que um esqueleto de casa.
No compartimento, de boa dimensão, nada mais foi encontrado para além do corpo caído e de um bastão ensanguentado, a alguma distância do corpo.
Os suspeitos, para todos, eram óbvios: os dois filhos da vítima, tal o tipo de relações existentes entre eles, por querelas antigas.
Jorge defendeu-se:
– Estive em Espanha todo o dia, com o meu amigo Alberto e a namorada dele, a Cila. Saímos por volta das 8 horas e por lá andámos nas compras. Tenho aqui as facturas e enchi o depósito do carro no último posto de abastecimento, antes de entrar em Portugal porque lá é muito mais barato. Está aqui o documento, às 17h12. À vinda para cá passámos por uma brigada de trânsito que estava a fazer controle de velocidade, mas como viemos sempre devagar, não tivemos problema.
João, o seu irmão, não ficou atrás:
– Estive quase todo o dia com amigos e só fui ver o meu pai porque no dia 19, Dia do Pai, não pude. Subi as escadas e ao chegar à cozinha vi o meu pai estendido no chão, com sangue na nuca. Ao tentar levantá-lo, sujei as mãos com sangue. Estava a segurar a cabeça do meu pai quando entraram os meus amigos. Lembro-me de ver, ao chegar, o carro do meu irmão, a fugir daqui. Era o carro dele, quase de certeza.
O casal que viajou com o Jorge corroborou a versão dada, o mesmo acontecendo com os amigos do João, que afirmaram que demoraram um pouco mais a subir as escadas e chegaram à cozinha um minuto depois do João, se tanto. Foram eles que telefonaram à polícia e esperaram pela ambulância e pelos agentes que os revistaram e passaram a pente fino toda a área envolvente.
A chamada foi registada às 17h25.
A Polícia confirmou que nesse dia à tarde houve, não uma mas sim três brigadas de trânsito a controlarem o excesso de velocidade e em nenhum dos postos foi detectada infracção pela viatura de Jorge.
Pelos interrogatórios confirmou-se que nenhum dos amigos dos dois irmãos teve intervenção no crime.
No bastão não havia qualquer marca de impressões digitais ou outra, para além da existente no local de embate no crânio da vítima onde havia sangue e cabelos dela.
No local não foi encontrado nada de significativo para o caso.
Mas também não era preciso, porque o Inspector Fidalgo já sabia quem tinha provocado o crime…
Caro detective, agora o caso está do seu lado. Releia bem o problema, procure quem está a meter “as mãos pelos pés”, quem não tem álibi ou quem está a mentir e mostre ao Inspector Fidalgo que ele não fez grande avaria quando decifrou este caso…


Solução de Inspector Boavida

Conheço muitíssimo bem o Alberto e a Cila, dois jovens transmontanos de “boa cepa” desde há muito enamorados e à beira do casório, amigos de infância dos irmãos J.J. (Jorge/João), e tenho-os na conta de pessoas de personalidade eticamente irrepreensível, muito humildes mas sinceros, pobres mas honestos, absolutamente incapazes de testemunhar falso em qualquer matéria por menos relevante que seja, quanto mais num assunto tão sério e grave como este que envolve o homicídio de um homem da terra, pai dos J.J.

Se os dois jovens namorados dizem que abalaram com o Jorge naquela manhã de 24 de Março, por volta das oito da manhã, para fazer compras nas vizinhas terras de Espanha, e se confirmam que regressaram ao fim da tarde à cidade natal, após o amigo ter atestado o carro na última bomba de gasolina espanhola antes de entrarem em asfalto português, tendo passado depois sem qualquer problema por uma brigada da GNR que fiscalizava o controle do tráfego automóvel, uma vez que vinham “nas calmas”, é porque é verdade com certeza!

Por outro lado, também sou muito bem capaz de colocar, sem qualquer receio, as mãos no fogo pelos amigos da terra que acompanharam o João na sua visita à casa que o pai estava a construir, quando o “encontrou” estendido no chão, com sangue na nuca, já morto. Conhecendo-os tão bem como eu os conheço, se eles afirmam que chegaram junto do cadáver cerca de um minuto depois do João, se confirmam que viram o amigo a segurar a cabeça do seu velhote e se admitem que avistaram o carro do Jorge, momentos antes, é porque é verdade com certeza!

Tenho a certeza absoluta que o casal amigo do Jorge não mente e que os amigos do João também não! Uns e outros são incapazes de faltar à verdade, o que é reconhecido por toda a gente da terra e não apenas por mim. Por isso, tem de haver qualquer explicação plausível para este estranho mistério. A fazer fé nos depoimentos dos amigos de ambos, à partida, nem o Jorge nem o João poderiam ser acusados de tirar a vida ao pai. Mas a verdade é que os únicos suspeitos do crime são exactamente os irmãos Jorge e João.

Ninguém tem dúvidas de que um dos J.J. terá sido o autor do homicídio, tal era o tipo de relação de ambos com o pai, fruto de quezílias antigas que minavam o relacionamento entre eles. Os dois foram ouvidos pela polícia no dia do crime, por volta das 21h00, e qualquer deles parecia ter álibis imbatíveis, inquestionáveis e inultrapassáveis, sustentados por testemunhos de pessoas puras, sem qualquer mácula: jovens da terra, demasiado honestos para encobrirem, ou branquearem, com mentiras, um crime tão horrendo!

O pai dos suspeitos do homicídio tinha sido bárbara e violentamente agredido na nuca com um bastão, que se encontrava um pouco afastado do cadáver, sem quaisquer impressões digitais ou outras marcas, para além da “mossa” existente no sítio que embateu no crânio da vítima, onde havia uma espécie de pasta de sangue e cabelos. Isto significa que o criminoso usou luvas quando agrediu o velhote à traição (?), ou limpou as suas impressões do bastão, atirando-o para distante do corpo antes de abandonar o local, convicto de que jamais seria descoberto.

Um crime com estes contornos não se comete com toda a certeza em breves minutos, e os amigos da terra que acompanharam o João garantiram que ele não esteve sozinho com o pai nem um minuto sequer. Por outro lado, se o velhote tivesse sido assassinado naquele momento (quando o João lá chegou), não é crível que o pai dos J.J. não gritasse a plenos pulmões por socorro (ou simplesmente por via da intensa dor sofrida pela pancada do bastão) ao ser atacado, e a verdade é que nada se ouviu a poucos metros de distância.

Os amigos do João trataram de telefonar para a polícia, enquanto este “segurava” a cabeça do seu velho pai. Eram exactamente 17h25, segundo foi confirmado pelas autoridades. Ao chegar, a polícia não se limitou a passar a “pente fino” a “cozinha” da casa em construção (local onde jazia a vítima) e toda a área envolvente. Tanto o João como os seus amigos foram revistados. Não se consta que algum deles tivesse em seu poder luvas… ou quaisquer outros objectos que pudessem levantar suspeitas de envolvimento no assassínio do velho.

O casalinho de namorados, Alberto e Cila, que acompanharam Jorge a Espanha, confirmaram todo o depoimento do amigo, até mesmo a hora em que este abasteceu o carro antes de entrar em Portugal, aquando do regresso: 17h12, como atesta o talão do pagamento do combustível. Nenhum deles mente! Mas… os dias começam uma hora mais cedo em terras espanholas. Ou seja, naquela altura, eram 16h12 em Portugal. E uma vez que o posto de gasolina dista (pouco?) mais de 50 Kms da terra onde vivem, sou levado a concluir que Jorge entrou no nosso país a tempo de matar o pai!

Não posso esquecer, porém, que Jorge veio sempre devagar. Assim, e admitindo que uma condução defensiva (para evitar ter a GNR “à perna”) se traduz numa velocidade média de 60/70 Kms/hora, intuo que ele terá chegado à sua terra natal por volta das 17h00/17h15. Se acrescentar que ele deixou o casal nas suas respectivas moradas ou na casa de um deles, considero provável que o carro do Jorge possa ter estado (ou passado) no local onde o pai andava a construir a nova casa, quase à mesma hora em que o seu irmão João lá chegou. Mas isso, por si só, não faz dele um assassino.

João diz que, ao chegar, avistou o carro do seu irmão Jorge a fugir do local. Mas como é que os seus olhos distinguem um carro que foge, de um carro que simplesmente transita? Será que um carro que circula depressa significa que foge? Será a pressa sinónimo de fuga? Quando João (diz que) viu o irmão a “fugir” ainda não tinha alegadamente conhecimento do assassinato do pai. Não faz sentido, portanto, que ele associe, nesse momento, uma suposta velocidade excessiva do automóvel a um fuga do irmão. Ele fugiria de quê?...

E por que foi João visitar o pai àquela hora da tarde (inicio de noite) numa moradia em construção, que não passava ainda de uma espécie de esqueleto de casa? Era domingo, dia 24 de Março, ainda vigorava a hora de Inverno. A mudança para hora de Verão acontece na madrugada do último domingo de Março de cada ano e o dia 24 não pode ser nunca o derradeiro domingo do mês em que nasce a Primavera, porque ele tem trinta e um dias. Ou seja: se 24 + 7 são 31, logo... Enfim, é só fazer as contas, como diria o engenheiro Guterres!…

Uma casa ainda em esqueleto não é crível que seja servida de electricidade, como também é pouco provável (embora não impossível…) que os “construtores de casas” trabalhem aos domingos. Acresce que na divisão da casa onde o corpo jazia e na zona envolvente “não foi encontrado nada de significativo para o caso”, para além do bastão (pedaços de argamassa “fresca” ou rebocos recentes, seriam sinais de trabalhos realizados nesse dia, que constituiriam objectos relevantes para a investigação… – portanto, nada disto por lá havia).

Por outro lado, numa casa em construção, cheia de pó, com restos de areia e cimento, seria fácil de identificar as pegadas de quem por lá andou nesse dia. Deste modo, se “não foi encontrado nada de significativo para o caso”, concluo que não havia pegadas de mais ninguém a não ser morto, do João e dos seus amigos. Se Jorge lá tivesse estado “de fugida” (depois de ter chegado de Espanha), as marcas dos seus passos estariam lá registadas – facto que não passaria despercebido à polícia, que passou o local a “pente fino”! E uma poça de sangue junto à cabeça do velhote, existia?...

João chegou junto do cadáver, antes dos amigos. Diz que viu sangue na nuca do pai. Ora, se estava escuro, como é que ele teria distinguido o sangue? Quanto muito, poderia ter “visto” a cabeça do progenitor “molhada”... E ele não fez referência a nenhuma “poça de sangue” junto à cabeça da vítima (não havia?...). Seria mais fácil distinguir no escuro uma “poça” no chão do que uma cabeça molhada. E, curiosamente, não emitiu qualquer grito de espanto ou aflição quando percebeu que o seu pai estava caído no chão. Nada, nem um gemido!

João diz que levantou o pai quando o viu caído, e que foi aí que se sujou de sangue (os amigos encontraram-no a segurar a cabeça do velho). Ninguém ergue um homem puxando-o pela cabeça! Terá João segurado na cabeça da vítima apenas com o propósito de sujar as suas mãos de sangue?! Será que ele sabia que se fosse submetido a testes laboratoriais, detectar-se-ia nas suas mãos vestígios de sangue mesmo que não tivesse tocado na cabeça do pai?! E levou os amigos com ele porquê? Será que os amigos foram perversamente utilizados por João como seu “álibi”?!...

Pergunto-me também o que estaria ali a fazer o pai dos J.J, àquela hora, já depois da noite chegar? Isto, partindo da premissa de que o seu assassino o atacou com o bastão entre as 17h15 e as 17h25 (hora de Inverno!...). Mas não. Como já conclui que, face aos contornos do crime, qualquer um dos dois únicos suspeitos (Jorge e João!) não teve tempo para praticar o assassinato naquele espaço de tempo, tudo terá acontecido muito mais cedo… quando um dos filhos estava a sós com o pai na sua “casa em construção” e o sol ainda não se tinha posto!

Tudo indica que o velho terá sido morto à traição (ou quando voltou as costas ao criminoso para se pôr em fuga), uma vez que a parte da cabeça atingida foi a nuca. E será que o crime foi cometido no sítio onde o corpo se encontrava quando se chamou a polícia? Se não havia qualquer poça de sangue no chão da “futura cozinha” do pai dos J.J., decerto que a violência exercida sobre ele teve lugar em qualquer outro local não determinado. Será que o velho foi assassinado noutro sítio e o seu corpo foi transportado mais tarde para ao “esqueleto de cozinha”, juntamente com o bastão?!...

Pergunta o Inspector Fidalgo: Quem meteu os pés pelas mãos? Responde o Inspector Boavida: João meteu as mãos pelos pés, e pela cabeça... do pai; Pergunta o Inspector Fidalgo: Quem não tem álibi? Responde o Inspector Boavida: Jorge esteve todo o dia com o seu casal amigo, e atesta a sua presença em Espanha com diversas facturas de compras efectuadas naquele país – ele tem álibis (muitos); pelo contrário, João esteve apenas “quase todo o dia” com amigos, o que significa ter havido momentos em que não esteve acompanhado – nessa altura ele não tem álibi!...

Pergunta o Inspector Fidalgo: Quem é que está a mentir? Responde o Inspector Boavida: João é o irmão que mente, claro! O assassino é ele!!!


SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 6

“UM MORTO NA MADRUGADA”, de Daniel Falcão


As reuniões promovidas pela Comissão Coordenadora do Torneio “Sete de Espadas” ocorriam, periodicamente, com o intuito de analisar e classificar as soluções apresentadas pelos concorrentes. Tarefa árdua esta, pois não é fácil classificar o resultado de uma investigação, quando em muitos casos os concorrentes lhe dedicam várias horas ou mesmo dias! Por mais rigorosos que procuremos ser, haverá sempre um ou outro aspecto que poderia ser melhorado. Contudo, estamos certos que os concorrentes, na sua larga maioria, percebem que damos o nosso melhor para que esta “competição” decorra da forma mais correcta e mais objectiva possível. Ademais, o homenageado, decano do policiário em Portugal, é merecedor deste esforço.
Mas, desta vez, o motivo da reunião era bem diferente. A quinta prova deste torneio de homenagem seria divulgada dali a dois dias e a prova que o iria fechar, mais um delicioso conto-enigma desse outro vulto do panorama policiário português que assina M. Constantino, já estava preparadíssima. Pelo meio, faltava-nos uma produção que deveria corresponder à penúltima prova. Confrontados com o facto de alguns dos convites, para a apresentação de uma produção ao torneio, não terem surtido qualquer efeito, deparamo-nos na contingência de ter de fazer qualquer coisa para obviar esta situação.
O Nove alegou, imediatamente, que já tinha cumprido a parte dele e que não se justificava produzir um segundo enigma. Concordância imediata! Eu encolhi os ombros, como querendo dizer: “Se tiver de ser! Será!”
Quatro olhos se voltaram na direcção do Zé-Viseu. “Bem! Não estou com muita vontade de redigir um enigma”, começou ele por dizer. “Mesmo assim, no passado fim-de-semana vi-me confrontado com uma situação “sui generis” que, se for devidamente trabalhada, pode vir a ser de alguma utilidade.” Os tais quatro olhos voltaram-se, primeiro, dois a dois, numa outra direcção, embora em sentidos opostos, e depois novamente na mesma direcção anterior e declararam a sua anuência.
“Pois bem! Aqui vai a minha curta história. Tudo aconteceu na madrugada de domingo. Estivera em casa de um amigo e dirigia-me no meu automóvel para minha casa. Conduzindo a uma velocidade controlada, como é meu hábito, acabara de escutar as notícias na rádio. ‘Passam dez minutos da uma hora da manhã’, acabara de dizer o locutor, quando observei três pessoas à face da estrada: duas em pé e a terceira caída no chão. Encostei o automóvel na berma, saí e dirigi-me ao local.
“‘O que se passa? Precisam de ajuda?’, perguntei. A resposta veio pronta, da boca de um dos homens que estava em pé: ‘Não! Está tudo sobre controlo. Pode seguir viagem…’
“Não satisfeito com aquela resposta, insisti: ‘Mas o homem está a sangrar abundantemente… Quem são vocês? O que aconteceu?’
“Os dois homens entreolharam-se e um deles, o que até ali estivera calado, veio com a seguinte explicação: ‘Eu posso explicar, muito rapidamente, o que foi que aqui aconteceu. Nós somos da polícia e como nos chegou a informação de que este homem…’, e apontou o corpo que estava no chão, ‘…andava por aqui, viemos proceder à sua detenção. Temos aqui o respectivo mandato de prisão, como pode ver…’ E mostrou-me uma folha, que retirou do bolso do casaco, mas da qual não consegui ler qualquer linha.
“Olhei para o corpo, deitado de bruços, mais exactamente para a sua nuca calva, onde vi um ferimento de bala muito pouco agradável de se ver. Continuando a observar o corpo, estava com a face direita encostada ao alcatrão da estrada e a face esquerda voltada para cima, contornei-o e reparei que na testa podia ser observado um orifício perfeitamente arredondado, em torno do qual era visível uma auréola escura. A vítima tinha, na sua mão esquerda, um revólver.
“O homem que me dera a explicação anterior voltou a dirigir-se a mim e disse, desta vez: ‘Quando nos estávamos a aproximar, avisámos que éramos da polícia. O homem assustou-se, sacou a arma, disparou um tiro na nossa direcção, por sorte não acertou em nenhum de nós, e desatou a correr. O meu colega sacou, por sua vez, da sua arma e disparou para as pernas enquanto ele fugia. Por azar, acertou-lhe em cheio.’
“Sem me afastar do corpo, voltei o meu olhar para o homem que se dirigira a mim inicialmente e, ao mexer os pés, senti qualquer coisa. Olhei para o chão e reparei que se tratava de uma cápsula. ‘Bem, se não precisam de nada, vou andando…’
“Dirigi-me ao meu automóvel, entrei, arranquei, afastei-me rapidamente e fiz o que vocês estão a imaginar…”
Logo que o Zé-Viseu terminou a sua narrativa, o Nove rindo atirou: “Mas que história tão mal engendrada! Queres fazer-nos crer que te deixariam sair dali nas calmas, depois do que viste?”
Eu sorri e perguntei: “Acham que os nossos detectives serão capazes de salientar todos os pormenores inconsistentes que estão presentes nesta história?”


Solução de Inspector Boavida

From: Cajó Lagosta
To: Inspector Boavida
Cc:
Sent: Friday, April 30, 2007 2:53 PM
Subject: A Morte de Chico Bostas


Caro Inspector Boavida
Serve o presente para lhe pedir o favor de dizer ao seu amigo Zé de Viseu que fique quieto e caladinho sobre tudo o que viu e sabe dos acontecimentos ocorridos na madrugada em que eu e o Tó Camarão mandámos o Chico Bostas de mansinho para as alminhas, se não quer também ele acordar deitadinho numa qualquer nuvem junto dos anjinhos protegidos por São Pedro. Daquela vez escapou de levar com um balázio na cachola, atendendo ao facto de ser seu amigo, mas se ele continuar a falar sobre o assunto corre o sério risco de ser trespassado de uma catrefa de balas.

Nós percebemos muito bem que ele topou logo que não éramos da polícia. Eu ainda o tentei despachar dali para fora, dizendo que estava tudo bem, que ele podia seguir viagem. Mas bastou que eu tropeçasse no português com um “está tudo sobre controlo”, em vez de “está tudo sob controlo”, para que o seu amigo de Viseu, que foi ou é, não sei bem, professor de português, para que eu ficasse, aos seus olhos, sob a máxima desconfiança. Em principio, um chui sabe que nada está sobre, mas sim sob controlo, a não ser que seja um grande analfabruto.



Bastou depois que o Tó Camarão dissesse que nós dispúnhamos de um mandato de prisão, coisa que não existe (existe sim, mandado de captura, não é?), para o seu amigo Zé de Viseu confirmar que não estava de facto perante dois polícias. O Tó Camarão ainda lhe mostrou uma folha de papel qualquer que tinha na altura num dos bolsos do casaco, do qual ele não conseguiu obviamente ler uma única linha porque estava escuro (era uma e tal da madrugada, como sabe!), mas de nada valeu a pena. A partir daí, a situação deixou de estar sob nosso controlo.

O homem de Viseu estava tão desconfiado com o caso que nada o faria arredar pé do local. Ele vira o Chico Bostas estendido no chão, deitado de bruços, com a face direita encostada no asfalto e uma ferida muito feia na nuca. Ainda por cima a testa do Bostas apresentava um orifício redondinho, em torno do qual havia uma auréola escura. De nada valeu o Tó dizer que o sujeito ali estendido andava fugido à justiça e que quando o avistámos e nos anunciámos como autoridade ele disparou sobre nós e fugiu. Só então disparámos sobre ele… para as pernas – assegurou o Camarão!

O seu amigo Zé não tinha dúvidas de que a nossa história estava mal contada. Ele sabia que o Bostas não podia ter sido atingido quando fugia, uma vez que a bala lhe entrara pela testa (por isso, o furo redondinho) e saíra pela nuca (por isso, a ferida feia). Se ele estivesse a fugir no momento do disparo, estaria de costas para o atirador, pelo que a bala entraria pela nuca e nunca pela testa! Ainda por cima, a auréola escura em redor do buraquinho redondinho denunciava que o tiro teria sido desferido com a arma encostada à testa… e há pouco tempo, porque o Bostas ainda sangrava abundantemente.

E quanto à bala por nós disparada para as pernas do Bostas, enfim, só dá mesmo para rir. Embora muitas vezes os polícias à séria digam isso, depois de acertarem em cheio no peito ou na cabeça cá do pessoal como a gente! É claro que o seu amigo Zé não engoliu nada daquilo que o Tó Camarão lhe disse. E ainda para mais, para cúmulo do nosso azar, o seu amigo de Viseu deu conta de que se encontrava uma cápsula de bala junto ao cadáver do Bostas, o que lhe reforçou a convicção, a certeza, de que o tiro fora disparado ali, no local onde a vítima jazia, e não de longe, quando fugia!

Poderia alegar-se que o Bostas se tinha suicidado, mas não. O seu amigo não iria acreditar em tal coisa. Em primeiro lugar, porque mentimos ao dizer que disparámos sobre ele quando fugia. Em segundo lugar, porque uma pessoa que dispare sobre si própria não o faz no meio da testa, fá-lo numa das têmperas (ou na boca). No caso do Bostas, seria na têmpera esquerda, uma vez que era canhoto (mas não é por isso que ele tinha a arma na sua mão esquerda!). Por último, porque se o Bostas se tivesse suicidado, o seu corpo não cairia de bruços, mas sim de costas, como me parece óbvio.

O Tó Camarão não deu conta, mas eu reparei muito bem no sorriso maroto e gozão do seu amigo Zé de Viseu ao olhar para a mão esquerda do Bostas a segurar a pistola. De facto, nem o mais distraído (e ingénuo) dos mortais teria acreditado que um homem atingido mortalmente por um tiro, desferido pelo próprio ou por outrem (pouco importa...), cairia por terra mantendo na mão uma arma ou qualquer outro objecto com algum peso. Depois de levar com um balázio em cheio na testa, a vitima cai redondinha no chão e larga tudo o que tem em mãos (pistolas... trabalhos ou sonhos!).

É claro que fomos nós, eu e o Camarão, que pusemos a arma na mão do Bostas para simular o suicídio. Já estávamos prontos para dar o fora quando o seu amigo Zé se meteu no nosso caminho. A minha vontade foi despachá-lo como fizemos com o Chico Bostas, mas por respeito à nossa velha amizade, caro Boavida, aguentei o paleio e a curiosidade temerária do homem de Viseu. O Tó Camarão ainda esboçou o gesto de puxar da fusca que tinha com ele, mas eu fiz-lhe um discreto sinal para se acalmar e a coisa não deu para o torto.

Assim que se meteu no carro o Zé de Viseu já ia com as mãos no telemóvel, pronto a telefonar para a polícia. Outra coisa não seria de esperar, não é? É claro que nos pusemos logo ao fresco e quando a bófia chegou já nós estávamos a milhas. No outro dia lemos a notícia: «Cidadão viseense denuncia homicídio. A Judiciária desconfia de um ajuste de contas. No local do crime havia um incrível e nauseabundo cheiro a bosta e a marisco». O Tó Camarão quase desfaleceu de riso, gritando: «Ó Lagosta, passa aí uma cervejola, que estes jornais fazem-me cá uma sede!».

Depois desse belo domingo, temos andado por aí, completamente à vontade, sem preocupações de maior, a fazer uns pequenos servicinhos pouco rentáveis que mal dão para umas bijecas e uns tremoços. O caso da morte do Bostas já estava há muito esquecido e decerto que jamais viria à baila, não fosse agora o seu amigo Zé trazer o assunto para a internet, o que pode colocar em causa a nossa liberdade. Portanto, avise lá o seu amiguinho para parar com a coisa, porque, caso contrário, um dia destes recebe uma visita minha... nada agradável, acredite!!!

Aceite um forte abraço deste seu amigo,
Cajó Lagosta


SEPTIMESTRE “SETE DE ESPADAS”
TORNEIO “SETE DE ESPADAS”
PROVA Nº. 7

“O LADRÃO GENEROSO E O HOMICÍDIO IMPOSSÍVEL”, de M. Constantino

O “avozinho” de barbas brancas, onde se destacam uns óculos cujos vidros teimam em embaciar-se, corpo frágil, meio curvado, que dá pelo nome de “Sete de Espadas” – 99% dos amigos e admiradores desconhecem Manuel José Tharuga Lattas – é um vulto grande no policiarismo. Sim, grande, porque os homens não se medem pela estatura, tão só pela estrutura…
Pioneiro da investigação policiária nacional, apadrinhou uma vasta gama de adeptos que iniciou e relançou na arte do raciocínio e da lógica, tendo criado sólidas e duradouras amizades!
Inteligente e humilde, teimoso (somente um pouquito…), capaz de se entregar, de alma e pecuniariamente, ao que acredita, é bem um símbolo para uma certa juventude que se tornou adulta.
Mas peçam-lhe memórias, um recorte, um relatório – está sempre num caixote, disperso entre caixotes, ainda por abrir! Duvida-se que a luz da publicidade veja tal conteúdo, sem passar por cima do seu cadáver (evento em ralação o que, aspiramos, aconteça ainda tarde, muito tarde). De resto, excluímos os defendidos segredos …

I

Num apelo à mente, recuamos, velozmente, no tempo, até ao ano de 1967.
Dois dias antes do início do Verão, a polícia foi alertada para um assalto nocturno a uma instituição bancária. Uma série de dois assaltos, no decorrer, aproximadamente, de um mês (ainda que o primeiro houvesse sido classificado de acção política), que, de comum, só tinham o desaparecimento das notas; se bem que, neste último, de menor valor – ainda assim, elevado para a época. Uma anormalidade e um desafio às polícias…
O gerente, o primeiro funcionário a chegar, encontrou a porta da rua aberta. Estranhou!
Dirigiu-se ao reservado do guarda-nocturno e achou-o adormecido sobre a mesa. Não despertou, aos gritos e sacudidelas. Em desespero, deparou com a casa-forte arrombada e desprovida da maior parte dos seus valores.
Coube ao Sete, por disponibilidade duvidosa ou mais-valia reconhecida, avançar para o teatro das operações, com um grupo de investigadores e técnicos. Meticuloso, incansável e intuitivo, à medida em que ia vendo e ouvindo, preenchia e encaixava as peças do puzzle:
O roubo ascendia a 5000 contos, em notas de 1000 escudos – desprezara-se as de menor valor – recebidas na véspera; o funcionário encarregado da contagem, que devia preencher um boletim com o número das notas, não o fizera e era o único dos empregados que não comparecera ao serviço; a entrada no estabelecimento de crédito dera-se através de um túnel aberto desde o prédio vizinho, arrendado por uma empresa que iniciara obras e as abandonara, entretanto; o sistema de alarme foi anulado por uma cobertura de chumbo idêntica ao sensor e só poderia ter sido desactivado durante o funcionamento do banco; uma botija de oxigénio, munida de regulador e manómetro, fazia admitir a utilização de uma lança térmica, se bem que acreditasse no uso de um potente maçarico de oxigénio ou oxiacetilénico, bem aplicado ao local certo, que rebentou com o sofisticado fecho da casa-forte; o guarda-nocturno fora drogado com o café da garrafa-termo que levara para se manter acordado, sendo evidente que quanto mais sono tinha mais bebia, a ponto de requerer cuidados médicos; o empregado ausente, J. Soares, servira-se de um copo do mesmo café.
Deste conjunto de factores, concluíra haver um cúmplice, um empregado ligado aos assaltantes. J. Soares era a hipótese provável.
Quando uma dupla de agentes arrancou Soares da cama, o homem estava em farrapos – suava, chorava, reclamava-se inocente; quando, porém, entrou na sala de interrogatórios, “extinguiu-se”… confessou e denunciou:
Confessou estar implicado na preparação e roubo; denunciou Tó Dores, Januário Oliva, Damião e Juan Espanhol.
Depois que saíram, levando o dinheiro num saco de plástico reforçado, deixaram o Dores no “Banco do Poeta”, atrás do qual seria enterrado o dinheiro, num buraco já aberto e disfarçado. O Banco do Poeta era uma rocha volumosa, como que caída do céu em local errado, com a particularidade de conter uma concavidade que se oferecia como uma poltrona, inserida no parque que estava a ser plantado de filas de árvores (tílias) – seis ou sete já completas – para evitar o estacionamento de veículos. Começou o cerco…
Na busca ao parque, meticulosa em extremo, não foi encontrado o dinheiro.
O "Limpeza", ao contrário dos comparsas que não deixaram rasto, estava sossegadamente a fazer o almoço. Tinha um riso fácil, contrastando com o olhar, agudo e frio como o aço. Não se revoltou; limitou-se a negar, negação que manteve durante muitos dias de interrogatório. Depois, o laboratório deu o veredicto: entre as dedadas várias dos empregados, um fragmento de impressão digital no cofre, resultante (naturalmente) de descosimento da luva, revelava, depois de aturado estudo da grandeza e configuração dos poros das glândulas sudoríparas, a presença de António Dores. Ameaças, promessas, armadilhas, nada demoveu o homem sobre a actuação no assalto e local onde escondera o dinheiro. Julgado, sem necessidade do testemunho de Soares (suicidou-se, na cela, ao terceiro dia), foi condenado a cinco anos e cinco meses de prisão.

II

Cumprida a pena, quem saiu a porta da liberdade era um fantasma pálido, angustiado, que pouco tinha a ver com o homem de riso fácil, que já não existia, de olhar de aço, que perdera no interior de alguma cela. Restava-lhe o inamovível segredo: provocações, pancadas que o atiraram para a enfermaria, ameaças de morte dos companheiros de cativeiro… nada lhe abriu a boca!
Transpôs a porta, com um pensamento – “nunca mais”! Esperava-o alguém, delgado e pálido como ele. Um embrulho passou de mãos – uma arma e numerosas munições – sem se olharem, num murmúrio – “eles vieram… vigiam-te”. Caminhou até ao táxi que o esperava e levou até ao parque. Passou junto ao local onde guardara o dinheiro, sem estremecer, e foi sentar-se no “Banco dos Poetas”. As árvores plantadas outrora haviam crescido pouco, observou, mas legitimavam o seu destino – impedir o estacionamento. Um momento depois, entrou no bulício da cidade, à procura de pousada conveniente.
Passaram-se alguns dias. Em passo curto, o Sete parecia distraído, como sempre. Subitamente, capta o rosto de alguém, que reconhece negativamente. Memória… memória… ajuda-me! E a memória ajudou – “Mas é o Limpeza! E vai desconfiado, com a breca!” Pára diante de uma montra, sem ver a mercadoria. Através do reflexo do vidro, descortinou, vagamente, um homem de boné, do outro lado da rua, olhos fixos na figura do Dores. Este pára. Faz como quem esqueceu algo; hesita em voltar para trás e deixa-se ultrapassar pelo homem do outro lado do passeio. Na rua estreita do desgastado bairro (ninguém desconfiará da possível coincidência de interesses) são os únicos viventes visíveis. Um carro ao fundo da rua, na esquina; uns miúdos, a brincar aos cowboys (Pum! Pum!), que atravessam, em correria; e os três homens que parecem ignorar-se: o homem do boné, o Dores e o Sete.
O investigador serve-se do passeio para atar um sapato. Quando levanta os olhos, já não vê o desconhecido. Descortina-o, saindo do local para onde o Dores se dirige; este parece cambaleante, quando sobe o passeio. O Sete apressa o passo, a tempo de o ver entrar num recinto aberto, abrir a porta à esquerda, entrar e fechar a mesma à chave; do passeio contrário, ouviu, nitidamente, o correr do trinco e o cair de uma tranca.
Segue-se o silêncio e, segundos depois (não pode avaliar quantos), quando a curiosidade o faz atravessar a rua para apontar o número da porta, dois acontecimentos quase simultâneos se sucedem – ouve-se um tiro por detrás da porta onde Dores entrou; o carro à esquina arranca, ruidosamente e em velocidade! Não há vestígios do homem do boné…
A casa é um antigo armazém de exposições, com um corredor sempre aberto, três portas e três janelas; porém, a do antigo assaltante tem um gradeamento externo e uma rede metálica interior, ao contrário das outras, que têm vidros. Bate na porta, chama e tenta mesmo forçá-la, quando vê que não adiantam, naquele tipo de fechadura, as gazuas. Entretanto, da porta à direita, saiu um idoso com cara de doente: – “estava deitado, não me sinto bem… ouvi o tiro, ainda bati na parede, mas não ouvi mais nada”. Homem estranho este (pensa o Sete); aluga o quarto, recusa contactos e tem passado o tempo a mudar fechaduras e a pôr trancas…
Os miúdos que brincavam aos cowboys, atraídos sabe-se lá porquê, haviam-se aproximado. Pede a um deles para chamar um polícia. Ao idoso solicitou um banco, para tentar ver, através da bandeira estreita da porta. O polícia chegou, meio desfardado. Estava de folga e morava perto – o miúdo sabia que vivia ali um polícia e não hesitou em ir chamá-lo a casa, sem cuidar de horas de serviço e coisas parecidas. Mais alto do que o Sete, o polícia subiu ao banco solicitado. Espreitou e só viu as pernas de um homem caído; mais nada nem ninguém. Enrolou um lenço à mão e bateu com uma pedra, que foi buscar. Partiu o vidro e, com esforço, conseguiu tirar a bandeira. Nem assim viu mais, pois a abertura não dava para meter a cabeça. Foi então que um dos garotos se ofereceu – “eu entro por aí, se me elevarem, e abro a porta!”
– Espera, diz o Sete. Não tens medo? Pode haver um homem ferido ou morto; és capaz?
– Claro, respondeu resolutamente. Sou o xerife do bairro! Olhou para o polícia, que fez um sinal afirmativo e pegou no rapaz pelas pernas, elevando-o. Ele encolheu-se, rolou pela abertura e deixou-se cair de pé, do outro lado.
–Tou cá! Uns momentos depois, ouviu-se bater na tranca, que foi tirada, a chave rodar e a porta abrir-se. O rapaz, muito pálido, com as mãos agarradas à barriga, saiu e escapou-se para a rua. O polícia sorriu para o Sete – vai aliviar a barriga…
O Sete espreitou, cuidadosamente, impedindo o polícia de entrar – o “Limpeza” terminara a carreira; estava morto, com um tiro na cabeça! Limitou-se a confirmar a morte e pediu ao polícia para ir comunicar ao comando, solicitando, em seu nome, uma brigada da P.J. – investigadores, técnicos e médico legista. Enquanto aguardava – depois de saber que o doente vivia só e que o vizinho do lado esquerdo estava de férias na aldeia, antes de a vítima arrendar o quarto – mandou o idoso para casa. O polícia perdia a folga e ficou à porta externa, com ordens para afastar curiosos.
Sete calçou as luvas de látex e voltou a entrar, observando cuidadosamente – a porta, além da fechadura rara, era reforçada por uma tranca de aço entre dois grampos, dispositivo que segurava, também, as duas meias janelas de madeira, para além da rede e gradeamento que vira no exterior. Deu voltas, a procurar a arma, que não encontrou. A “coisa” cheirava-lhe a esturro! Abriu a porta da casa de banho, único compartimento do quarto, com a chave que estava na fechadura. Não tendo encontrado nada, perguntou-se por que estava a porta fechada à chave, concluindo, contudo, que o trinco não segurava a porta…
Sentia-se desorientado! A vítima recebeu um tiro na cabeça, no interior do quarto; não fora ferido no exterior, tinha a certeza, pois não se encontrava ninguém no recinto; também não havia arma à vista. Foi buscar a pedra e bateu toda a parede e o solo, no sentido de encontrar um alçapão ou passagem secreta, já que excluía uma saída pela porta ou janela. Excluídas as hipóteses, viu-se a procurar uma qualquer máquina-armadilha que disparasse sobre o homem, um engenhoso truque mágico para fazer desaparecer a arma, depois de disparada, ainda que isso lhe parecesse um autêntico disparate!
Nesta expectativa, o Sete apostava num homicídio impossível e punha em causa todas as técnicas, de Poe ao presente, já que punha de parte um suicídio, também impossível dada a ausência da arma. A não ser que o homem a tivesse engolido depois de morto ou… desse um tiro na cabeça, simplesmente apontando um dedo!!!
Tem de haver uma explicação, cogitava. Mesmo um artista do crime jamais se poderia requintar na perfeição da sua melhor obra de arte! E ao Sete, que, na sua longa vida, sempre fora o investigador triunfante, depara-se um mundo diabólico de incertezas… o espírito lógico e a clareza de raciocínio parecem meras palavras sem sentido!
Meia hora depois, chegam dois agentes da Judiciária, um perito e, quase milagre!, o médico legista. Fotografias, esquemas, medições de todos os ângulos, impressões digitais, vestígios e exame feito pelo médico, que não se pronunciou.
No levantamento do corpo, surge, debaixo, uma bola de papel, que se verificou ser A4 dactilografada, sem assinatura, com o seguinte texto: “O dinheiro em não vais gastá-lo cá. Adeus, traidor; chegou o momento de te consumires no inferno”. Uma frase que os jornais reproduziram e comentaram fortemente. Mas foram precisos quase dois dias para chegarem os principais resultados.
O Sete foi chamado à morgue, para lhe mostrarem, antes do golpe em Y, o tosco desenho, dir-se-ia tatuado pelo próprio, de um círculo envolvendo a , que calculavam fosse uma mensagem. O legista acrescentou: a arma não estava no corpo; apesar do seu desaparecimento, voto pelo suicídio: um tiro disparado a uma distância, provável, de 10 a 15 centímetros, a bala entrou um pouco acima do ouvido, destruiu a parte inferior do lobo parietal direito e foi alojar-se no parietal esquerdo. O Laboratório identificou-a como calibre 7,65, sem historial. Encontramos partículas de pólvora incombusta misturada com sangue, bem assim na mão direita – elemento crucial a indicar suicídio – ainda que se saiba que o homem praticava, com frequência, tiro e podia tê-lo feito no próprio dia. Esta é a verdade?
– Suicídio? Mas… como? Verdade?
Para o Sete existem três verdades: uma que é a verdade nua e crua; outra a verdade como parece; ainda outra a verdade de cada um…
O dia estava repleto de surpresas. Quando chegou à Central, esperava-o uma carta anónima, na qual o correspondente dizia que, na madrugada do roubo do banco, chegou cedo ao seu local de trabalho – era um dos plantadores das árvores – e viu um homem a esconder um saco. Quando o homem se foi, desenterrou-o e viu o dinheiro, que foi pôr a casa. Pelos jornais, soube da prisão e, durante os cinco anos, pelo Natal, enviava um donativo de mil contos a uma Instituição de Caridade (podia ver, nos jornais, os agradecimentos). Não gastou um tostão em seu proveito, ainda que passasse necessidades.
E esta? O Sete estava siderado: um ladrão generoso (à força, é certo) e um homicídio impossível. O convencimento dominava-o, quando saiu do Laboratório. Comunicaram-lhe, ainda, que a P.S.P. tinha encontrado uma montra, do bairro onde se dera o caso, partida com um tiro, disparado de muito perto. Não roubaram nada, mas a bala foi disparada pela mesma arma que matou Tó Dores.
Tomou uma decisão. Animou-se. Foi ao parque só para espreitar o sítio onde, tinha a certeza, fora enterrado o dinheiro. Depois, iria procurar o polícia que o ajudara a abrir a porta do morto, para lhe pedir colaboração noutra diligência. A seguir, estava seguro, daria o caso como resolvido… Afinal, o Sete é sempre o Sete!!!

Quais as conclusões do leitor? Não se esqueça de colocar todas as peças do puzzle.


Solução de Inspector Boavida

Na manhã do dia 20 de Junho de 1967, as principais figuras da polícia política de Salazar, desde Silva Pais a Barbiere Cardoso e Pereira de Carvalho, entraram em estado de pânico. Até o próprio ministro do Interior, que se deslocara propositadamente à sede da PIDE, não conseguia esconder o seu pavor. O presidente do Conselho já andava aos gritos com a criada Maria, que não sabia o que fazer para o acalmar. Na verdade todo o regime tremia de medo. E tudo isto porque na noite anterior tinha sido assaltado outro banco, pouco mais de um mês depois da Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR) ter surripiado vinte e nove mil contos da filial do Banco de Portugal na Figueira da Foz.

Há quem sustente que a causa da queda de Salazar da sua cadeira de descanso, no ano seguinte, se deve em parte ao terrível trauma sofrido naquela manhã de Junho. O regime estava decadente e qualquer sinal de rebelião ou revolta fazia abanar os seus alicerces. Mas, neste caso, não havia razão para tal. O assalto desta feita nada tinha a ver com a LUAR nem com os seus operacionais da Figueira da Foz. Palma Inácio, Camilo Mortágua, António Barracosa e Luís Benvindo já há muito que estavam em França. Os protagonistas eram outros e nada os ligava às forças de resistência ao fascismo. Chamavam-se Tó Dores, Januário Oliva, Damião e Juan Espanhol… e não tinham quaisquer ambições políticas!

Os quatro larápios não “trabalharam” sozinhos. O golpe foi planeado e executado com a cumplicidade de um funcionário da própria instituição bancária, um tal J. Soares (atenção: o apelido não tem qualquer relação com o velho Marocas e o J não é do filho deste…). Durante o dia, em pleno funcionamento do banco, o empregado anulara o sistema de alarme com uma cobertura de chumbo idêntica ao sensor, ao mesmo tempo que os “profissionais” do crime acabavam de abrir um túnel de acesso desde um prédio contíguo, escavado desde o fim-de-semana anterior. À noite, antes do arrombamento do cofre, o J. Soares fizera adormecer o guarda-nocturno que prestava serviço no banco, colocando um forte soporífero no termo de café do vigilante.

J. Soares fez companhia ao guarda-nocturno, que, entre dois dedos de conversa, começou por beber um copo de café para vencer o sono. Atrás de um copo veio logo outro, porque sempre que bebia café para não adormecer, o guarda-nocturno ia tendo cada vez mais sono. Quando o vigilante caiu para o lado, derrotado pela sonolência, os larápios irromperam pelo banco e passaram à acção. Um potente maçarico de oxigénio rebentou com o fecho da caixa-forte e de lá “saltaram” cinco mil notas de conto para um saco de plástico reforçado. Quando a gatunagem deu “à sola”, saindo pela porta para não perder mais tempo, o Soares bancário já ia perdido de sono. No período em que fizera companhia ao guarda-nocturno, também ele tinha bebido um copo de café…

Na manhã seguinte, o gerente do banco deparou com a porta aberta. Dirigiu-se ao “reservado” do guarda-nocturno e encontrou-o a dormir, debruçado sobre a mesa. O gerente bancário começou a desesperar. Apesar dos abanões e gritos, o vigilante continuava ferrado no sono. Dirigiu-se, depois, ao cofre-forte e deparou com ele arrombado. Chamou a polícia, que por sua vez reclamou uma ambulância: o guarda-nocturno precisava de tratamento hospitalar urgente, devido ao excesso de café ingerido. O Sete de Espadas foi entretanto destacado para o local, acompanhado por um grupo de investigadores e técnicos. O “avozinho” das barbas brancas, o Tharuga Lattas, um dos pioneiros do policiário em Portugal, foi anotando tudo, tudo…

O Sete “topou” logo que alguém da instituição seria conivente no assalto. A desactivação do alarme e o “baptismo” do café bebido pelo guarda-nocturno não deixavam lugar a dúvidas quanto a isso. Dos funcionários do banco, apenas um ainda não tinha comparecido ao serviço naquela manhã. Curiosamente, o mesmo que teria tido por missão anotar num “boletim de recepção” os números das notas roubadas, recebidas exactamente na véspera. O boletim não fora detectado em lugar algum. Podia ter sido levado pelos larápios, é certo. Mas… e o funcionário, foi sequestrado pelos assaltantes?! – ter-se-á questionado. Enquanto fazia as mais diversas conjecturas, o Sete mandou dois agentes a casa do funcionário Soares.

Quando foi arrancado da cama, onde ainda dormia a sono solto, é que J. Soares percebeu que o café o tinha tramado. Em sede de interrogatório, começou por recusar a sua participação no golpe, mas, perante tantas evidências, acabou por desatar num pranto e “botou a boca no trombone”. De posse dos nomes dos cúmplices, a polícia não perdeu tempo. Três deles tinham já desaparecido sem deixar rasto. Apenas conseguiram deitar a mão ao António Dores, quando este cozinhava calmamente o seu almoço, em casa. Negou tudo. Sempre com um sorriso nos lábios, de olhar agudo e frio, quase impenetrável, foi reiterando a sua inocência dias e dias a fio, durante o interrogatório, sem se revoltar uma única vez.

Mas nada escapa às cada vez mais sofisticadas técnicas laboratoriais. A utilização de uma luva descosida num dos dedos, terá permitido detectar um fragmento de impressão digital do Dores no cofre arrombado. Porém, apesar desta prova, a polícia não conseguiu arrancar-lhe a confissão. Nem mesmo perante as mais diversas ameaças físicas, ou promessas de redução de pena em caso de colaboração nas investigações, o Dores vacilou. Insistiu sempre na sua inocência. E quanto ao dinheiro roubado, nem uma palavra! Em conclusão: o banco ficou sem “a massa” mas o António Dores não escapou à justiça. Mesmo sem o testemunho do J. Soares, que se havia suicidado na “preventiva”, o juiz condenou-o a cinco anos e outros tantos meses de cadeia.

Foram tempos de martírio. Na prisão, tanto os guardas como os companheiros de cárcere fizeram tudo para lhe “sacar” o segredo. Onde está o dinheiro do assalto? – era a pergunta “sacramental”, à qual nunca respondeu. Levou pancada de “criar bicho”. Semana sim, semana não, o Dores dava baixa à enfermaria. O sofrimento era tanto que temeu perder o juízo. Antes que a loucura lhe roubasse a memória, decidiu tatuar no seu corpo o local onde havia escondido os cinco mil contos. A mensagem codificada ajudá-lo-ia a recuperar o dinheiro, caso perdesse o siso. «Ninguém vai descobrir que raiz quadrada 3.3 quer dizer raiz da terceira árvore da terceira fila de tílias, e muito menos que 3.3 pode ser rima de poetas: é lá que está a massa do banco!» – pensou ele.

Curioso é que a polícia havia feito uma busca cuidada e meticulosa ao parque e nada encontrou. A conclusão daí retirada só podia ser uma: o António Dores tinha “passado a perna” aos seus cúmplices, escondendo o dinheiro num lugar diferente daquele que havia combinado com os restantes membros do gangue, para ficar com os cinco mil contos só para si. Com certeza absoluta que o J. Soares não estava a mentir ao referir o Banco dos Poetas do parque como local de esconderijo da “massa” quando fez a sua derradeira confissão. Sim, não faz sentido que ele tenha mentido neste particular, uma vez que decidiu contar tudo, “tim-tim por tim-tim”, após ter sido desmascarada a sua participação no assalto à instituição bancária onde trabalhava!...

Depois de cumprida a pena, o Dores era outro homem. Pálido, escanzelado, de olhar perdido, sem o sorriso fácil que o caracterizava antes de ser preso, parecia uma sombra de si mesmo. Tinha um amigo à sua espera, com uma prenda de grande utilidade para quem ainda tem contas a ajustar com sócios de negócios ilícitos que não toleram “saldos negativos”: uma arma e inúmeras munições, acompanhadas de uma frase lapidar «eles vieram… vigiam-te». O Dores não perdeu tempo. Encaminhou-se para um táxi e ordenou: «rápido, para o parque». As fileiras de tílias estavam lá e o Banco dos Poetas também, mas o saco com os cinco mil contos tinha levado sumiço!... O mundo inteiro desabou com estrondo sobre a sua cabeça.

De nada lhe valera o tormento vivido na prisão para manter a salvo um segredo que fora descoberto, sabe-se lá por quem e quando. Os seus sócios, ao que parece, não haviam deitado a mão ao dinheiro. O que sofreu na prisão é bem prova disso! Tudo o que passou foi em vão. Dores estava completamente desorientado, mas decidido a mudar de vida, quando entrou no reboliço da cidade. Precisava primeiro de encontrar uma morada segura e depois pensaria no rumo a dar à sua existência. Não ia ser fácil, porque os seus comparsas no assalto ao banco, ainda vivos, estavam completamente convencidos que o dinheiro fora escondido em qualquer lugar e exigiriam agora o seu quinhão. Tinham regressado à cidade e iam tê-lo debaixo de olho.

Por mero acaso, o Sete também acabaria por não perder o Dores de vista. Viu-o algures num bairro da cidade caminhando com ar desconfiado. Através do reflexo do vidro de uma montra, percebeu que o ex-presidiário estava a ser perseguido por um homem de boné. O Dores parou e o seu perseguidor, que caminhava no passeio contrário, viu-se forçado a ultrapassá-lo. Um magote de garotos atravessou a estreita rua em correria, e aos gritos, fingindo de cowboys, com pistolas de brincar. A arma que António Dores levava consigo era “à seria” e disparava a valer, se fosse preciso! Mas o homem de boné não parecia disposto a travar “duelos”. Entrou num recinto aberto e passados uns instantes voltou a sair de lá. Era ali que morava o Dores.

António Dores dirigiu-se a casa, entrou com o máximo cuidado, fechou a porta à chave e trancou-se lá dentro. No chão estava um papelinho, metido por debaixo da porta, onde se lia: «O dinheiro em raiz quadrada 3.3 não vais gastá-lo cá. Adeus traidor; chegou o momento de te consumires no inferno». A mensagem fora lá deixada pelo homem de boné. O Dores amarfanhou o papel com raiva e atirou-o para o chão. Entrou em desespero. Na sua cabeça ressoavam mil pensamentos: «Eles nunca acreditarão que não sei do dinheiro. Não descansarão enquanto não me matarem. Eles não perdoam, irão torturar-me aos poucos até dar comigo em doido. Eu não consigo viver neste inferno». Levou a mão à arma que trazia consigo, apontou-a à cabeça e… soou um tiro!

O Sete de Espadas tinha chegado há instantes ao recinto por onde vira sair o homem de boné e entrar o Dores quando ouviu o som do tiro. O disparo fora feito de dentro da casa. Não havia dúvidas nenhumas sobre isso. Um carro que estava estacionado ao fundo rua arrancou a grande velocidade. Dentro do automóvel devia estar o “mensageiro de papelinhos ameaçadores”. Os miúdos que brincavam aos cowboys acorreram ao local. Também atraído pelo barulho do tiro, apareceu um idoso doente e meio ensonado que vivia na casa do lado. O Sete pediu a um dos miúdos que chamasse a polícia. Entretanto, tentou abrir a porta… e nada! Não conseguia entrar dentro de casa nem ver o que se passava no seu interior.

A janela também não ajudava. Duas meias portadas de madeira, um gradeamento e uma chapa metálica impediam a prática do “voyerismo” ou qualquer acesso por aquela via ao interior da casa. A bandeira da porta podia ser a solução. O vizinho de Dores, que era também seu senhorio, emprestou um banco, mas… o Sete era demasiado baixo para lá chegar. Não havia duplicados da chave da porta. Sempre que havia mudança de inquilinos, o velho trocava de trancas e de fechaduras para prevenir assaltos futuros. As pessoas que por lá iam morando não eram muito recomendáveis, por isso… Por outro lado, o velho não ficava nunca com cópias das chaves para evitar desconfianças que gerassem situações de conflito com os novos moradores.

Chegou entretanto ao local um agente da PSP que residia nas imediações, trazido pelo garoto que fora incumbido daquela missão. Mais alto do que o Sete, o guarda pôs-se em cima do banco e conseguiu ver, através da bandeira da porta, as pernas de um homem estendido no chão. Partiu o vidro e removeu a bandeira. Mas de nada valeu o esforço. A abertura era muito estreita e mal dava para lá meter a cabeça. Um dos miúdos, talvez o mais esperto e atrevido, que dizia ser o xerife do bairro, ofereceu-se para entrar pela bandeira da porta. Com a ajuda do polícia, que o elevou pelas pernas, o rapaz lá entrou. Passados alguns instantes ouviu-se bater a tranca, a chave a rodar… e a porta abriu-se. O rapaz, muito pálido, saiu esbaforido com as mãos na barriga.

«Coitado, o morto deu-lhe volta à barriga» – afirmou o polícia, a sorrir de troça do moço. «A morte e o sangue de homem não constituem cenário próprio para rapazes desta idade, muito mais sensíveis do que nós, os adultos. Devemos poupá-los ao máximo a estes horrores» – sentenciou o Sete. «Já cá canta uma pistola à séria. Afinal, eu sou o xerife ou não sou!?» – segredou de si para si, ao longe, o miúdo que tinha saído da casa de Dores com as mãos na barriga. Aquilo que pareceu a todos uma indisposição gastro-intestinal ou um súbito ataque de vómitos por causa do horror do quadro macabro que o rapaz havia contemplado, mais não foi do que duas mãos agarradas à barriga para esconder a arma com que António Dores se suicidou.

Pela primeira vez na sua longa vida de investigador, o Sete de Espadas sentia-se perdido, desorientado... O Dores tinha recebido um tiro na cabeça, no interior do seu quarto. Não havia arma alguma junto ao corpo. Por outro lado, na casa não existia qualquer outra porta, janela, alçapão ou passagem secreta por onde alguém pudesse ter fugido. Para complicar ainda mais o problema que tinha pela frente, o médico legista apostava firmemente num suicídio. O tiro tinha sido disparado a uma curta distância e foram encontradas partículas de pólvora misturadas com o sangue da ferida, bem como na mão do cadáver. De acordo com o técnico forense, só podia ter sido suicídio! «Mas onde está a arma?...» – questionava o Sete.

Confuso e intrigado, o investigador regressou ao seu gabinete de trabalho, na Central da Judite, onde o esperava ainda outra grande surpresa. Em cima da secretária estava uma carta anónima, onde o remetente fazia uma revelação extraordinária. O autor da carta era um dos homens que trabalhava na plantação das tílias quando se deu o assalto ao banco naquela madrugada de Junho de 1967. Dizia ele na sua missiva que nesse dia chegara mais cedo ao seu local de trabalho e avistou um homem a esconder um saco. Quando ficou só, desenterrou o saco e viu o dinheiro. Ficou banzado e perplexo com o seu conteúdo. Depois de alguma hesitação, pegou na “massa” e levou-a para casa. Cinco mil contos…era muito dinheiro!!!

O “plantador de árvores” soube pelos meios de comunicação social do assalto ao banco e da prisão do Dores e do Soares. Era um homem pobre e vivia com sérias dificuldades, mas garantia que não usou um único tostão em seu proveito. Durante cinco anos, pelo Natal, enviara um donativo de mil contos a uma Instituição de Caridade. O Sete teve oportunidade de confirmar o facto através dos jornais publicados no final dos anos de 1967 a 1971, onde se podia ler os agradecimentos a um anónimo. Um “ladrão” generoso?! Talvez não! Estaríamos perante um homem que não queria carregar toda a vida com os remorsos de um crime... ou um sujeito com medo que a numeração das notas o levasse à cadeia!

O homenzinho sabia que pouco tempo antes, a 17 de Maio de 1967, tinha ocorrido um roubo a uma agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, de onde desaparecera uma fortuna, e o dinheiro de pouco valera aos assaltantes e à organização que fundariam na sequência do golpe. Conforme a imprensa noticiara, as notas eram novas, ainda não tinham entrado em circulação e os seus números foram imediatamente divulgados… Com um exemplo destes, tão recente, o pobre “plantador de tílias” não se atreveu a ficar com o dinheiro para seu benefício directo. Congeminou um processo mais seguro. Enviava um donativo para uma instituição de beneficência, e, como era uma pessoa necessitada, acabaria por retirar daí algum (pouco) proveito indirecto...

As surpresas não ficaram por aqui. O Sete foi informado de que uma bala havia partido o vidro da montra de um estabelecimento das imediações da casa onde morava o Dores. O tiro fora disparado de muito perto e a arma utilizada para o efeito foi exactamente aquela que matara o António Dores. Não roubaram nada! De súbito, acendeu-se uma luzinha nas meninges privilegiadas do Sete. Agora sim, o mistério parecia estar esclarecido. O Tharuga foi até ao Banco dos Poetas no parque. A terra tinha sido remexida há pouco tempo – quando Dores recuperou a liberdade. Depois foi procurar o polícia que o tinha ajudado a abrir a porta do infeliz suicida e pediu que lhe dissesse onde morava o “xerife do bairro”.

Quando viu o agente à sua porta, acompanhado do Sete de Espadas, o miúdo percebeu logo o que se passava. O investigador, pedagogo e mestre do policiário, ainda iniciou um longo discurso sobre o perigo das brincadeiras com armas autênticas e da desumanidade dos conflitos bélicos que se espalham e agudizam um pouco por todo o Globo, nomeadamente em África, onde milhares de inocentes, sobretudo velhos, mulheres e crianças, perdem a vida ou acabam estropiados, mas o “xerife do bairro” não estava muito interessado em conversas. Pegou na arma do Dores e devolveu-a. Em troca, o Sete deu-lhe uma bisnaga de Carnaval em forma de pistola, não sem antes esguichar uma “bisnagadela” no rosto do Polícia, que os olhava com cara de parvo… 
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