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sexta-feira, abril 11, 2008
  MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 1

O MISTÉRIO NÃO FOLGA, de Jartur Mamede

Aproveitando o fim-de-semana prolongado, eu, o Marcos Dias e o Sub-Inspector Aranha, magníficos membros do Clube Aranhiço, resolvemos ir passar uns dias ao Algarve.
Cada um de nós tinha o seu programa, previamente estabelecido, e só nos encontraríamos no restaurante, cerca das treze horas, para almoçarmos juntos. No entanto, logo no segundo dia, isto é, no sábado, o Aranha chegou com enorme atraso.
Segundo nos disse, encontrara, na noite anterior, numa discoteca, um antigo companheiro da tropa, que era dono desse estabelecimento e de uma cadeia de casas similares, instaladas por toda a costa algarvia. Assim, e depois do seu amigo Martins lhe fazer as honras da casa e o apresentar a umas colaboradoras, ficara lá a desfrutar do calor da noite e acabara por ir pernoitar, bem acompanhado, no iate do camarada, onde acabara de almoçar com a sua parceira de camarote.
Nessa tarde, porém, iria estender-se na praia, a descansar e a reflectir um pouco, visto que durante a noite queria andar bem acordado e atento, pois suspeitava, por conversas lacónicas e enigmáticas que escutara durante as suas deambulações nocturnas da véspera, que nessa tarde teria chegado, à região, uma importante remessa de droga.
– Não te metas nessas coisas! – disse Marcos Dias, tentando dissuadi-lo. – Limita-te a alertar para o facto os teus colegas da zona…
– Estás doido, pá?!… Então eu ia servir-lhes de bandeja um pitéu tão apetitoso?… O caso está de caras, pá! Não tenho nada a perder, e um êxito desta natureza, em dia de folga e no campo do adversário, contará muito para a minha carreira.
Esclareceu-nos, mas não nos convenceu, que a missão não comportava riscos, visto que não iria agir operacionalmente, mas sim observar discretamente, pesquisar na sombra, quase só com os ouvidos, de forma a poder fundamentar um relatório que lhe assegurasse êxito e lhe valesse a almejada promoção.
– Os gajos não sabem quem eu sou, pá! Fiquem descansados que amanhã não chegarei atrasado para o almoço. E, se precisar da vossa ajuda, eu lanço-vos um SOS e confio nos vossos dotes detectivescos. Prometeu, com ironia, e afastou-se, sorrindo.
No dia seguinte… ele não chegou atrasado. Pior ainda. Nem sequer chegou!… Por isso, fartos de o esperar e preocupados com a sua ausência, fomos procurá-lo ao seu quarto. Porém, não o encontrámos e a empregada do aldeamento disse-nos que a cama não fora utilizada, encontrando-se a habitação tal como ela a deixara no dia anterior. Intrigados com o facto, metemo-nos no “Mercedes 300SL” do Marcos e fomos à discoteca que o Aranha nos referira perguntar ao dono, o tal Martins, se sabia onde poderíamos encontrar o amigo.
– Não! – respondeu: - E confesso que também estou a ficar preocupado, pois o Aranha ontem pediu-me que o deixasse ir passar umas horas no meu apartamento, com uma “sueca”, e ainda não voltou para me devolver a chave. Já liguei para lá umas duas ou três vezes; aliás, ainda agora o fiz, mas ninguém atende o telefone.
Depois, disse-nos que estava à espera de uma chamada telefónica da Holanda, motivo por que não nos poderia acompanhar, mas indicou-nos a localização do apartamento e forneceu-nos uma chave.
Em poucos minutos, chegámos ao local indicado. O apartamento, afinal, era uma casa tipicamente algarvia, grande e isolada, implantada num amplo terreno que se estendia até à praia. Por cima do muro de vedação e da vegetação baixa que o acompanhava, via-se que estava, no caminho de acesso à moradia, o “Escort” que o Aranha alugara no aeroporto.
A cancela exterior estava fechada apenas pelo trinco e para entrar na casa também não precisámos de chave, porque a porta estava entreaberta. Como ninguém respondeu aos nossos chamamentos nem ao toque da campainha que accionámos com insistência, entrámos, cautelosamente, e fomos logo surpreendidos pelos pingos de sangue que se viam no chão da sala de estar e através das duas portas de ligação a outros compartimentos. Cada um de nós seguiu as marcas num sentido. Fui parar num quarto e imediatamente me apercebi da desarrumação reinante, com roupas e objectos pelo chão, também atingidos por sangue, como se ali tivesse havido luta.
– Jartur!… – berrou, de súbito, o meu amigo Marcos e eu corri para o aposento de onde me parecera ter partido o grito e que estava no seguimento das marcas de sangue.
Era um amplo escritório, bem mobilado e equipado, e onde o nosso amigo Aranha se encontrava, inerte e bastante ensanguentado, sentado numa cadeira de braços e caído contra a mesa da máquina de escrever, na qual os seus dedos, também ensanguentados, haviam deixado marcas no teclado.
Confirmámos que ele mantinha sinais de vida. Cuidadosamente, estendemos o corpo na alcatifa e, numa rápida apreciação, reparámos que exibia vestígios de dois tiros – um no peito, outro nas costas.
Marcos Dias iniciou os primeiros socorros indicados para o caso e eu procurei um telefone, que encontrei caído a um canto, com os fios rebentados. Rapidamente, improvisei uma ligação das pontas soltas. Confirmada a eficácia da reparação, marquei o 115 e transmiti o urgente e indispensável apelo.
Enquanto os socorros não chegavam e o Marcos assistia o nosso amigo, procurei, sem êxito, alguma arma ou indício que pudesse ser útil na investigação que se impunha.
Observando agora, mais atentamente, a máquina de escrever, vi que era uma “Brother” igual à que tínhamos no Clube do Aranhiço. E reparei que estava ligada, encontrando-se acesa a luzinha que indicava a actuação da escrita centralizada. Não tinha qualquer folha de papel introduzida, mas apresentava vestígios de que o papel ali estivera e que fora arrancado desastradamente. Na realidade, via-se, sobre o negro do rolo, uma marca de sangue que me parecia ser de uma impressão digital, interrompida no sentido vertical, para a esquerda, como se a parte que lhe faltava tivesse sido impressa no papel que fora retirado.
Examinando o cesto dos papeis inúteis, ali encontrámos uma folha, bastante amarfanhada e com um texto algo enigmático:

PEDE NOTÍCIAS A ESTA E A OUTRA

Aquilo tinha, sem dúvida, sido escrito pelo Aranha, pois encontravam-se, manchadas de sangue, as teclas correspondentes e mais umas tantas, cujos caracteres não se encontravam marcados no papel, ao qual faltava um pequeno canto inferior, que ficara preso no dispositivo encaminhador das fitas.
Reflecti que o Aranha, pressentindo a morte, resolvera deixar uma mensagem denunciadora. E reli o enigmático pedido. Voltei a olhar a máquina de escrever e, ao ver de novo a luzinha verde, fez-se luz… Coloquei uma folha nova no carreto da máquina, premi a tecla que indicava PTI e, automaticamente, a máquina começou a bater um texto. Terminado este, retirei a folha e constatei que o enigma era ainda maior, pois o texto não apresentava qualquer espaço nem nexo:

BUFKTYSFGRTDYUÇTERSTGTQHFJAT

Entretanto, chegara o piquete da Judiciária e a Emergência Médica. O Aranha sobreviveria.
Marcos Dias e o Insp. Boavida, enquanto o restante pessoal do piquete trabalhava à nossa volta, também ficaram intrigados com o papel que lhes entreguei e com as diligências que sugeri.

PERGUNTA-SE: O que lhe parece este mistério? Apresente o seu relatório.
(É verdade! Um mês depois, o Aranha, já de boa saúde, foi promovido a Inspector.)


SOLUÇÃO de Inspector Boavida

O telefone tocou. Era o Jartur. Lembro-me de tudo como se fosse hoje. Só não sei a data exacta do telefonema. Mas estávamos no princípio dos anos 80, disso estou certo: não havia computadores nem telemóveis, e o número dos serviços de emergência era o 115. O 112, que ainda hoje vigora, substituiu oficialmente o velho 115 no dia 4 de Setembro de 1997; os telemóveis nasceram no nosso país em 1991, quando a única empresa de telecomunicações existente em Portugal na época criou a TMN; os computadores não passavam de uma “pequena maravilha” que dava os primeiros passos nos países desenvolvidos; e eu ainda matraqueava autos, relatórios e ofícios numa das novíssimas “Brother eléctricas”, que foram introduzidas no mercado nacional em 1980.

Sei que era domingo e eu estava de piquete na “Judite” de Faro, onde fora colocado alguns meses antes. Do lado de lá da “linha”, o Jartur Mamede reclamava a presença urgente de uma brigada em casa de um tal Martins, um dos mais bem sucedidos e populares empresários da noite algarvia. Era lá que estava caído, inanimado, o sub-inspector Aranha, um colega de Santarém, que fora alvejado com dois tiros. Reuni apressadamente quatro dos melhores agentes que estavam comigo de serviço e parti para a morada indicada. Quando lá cheguei, já o pessoal dos serviços de emergência tinha levado a vítima para o hospital. Graças aos primeiros socorros prestados pelo investigador Marcos Dias, o Aranha acabaria por safar-se…

……………………… /// …………………………

Jartur contou-me que os três Magníficos Membros do “Clube do Aranhiço” haviam decidido aproveitar o feriado de sexta-feira para “curtir” três dias de merecido descanso, que serviriam também para aliviar o stress das suas vidas agitadas, sempre com o perigo à espreita em cada esquina do crime. As “más línguas” fizeram constar, no entanto, que as razões da viagem dos “aranhiços” até “aos algarves” se prenderam com alguns assuntos que eles tinham “entre pernas”... e há muito tempo pendentes, por terras do sul. Invejas, é claro! Bom, mas a verdade é que eles haviam combinado à partida que cada um faria o que muito bem quisesse da sua vidinha e só se encontrariam à hora do almoço, às 13 em ponto, num restaurante pré-determinado.

Jartur partira do Porto com o Marcos. O homem de Santarém apanhara um avião em Lisboa e alugara um “Escort” no Aeroporto de Faro para se mexer à vontade na noite algarvia. O investigador que fez furor nos anos 50 tinha um “Mercedes 300SL” ao seu dispor para o mesmo fim. Só o Mamede se “transportava” a “butes”... Nunca se soube por onde andaram o Marcos e o Jartur na noite de sexta-feira. O que se sabe é que o Aranha reencontrou um “velho” camarada de tropa, o tal Martins, numa Discoteca, e acabou a noite num Iate, nos braços de uma moçoila. Foi com ela que ele almoçou nesse dia. Não teve oportunidade de avisar os amigos porque estava no Iate e nas embarcações não existem telefones de rede fixa (o jeito que teria dado a existência de telemóveis!...).

Entre copos e fumo, abraços e beijos, intimidades e (in)confidências, o Aranha não só foi surpreendido pela prosperidade e qualidade de vida do seu ex-camarada Martins, que era dono de uma cadeia de Discotecas na região (e proprietário do Iate onde acabaria por pernoitar...), como se apercebeu também que havia “droga na costa”. Não era coisa “miúda”, não. Ele estava convencido que a “pesca era da grossa”! Marcos Dias e Jartur, que não arredaram pé do restaurante enquanto o Aranha não chegou, aconselharam-no a passar o assunto para as mãos da “Judite” de Faro, mas o homem de Santarém não estava pelos ajustes. Há muito que ele ansiava por uma promoçãozita e aquele caso vinha mesmo a calhar...

O Aranha estava firmemente decidido. Naquela tarde iria estender-se ao sol numa das praias vizinhas e decidir qual a melhor estratégia para sair com sucesso daquela empresa. Entretanto, se a coisa desse para o torto, lançaria um SOS aos amigos “aranhiços”, que não deixariam de o safar de qualquer enrascada. Mas o problema é que naquele tempo ainda não havia telemóveis nem computadores, para o envio de SMS’s ou MAIL’s. Nem tele-bip’s!!! Se ele não tivesse acesso a um telefone de rede fixa, restava-lhe pouco mais do que... fazer “sinais de fumo”. Mas como tal coisa não é muito eficaz, nem aconselhável devido aos perigos de incêndio, o resultado da falta de meios de comunicação só lhe podia ser desastroso. E só não lhe foi fatal por muita sorte.

No domingo, a coisa começou a cheirar a esturro. À hora combinada para o almoço, o Aranha não apareceu, não telefonou nem enviou nenhum mensageiro ou... sinais de fumo! Na verdade, a sua ausência acabou por se constituir ela própria o seu SOS!!! Depois de concluírem que o Aranha não estava nem pernoitara no seu quarto, Jartur e Marcos meteram-se no “Mercedes 300SL” e dirigiram-se para a Discoteca onde ele disse que tinha estado na sexta. Martins, o “magnata da noite”, manifestou-se também preocupado. Segundo o “rei das Discotecas”, o ex-camarada de tropa ter-lhe-ia pedido o apartamento emprestado para passar algumas horitas com uma “menina”. Deu-lhe a chave, mas até àquele momento (meio da tarde do dia seguinte) nada mais soube.

Importa saber onde o Martins terá passado a noite. Terá ele outra casa? Será que dormiu no Iate? Terá passado pelas brasas numa das suas Discotecas? Ou terá feito uma directa e nem pregou olho em toda a madrugada e manhã?!... Mas o que é também curioso é que o “empresário da noite” alegou não poder abandonar o local onde se encontrava, para averiguar o que se passara com o Aranha, porque aguardava uma chamada da Holanda (cá está mais uma vez a falta dos telemóveis…). Igualmente curiosa é a sua afirmação de que havia feito alguns telefonemas para o apartamento, onde supostamente o Aranha teria ido “deitar-se com uma sueca”, e ninguém atendeu o telefone. Uma das chamadas teria sido feita alegadamente há muito pouco tempo!...

Enquanto matutava em tudo isto, Jartur conseguiu convencer o Martins a dizer-lhe onde era a sua residência e a emprestar-lhe a respectiva chave. E as perguntas continuavam a encher a cabeça do Mamede: Quantos duplicados da chave terá o homem? Por que será que não foi a casa durante a madrugada, ou de manhã, uma vez que o Aranha pediu a “cama” emprestada apenas por umas horas e ele tinha pelo menos mais uma chave da residência?... Mas havia ainda outra questão a bailar freneticamente na cachola do Jartur: Ele tinha quase a certeza de que, naquela época, as chamadas telefónicas provenientes da Holanda para o Algarve tinham de “passar” pela Rádio Marconi, cujos serviços estavam encerrados aos fins-de-semana.

Jartur não estava bem certo, mas tinha a convicção de que, apesar do aumento vertiginoso verificado no parque de acessos telefónicos após a segunda guerra mundial, o processo de automatização das redes no nosso país não estava ainda concluído, não abrangendo, portanto, todo o “Portugal, Algarve e Ilhas” (tal desiderato ocorreria mais tarde, em 1985, e foi então que se começou a preparar a digitalização da comutação telefónica, arrancando as primeiras centrais digitais em 1987). Mamede podia estar equivocado no que respeita à impossibilidade de telefonemas directos entre a Holanda e os “algarves”, mas momentos depois teve a certeza de uma coisa: O Martins mentiu quando disse que tinha ligado para sua casa por diversas vezes e que ninguém atendeu.

Como ele veio a constatar, o telefone da residência do “rei das Discotecas” tinha os fios rebentados! Nesta circunstância, qualquer telefonema que o Martins tivesse feito jamais daria sinal de chamada e esse facto foi por ele omitido. Outra mentira (por omissão ou modéstia?!...) prende-se com a designação que fez da sua residência. Martins havia falado de um “apartamento” e quando Jartur e Marcos chegaram ao local depararam com uma “casa” grande, no meio de um imenso terreno que se debruçava sobre a praia. Nada que se parecesse, portanto, com um “apartamento”. Estranho! A crer nos elementos fornecidos pelo Martins, estavam no sítio certo. Aliás, no interior do muro que cercava a casa estava estacionado o “Escort” alugado pelo Aranha!...

Surpreendentemente, o portão de entrada no terreno que ladeia a casa encontrava-se apenas fechado no trinco. Por outro lado, a porta de acesso à moradia estava entreaberta! Tocaram à campainha, chamaram por quem pudesse lá estar dentro, mas o silêncio foi total. A chave não serviu para nada! Entraram com as maiores cautelas e deslocaram-se até à Sala de Estar. No chão, eram visíveis pingos de sangue, que se estendiam pelas duas portas de acesso a outros compartimentos. Jartur foi por uma das portas e Marcos seguiu pela outra. O primeiro acedeu a um quarto com sinais evidentes de luta, completamente desarrumado, com roupa e objectos atingidos por sangue. De súbito, ouviu-se um grito: “J-A-R-T-U-R!!!!!!”. Era o Marcos Dias.

Num escritório, bem mobilado e equipado, sentado a uma secretária, o Aranha permanecia inerte, caído sobre uma máquina de escrever. Dois tiros, um no peito e outro nas costas, deixaram-no em muito mau estado de “conservação”. Primeiro havia que salvar o amigo e foi isso que os “aranhiços” fizeram. Jartur pegou num telefone que estava tombado no chão, para chamar os serviços de emergência, mas não havia rede (a falta que fez outra vez a existência do telemóvel!!!...). Os fios do telefone tinham sido rebentados. Bastou no entanto uma ligação das pontas dos fios para que fosse possível marcar o 115 (se fosse agora seria o 112…) e pedir socorro médico. De seguida, o Jartur ligou para a Judiciária de Faro. Era eu que estava de serviço.

Enquanto não chegou auxílio, Marcos ocupou-se do Aranha, ministrando-lhe os indispensáveis primeiros socorros. Jartur, por sua vez, procurou no compartimento algo que pudesse contribuir para o desenvolvimento da investigação, mas sem sucesso. Não havia por lá nem arma de fogo, nem cápsulas das balas, nada! Aparentemente, o crime tinha ocorrido no quarto de dormir, onde eram visíveis os sinais da luta que terá culminado com dois tiros. O autor dos disparos terá considerado que o Aranha não tinha “safa”, tratou de limpar tudo o que pudesse identificá-lo e pôs-se ao fresco, não sem antes rebentar com os fios do telefone. Assim, o Aranha estaria impossibilitado de comunicar com o exterior durante os poucos minutos que lhe restavam de vida.

De repente, Jartur ficou “vidrado” na máquina de escrever, uma das últimas novidades da tecnologia em processamento de texto. Aquele escritório estava servido pelo mais moderno equipamento para época (o computador ainda era um sonho em projecto…)!!! No teclado da novíssima “eléctrica Brother” descortinavam-se algumas dedadas de sangue. A máquina estava ligada e apresentava sinais evidentes de ter sido utilizada há muito pouco tempo. Não havia nenhum papel na máquina, mas a marca de um dedo “impresso” a sangue no rolo indiciava que alguém arrancara de lá, apressadamente, uma folha de papel. Num cesto de papéis descobriu-se uma folha dactilografada, onde se lia: PEDE NOTÍCIAS A ESTA E A OUTRA.

As letras que compunham o texto impresso naquela folha de papel amarfanhada coincidiam com as teclas da “Brother” que apresentavam vestígios de sangue. Mas existiam outras teclas ensanguentadas correspondentes a letras que não constavam daquela enigmática frase. Tudo indicava que se estava perante uma pista deixada por Aranha. Jartur voltou a olhar máquina. Havia um pedaço de papel preso no dispositivo da fita. Olhou a luz sinalizadora de “texto em memória”, meteu uma folha no rolo da máquina, carregou numa tecla e a “Brother” descarregou um conjunto de caracteres que formava uma palavra sem nexo aparente: BUTKTYSFGRTDYUÇTERSTGTQHFJAT, assim mesmo, sem qualquer espaçamento entre letras.

Quando cheguei com os meus homens, o Jartur exibiu-me as duas folhas dactilografadas. Perante a minha perplexidade, ele foi explicando: As duas mensagens são do Aranha. Ao ver-se perdido, a desfalecer, e não tendo como contactar ninguém, decidiu deixar “pistas codificadas” que nos levassem ao autor do crime. Na primeira folha, diz-nos que procuremos uma segunda folha, que não chegou a imprimir propositadamente (ou será que perdeu os sentidos entretanto?...) para não possibilitar que o seu algoz e capangas desconfiassem da “marosca” e destruíssem as mensagens. Mas deixou acesa a luz sinalizadora de “texto em espera”. Ele sabia que os seus amigos “aranhiços” haviam de conseguir juntar as peças do puzzle por ele montado.

Jartur não me deu espaço para qualquer reacção, continuando o seu empolgado discurso: A segunda mensagem foi por ele dactilografada como se estivesse a “bater” no teclado “hcesar” que durante muitos anos imperou em todos os organismos públicos e na maioria das empresas privadas, por decisão do velho ditador Salazar (Só nos anos noventa é que o teclado “qwert” veio fazer companhia ao “hcesar” – e ao “azert”, que aos poucos se foi impondo no país, mesmo antes da queda do antigo regime). Era extremamente fácil para o Aranha escrever no “azert” da “Brother” como se estivesse a teclar no “hcesar”, que ainda hoje (inícios de 1980…) existe nalgumas dependências da “Judite” e noutros serviços e departamentos do Estado.

Exactamente na “mouche”! O Jartur comprovava mais uma vez os seus extraordinários dotes dedutivos, aqui não só emanados das faculdades cognitivas mas também espoletados pela inteligência emocional. A vítima do caso era um grande amigo do peito! Para ele, não havia lugar a dúvidas: a enigmática mensagem aparentemente sem nexo “escondia” a frase FOI MARTINS A DROGA ESTA NA QUILHA. Quanto à falta de espaçamentos no texto codificado, Jartur defendeu que tanto podia ser propositada como originada pelo pedaço de papel preso na engrenagem da fita impressora, ao mesmo tempo que recomendava de um só fôlego: Detenham o Martins e apreendam o Iate. A droga está na quilha da embarcação.


BUF KTYSFGR T DYUÇT ERST GT QHFJAT - azert
FOI MARTINS A DROGA ESTA NA QUILHA - hcesar


Pode parecer incrível, mas só agora é que dei conta de uma situação curiosa. Se este acontecimento tivesse ocorrido uns anos mais tarde, por volta de final dos anos oitenta/princípios de noventa, e o Martins fosse avesso a computadores (ainda hoje há gente assim), ele teria uma “Brother Electrónica” com o teclado “qwert” (o escritório estava muito bem equipado!...). Apesar disso, se o Aranha batesse nas teclas das letras BUTKTYSFGRTDYUÇTERSTGTQHFJAT, a mensagem codificada poderia ter o mesmo efeito denunciador. A única diferença é que duas letras ficariam “fora do sítio” e um outro caracter “fora de contexto”, facto que poderia ser explicado pela fragilidade do Aranha, que, esvaindo-se em sangue, ia perdendo a lucidez… e a consciência.

Ora vejam:
BUF KTYSFGR T DYUÇT ERST GT QHFJAT - “qwert
FOI MARTINS A DRO ; A ESTA NA HUILQA - “hcesar”

Bom, mas o melhor é continuar o relato, para não perder o fio à meada: Antes de partir para a sede distrital da “Judite”, a fim de desenvolver todos os “complicadex’s” procedimentos tendentes à obtenção dos indispensáveis mandados de busca e de detenção, mandei dois dos meus homens para as proximidades do Iate, pedi a um dos agentes que convocasse de imediato o Martins para uma conversinha de “encher chouriços” na sua bela casa e recomendei ao chefe “Olho Vivo” (o mais experiente da brigada) que recolhesse todos os vestígios julgados úteis à investigação e que procurasse com a máxima atenção e minúcia a chave que o “magnata da noite” afirmara ter emprestado ao Aranha.

Eu estava absolutamente convencido de que o Aranha, após ter descoberto a localização da droga, resolveu imprudentemente ir mais fundo na investigação. Como tinha alguma confiança com o ex-camarada de tropa, decidiu engendrar a história da sueca e pediu-lhe a casa por umas horas. A sua intenção seria encontrar documentos ou quaisquer outras “matérias de prova” que sustentassem a acusação de envolvimento do Martins no crime de tráfico da droga. Este emprestou-lhe a chave de casa, mas ficou desconfiado. Assim que Aranha saiu no “Escort”, o Martins foi no seu encalço e… apanhou-o com a “boca na botija”. Depois, já se sabe, a luta e... dois tiros, um de frente e outro pelas costas, quando o Aranha procurava escapulir.

Resolvido o caso, que transitou depois para o Ministério Público, sentei-me em frente à “Brother” que “decorava” o centro da minha secretária, ladeada por papelada inútil, algumas canetas sem carga, uma garrafa de coca-cola vazia, e escrevi um Relatório sobre o comportamento do Aranha em todo o processo. Como ainda não havia telefax, enviei o documento por correio. Um mês depois recebi um ofício da sede nacional da “Judite”, que cito de cor: Na sequência do seu Relatório em referência, encarrega-me Sua Excelência o Director Nacional da P. J. de o informar da promoção a Inspector do sub-inspector Domingos José Cabral dos Anzóis Aranha. Esta promoção tem efeitos retroactivos a… 27 de Abril de 1980? Talvez. Já não me recordo!....


MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 2

CAÇADA NOCTURNA, de Figaleira

Após 54 anos de actividade profissional e 48 de descontos (ainda não há muito foi adoptada designação mais enfática: carreira contributiva), “Mêbêdê” entrou na jerarquia dos aposentados. Desde então, a par das diárias andadas (no mínimo, duas horas a caminhar) e assistência aos (cinco) netos (em especial, aquando das férias escolares), tem diligenciado manter a ginástica mental iniciada em meados do século transacto (embora, ultimamente, problemas de visão estejam a dificultar tal propósito); também usufruindo dilatados períodos na aldeia das origens – cuja mais recente visita começou no dia do “tríparo 07”.
Localizada no fundo de um vale, rodeada de montes arborizados, na povoação o tão apregoado “choque tecnológico” parece de “complicadex” abrangimento, sobretudo dadas as deficientes condições receptivas. Na televisão, pelo sistema normal, tão-só são captados os dois emissores estatais (os outros apenas por cabo, via satélite, com custos de instalação muito elevados e, por isso, unicamente são visíveis no café do Zeca) e, quanto a telemóveis, é constante a procura de sítios onde o aparelho consiga ligação (mesmo assim, amiúde ficando sem rede a meio do diálogo).
Mas, em contrapartida, os ares são despoluídos, as sombras aprazíveis, as águas virgíneas (isto é, sem gustação anti-séptica), sendo quase geral a fraterna convivência (antes, dia e noite, as chaves ficavam nas portas, pelo lado de fora; agora não acontece tanto assim – precatadamente, ao crepúsculo, são recolhidas). E, na época de veraneio, então, na ribeira que a beija, é estabelecida uma praia fluvial, com cerca de duzentos metros de extensão, propícia a refrescantes mergulhos e sequentes banhocas, para gáudio dos locais e daqueles que, vindos de lugares vizinhos, lhe transmitem o cariz de romaria.

Dissimulado e silencioso, aproveitando as zonas obscuras procedentes da ténue iluminação na via pública, o vulto avançou com presteza. Franqueada a cancela de acesso à propriedade, dirigiu-se à arrecadação onde sabia haver a entrada para o anexo em que estavam galinhas e coelhos. Experimentou o trinco da porta; em vão – estava fechado à chave e esta fora levada.
Nessa altura, a amplificação sonora da torre difundiu as onze badaladas do relógio instalado na sacristia da igreja matriz, circunstância aproveitada para insistente abanicar da porta, na suposição de eventual cedência, o que não sucedeu. Extinto o som da última pancada, pressentindo ligeiro restolhar, quedou-se à escuta, num derramado aguardamento; todavia, no sossego da cálida noite, constituía excepção ouvir-se o coaxar das rãs junto à ribeira, de onde conjecturar que o esbatido rumor fora originado por cão vadio ou bicharoco rastejante, em deambulações noctívagas.
Assim, depois de acautelada pausa em expectativa, pisando a terra mole (devido à rega diária feita ao anoitecer, a fim de revigorar os produtos hortícolas dos efeitos da canícula), com a ajuda de pequena lanterna de bolso, acercou-se da janela da arrecadação, a qual presumia entreaberta para refrescar o local. Efectivamente, tal verificou, pelo que não teve dificuldades em a galgar – deixando marcas do calçado lamoso nos sacos de ração e adubo sob a mesma. De seguida, procedeu à fácil abertura da coelheira, transladou anafado láparo para um saco de linhagem e pisgou-se…

Na manhã da Segunda-feira imediata à chegada, Mêbêdê encontrou o parente e amigo “Manel da eira” bastante sorumbático, tendo-lhe este transmitido que há pouco, ao preparar a alimentação dos animais, averiguara o desaparecimento, naquela noite, do melhor coelho; mais adicionando que, nos últimos tempos, esse género de furtos estavam a tornar-se frequentes, pois vários conterrâneos queixavam-se de idênticos rapinanços. E logo ele se esquecera de fechar a janela.
Ora, inoculado da prosápia de “estar por dentro” no referente a investigações policiais (meio século a ler narrativas e também na pesquisa clarificadora de enigmas desse teor facultam o pressuposto), Mêbêdê encetou diligências no sentido de intentar descobrir quem seria o motivador da situação. Daí, o seu “faro” levou-o até recôndita adega, deparando com três compinchas a banquetear-se com opíparo petisco (o cheiro fazia engolir em seco; aquilo deveria estar de “lamber a beiça”): “Tóino pipo”; “Xico d’avó” e “Jaquim meia-ó”.
Em jeito entediado, acercou-se da abertura e escogitou. Convidaram-no a entrar (o que fez de imediato, sem arrepsia), e “alinhar” no, segundo disseram, coelho guisado (aí escusou-se, argumentando ter acabado de almoçar). Efectuados os cumprimentos da praxe, inquiriu quem era o aniversariante, mas nenhum respondeu. Tentou estratégia alternativa: “ontem à noite estive no café do Zeca e não vos vi...”
“Tóino pipo” (o epíteto retrata a personagem: atarracado, convexo e “copofónico militante”) casquinou difusa risada, enquanto dizia:”Estivemos lá, pois! Até pesquei monumental “cardina” que raios me partam se alembro como fui parar à cama. Mas já recuperei; ultrapasso facilmente as ressacas e, pelos vistos, outra vem a caminho...”
“Xico d’avó” (fanhoso, atacado por uma daquelas constipações de Verão provocadoras de incessantes espirros e assoadelas, como era evidente) interrompeu-o: “Chiça! Quantas vezes é preciso esclarecer-te que te reboquei para o cimo da vila e ajudei a tua mulher a deitar-te”. E, voltando-se para o indagador, acrescentou: “Saímos os três de lá por volta das nove horas, ainda estava a dar o Telejornal. Depois de pôr o meu vizinho em casa, dirigi-me à minha, preparei um café forte com aguardente e mel, procurando atalhar esta carraspana que parece enraizada e fiquei lá.”
Por sua vez, o “Jaquim meia-ó” (desde sempre caracterizado pela impoluta camisa branca, vincada calça preta e sapatos lustrosos, assecla ferrenho das coisas futebolísticas, castiço e chistoso no modo de falar), confirmando o horário indicado pelos parceiros (e as condições em que saíram), aditou: “Quando cheguei a casa, a “ti” Palmira (sua esposa) olhava a televisão, pusemo-nos à conversa; cerca das dez horas, ela alegou estar a sentir o efeito do comprimido para dormir e foi-se deitar. Como a programação de ambos os canais era xaroposa, aguardei a costumada meia hora para a “ti” Palmira ferrar no sono, e imitei-a. Entretanto, pretendi arejar à janela, ao escuro e, pouco depois das onze horas, vi uma sombra para os lados do “Manel da eira”, transportando um saco onde algo estrebuchava...”

E temendo por demais estendida a lengalenga, expressamente concebida com a finalidade de associar-me ao cinquentenário de “policiarites” do prezado Amigo Domingos Cabral (que em tempos foi “aranhiço” e agora está “anzolado”), “fecho a tenda”. No entanto, como “manda o figurino” (e prevendo que o coelho manjado pela trindade fosse o extorquido ao “Manel da eira”), questiono:

1 – Quem larapiou (obviamente, a prescrição terá de ser complementada através de consentânea justificativa).
2 – Ponderadas as circunstâncias descritas, acaso Mêbêdê granjearia hipótese de esclarecer o imbróglio?


SOLUÇÃO de Inspector Boavida

No dia em que o mundo escolhia as suas sete maravilhas, “Mêbêdê” ia ao encontro da oitava, para si a maior maravilha do universo: o seu torrão natal, uma Aldeia nascida no fundo de um vale, rodeada de montes verdejantes beijados pelas monocromáticas nuvens que, ora leves e claras como algodão, ora pesadas e escuras como chumbo, espreitam a terra por entre o azul profundo dos céus. O canal televisivo privado dirigido pelo jornalista José Eduardo Moniz transmitia em directo do Estádio da Luz, em Lisboa, um magnífico espectáculo com uma paleta de milhões de cores que evocava algumas das mais belas “paisagens” do globo terrestre.
O audiovisual brilhava no “tríparo 07” do século XXI! O sétimo dia do mês sete de 2007 ficava marcado pela leveza dos corpos de bailarinos que esvoaçavam por entre figurantes em suspensão nos ares, rivalizando com o deslumbrante talento de Jennifer Lopez e o magnífico aparato cénico de efeitos luminosos e pirotécnicos que precederam a apoteótica revelação das Novas Sete Maravilhas do Mundo: Grande Muralha da China; Petra, na Jordânia; Cristo Redentor, no Brasil; Machu Picchu, no Peru; Chichén Itzá, no México; Coliseu de Roma, na Itália; e Taj Mahal, na Índia. O mundo acabaria por escolher o Taj Mahal como a primeira Maravilha do nosso planeta!!!

“Mêbêdê” não pôde assistir àquele extraordinário evento. Na “oitava” maravilha do mundo os avanços da tecnologia registados nas últimas décadas estão condicionados pela interioridade e pela má distribuição da riqueza produzida neste “retangulozinho” a que chamamos Portugal. Os operadores de telecomunicações continuam a não investir na instalação de equipamentos receptores na sua Aldeia natal (realidade sentida/sofrida igualmente noutros lugares afastados dos grandes centros urbanos), impedindo, assim, que a população local beneficie de uma boa cobertura da rede de telefones móveis e tenha acesso aos quatro canais televisivos de “sinal aberto”...

Ali, na Aldeia, quem quiser ver televisão na sua própria casa só tem como opção os canais 1 e 2 da televisão pública. Os outros canais apenas são sintonizados com recurso aos sistemas de cabo ou de satélite, mas isso custa uma “pipa de massa” e ninguém tem posses para “tanto luxo”. Somente o Café do Zeca está equipado com tecnologia adequada à recepção de imagens e sons dos canais privados, e é lá que os apreciadores das notícias sensacionalistas dos jornais da TVI e das novelas “infantilóides” (primeiro Floribella, depois Chiquititas, já não há pachorra!…) da SIC vão “matar a fome” dos programas de sua preferência.

Naquele sábado quente de Julho, “Mêbêdê” ficou em casa a cavaquear com a família, tendo como “ruído de fundo” o “Dança Comigo” da Catarina Furtado, que passava na RTP 1 e ao qual ninguém ligou “bóia”. A praia era o tema de conversa. No dia seguinte iriam desfrutar das águas límpidas da ribeira e era preciso organizar tudo muito bem: preparar o farnel, reunir os baldes e as pás de brincar, as toalhas e os calções de banho dos adultos e da criançada. Enfim, o plano estava já traçado e as tarefas distribuídas. Toda a gente se ocuparia do que lhe competia. A primeira condição seria cumprida em menos de nada: dentes lavados e toca a dormir!

No dia 8, domingo, a pequenada não precisou do chamamento dos mais velhos para saltar da cama. Ainda mal o galo cantara e já a miudagem cuidava da sua higiene da manhã. O tempo prometia ser quente e solarengo, propício a grandes banhos e animadas correrias e brincadeiras. Após o almoço, servido em jeito de piquenique, quem quisesse podia gozar de uma aprazível sesta sob a refrescante sombra das árvores que rodeavam o areal. Bom, para encurtar razões, resta concluir que o dia foi verdadeiramente inesquecível. À noite, o “pessoal” estava tão cansado, tão cansado, que, após a “janta”, apenas o “Mêbêdê” não sucumbiu ao sono.

A selecção portuguesa de futebol sub-20 jogava com a sua congénere da Gambia e o canal 1 da RTP transmitia o jogo em directo, desde as 22h15. O encontro decidia o apuramento da equipa das “quinas” para os oitavos-de-final do Mundial, e só por isso é que ele não acompanhou o resto da família a caminho de “vale de lençóis”. Lá fora, à hora do intervalo do jogo, escondido dos olhares das gentes, um vulto furtivo rondava a arrecadação de uma das casas vizinhas. Após soarem as badaladas das 23h00 no sino da igreja Matriz da Aldeia, o visitante nocturno pulou agilmente a janela e depois fugiu de saco bem aviado. “Mêbêdê” não deu por nada!

A meio da manhã seguinte, dia 9, segunda-feira, “Mêbêdê” decidiu dar um pequeno passeio higiénico pela Aldeia, enquanto meditava em voz alta sobre “O Inspector Fidalgo e Caso Anaquicoínes”, um estranho e surrealista problema que encerrava a temporada 2006-2007 do PÚBLICO-Policiário, ao qual teria de dar resposta até ao final do dia, quando, de súbito, deu de caras com o vizinho e primo “Manel da Eira”, que estava verdadeiramente de “trombas”. E o caso não era para menos. Durante a noite, alguém tinha galgado a janela da arrecadação onde ele guarda a criação e surripiado um dos seus mais opulentos coelhos.

O autor do roubo havia deixado marcas do seu calçado nos sacos de ração e de adubo que estavam depositados sob a janela, no interior da arrecadação, o que podia ser uma excelente pista para descobrir quem fora o larápio – pensou logo o “Mêbêdê”, que, dando asas às suas inatas qualidades de investigador, passou de imediato à acção. O seu “faro” levou-o até uma recôndita adega onde três populares e castiços amigalhaços se debatiam com um suculento e bem cheiroso coelho guisado, acompanhado de uma boa pinga. Assim que aqueles o avistaram, “Mêbêdê” foi convidado a “juntar-se à mesa”, mas recusou com delicadeza, alegando que já tinha almoçado.

O recém-chegado aproximou-se dos convivas e atirou-lhes de chofre uma pergunta que levava água no bico: «Onde é que vocês se meteram ontem à noite? Estive no Café do Zeca e não os vi por lá…». Os três compinchas responderam quase em uníssono que estiveram no Café do Zeca, sim senhor. Foi lá que viram o Telejornal, garantiram. Só bem perto das despedidas do José Eduardo dos Santos é que cada um deles foi para suas casas, deviam ser para aí nove e picos. E não saíram do Café sozinhos. Pelo menos o “Toino Pipo” ia muito bem acompanhado. Levava com ele uma tal “cardina de caixão à cova”, que nem se lembra como foi parar à cama.

“Mêbêdê” sorriu com os dentes todos na cara do gordo, atarracado e bebedolas “Toino Pipo”, e pensou: Um homem assim, com este peso e volume, e ainda por cima baixote, só conseguiria galgar a janela da arrecadação do “Manel da Eira” com a ajuda de uma plataforma elevatória. Não, não foi ele quem afanou o coelho. Terá sido um dos outros dois, mas qual deles? «Atchim» – espirrou o “Xico d’Avó”, que fez logo questão de explicar como é que o sujeito anafado deu com a sua casa na noite anterior: «Fui eu que o levei de rastos… atchim… com muito custo, até ao cimo da vila, e ajudei a mulher dele a metê-lo na cama… atchim, atchim, atchim».

Depois de vários “atchins” e duas ou três ruidosas assoadelas num guardanapo de papel, o “Xico d’Avó” lá continuou o relato: «Deixei o “Toino Pipo” a dormir e só então é que fui para minha casa… atchim… e mal cheguei… atchim… preparei uma caneca de café forte com mel e aguardente… atchim… para atacar esta constipação… atchim… que não me larga há mais de “sete quinze dias”… atchim… atchim». Não, este também não pode ter sido o ladrão do coelho. Com tão estridentes e constantes espirros, acompanhados de sonoras assoadelas, o “Manel da Eira” teria dado conta de que lhe estavam a ir ao co-elho, pelas suas costas, na arrecadação!...

Faltava ouvir o “Jaquim Meia Ó”, que também não perdeu tempo a usar da palavra. Limpou as beiças, ajustou o colarinho da impecável camisa branca, sacudiu as migalhas de pão caídas sobre o seu colo vestido de calças negras bem vincadas, e botou discurso no seu habitual tom castiço: «Eu fui directo do Café do Zeca para casa. Quando cheguei, a patroa estava especada em frente à televisão e ficámos à conserva até lhe dar o sono. Ela foi para a cama por volta das dez. Meia hora depois eu fiz o mesmo, já a patroa roncava. Ainda se estivesse a dar alguma coisa de jeito na televisão… Mas não, aquilo era tudo uma xaropada, tanto na 1 como na 2!»

Para rematar, o “Jaquim Meia Ó” afirmou que, antes de se deitar, foi até à janela («já passava das onze» – disse ele) e viu uma sombra junto da casa do “Manel da Eira”, transportando um saco que estrebuchava. Estava descoberto o mentiroso, o troca tintas, só faltava provar que ele era também o ladrão! Ora vejamos: Primeiro, o “Jaquim Meia Ó” contradiz-se quanto ao local exacto onde estava entre as dez e meia e as onze e picos. De facto, não se percebe se já dormia ou se apanhava fresco à janela. Como também não se entende que ele não tenha identificado o “dono” da sombra que avistou, mas haja conseguido ver claramente o “estrebuchante” saco que aquele transportava.

Depois, o que é ainda mais incongruente no discurso de “Jaquim Meia Ó”, é que, ao contrário do que ele afirmara, o que “dera” na televisão não era nada uma xaropada. Sobretudo para ele, que era um fervoroso adepto e profundo conhecedor das coisas da “bola”. Naquela noite, os “miúdos” orientados pelo ex-sindicalista, ex-director desportivo do Alverca e ex-treinador do FC Porto discutiam com a selecção da Gambia a sua continuação na fase final do Campeonato do Mundo de Futebol na categoria de sub-20, e o canal 1 da TV do Estado fazia a transmissão directa e integral do jogo, a partir do relvado do Estádio Olímpico de Montreal, no Canadá.

“Jaquim Meia Ó” sabia da importância do desfecho do jogo, pelo que nada deste mundo o afastaria do pequeno ecrã. Bom, nada excepto uma caçada nocturna não autorizada na arrecadação onde o “Manel da Eira” guarda galinhas e coelhos!!! E mesmo assim, só o fez mais ou menos durante o intervalo, por volta das onze da noite, para não perder pitada do jogo, correndo o risco de ser apanhado em flagrante. A publicidade comercial não é coisa que desperte muito interesse a quem pouco tem, pelo que o “Manel da Eira” estaria com os ouvidos mais atentos. Até porque os rapinanços na Aldeia tinham aumentado e qualquer ruído levantaria suspeitas.
Valeu ao larápio o barulho dos sinos da igreja… e o facto da janela da arrecadação estar entreaberta!... Quanto às requintadas badaladas dotadas de moderno tratamento electroacústico, o “Jaquim Meia Ó” podia até estar a contar com elas como suas “aliadas”, para que encobrissem o ruído provocado pelos seus passos, pela eventual necessidade de rebentamento da porta da arrecadação e pelo “espernear” dos coelhos. Mas o que ele nunca contou, quase de certeza, foi que o “Manel da Eira” se esquecesse de uma janela entreaberta no “local do crime”, que veio mesmo a calhar. Ao deparar-se com a porta intransponível, o homem não foi de modas: saltou pela janela!

“Mêbêdê” tinha consciência de que, mesmo perante todas as evidências que atrás se enunciam em abundância, o “Jaquim Meia Ó” poderia sempre negar o seu envolvimento no roubo do coelho. Tornava-se, por isso, necessário exibir provas irrefutáveis da sua “assinatura” na autoria do delito, o que não era difícil. Recorde-se que a terra que ladeia a arrecadação estava mole, devido à habitual “rega ao sol-posto” que revigora cultivos… e enlameia calçado!... Tal facto determinou que os sapatos do ladrão deixassem as suas marcas nos sacos de produtos que alimentam plantações e sementeiras (uns) e… galináceos e láparos (outros).

Para dissipar quaisquer dúvidas quanto às suspeitas aqui aduzidas bastava comparar as marcas deixadas no interior da arrecadação com o tamanho, tipo e formato dos sapatos invariavelmente usados pelo “Jaquim Meia Ó”, verificando igualmente a existência de uma espécie de auréola brilhante presente em cada pegada, resultante do material lustroso que aquele aplica com frequência no seu calçado. O peso do “Jaquim Meia Ó” obrigou a que os seus pés se “afundassem” alguns centímetros nos sacos de adubo e ração, deixando por lá vestígios de graxa ou de qualquer outro produto com que dá brilho aos seus “calcantes”!!!


MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 3

UM ÁLIBI IRREFUTÁVEL, de Marvel

O dono da espelunca semi-clandestina acolheu a polícia com óbvias reservas, mas dispôs-se, pressuroso, a colaborar e esclarecer. “Até onde pudesse.” Não sabia nada do telefonema anónimo que alertara a esquadra para um gastador compulsivo, referenciado como sem cheta usual, a fainar ali na tasca; mas, de facto, aparecera, havia o seu bocado, um tipo – o Faneca, palrador e remexido, que juntara companhia a uma mesa e pagava rodadas.
– Tinha a língua solta e desabrida. Vi-me quase obrigado a mandá-lo ter modos um par de vezes; mas, enfim, é preciso olhar pela vida e ele lá pagar, pagava.
Outro dono, este de um quiosque, fora atacado à paulada e roubado, quando se aprestava a encerrar o estabelecimento, não longe dali. Acabara por morrer.
– Isso é mau, por cá não constou nada. Olhe, o Faneca é aquele, acolá.
– Há quanto tempo está ele aqui? O agente revia mentalmente um extracto do relatório médico preliminar: “… morte ocorrida entre as 22,15 e as 22,30, em consequência de hemorragia…”
– Não sei ao certo, mas seguramente que às 10 já cá estava. Calhou que olhasse o relógio.
– Ele ausentou-se alguma vez?
– Lá para uma mija, ali atrás, isso foi. Agora, ir defronte, à Micas, dar a sua “rapidinha”, olhe, nem isso; posso garantir.
Aferroado, o Faneca:
– Algum tinhoso de merda, que não pode ver alguém abonado, quis tramar-me, hem? Pois terá notícias minhas. Aliás, estou a cismar num mânfio ou dois… Credo, como embirro com chibos! Até dói! O dinheiro nem é muito, mas é meu, ganho com o suor do rosto, que não ando às carteiritas nem ao fio de cobre. Que sei eu de pauladas e de mortes? Nadinha! Vejam lá os senhores guardas que não falta aqui gente da boa que me presta um álibi irrefutável, ou lá como vocês dizem. Não me mexo daqui há montes de tempo.
Pergunta-se:
– Será assim tão irrefutável o álibi do Faneca?
– Porquê?


SOLUÇÃO de Inspector Boavida

Deviam ser umas onze horas da noite quando a notícia chegou ao piquete de serviço na Judiciária: um pobre homem, proprietário de um quiosque, fora encontrado morto no meio de uma poça de sangue. O médico legista assegurou que a morte ocorrera, devido a hemorragia, entre as 22h15 e as 22h30. Depois de uma breve pesquisa de indícios, não restavam dúvidas: a vítima fora atacada à paulada, quando fechava a “tenda”, por alguém que se quisera apropriar dos “trocos” que o negócio da venda de jornais, revistas, tabaco e bijutarias, rendera naquele dia. Um telefonema anónimo, entretanto recebido, parecia insinuar que um homem que se encontrava naquele momento numa tasca vizinha, a desbaratar dinheiro em rodadas de bebidas oferecidas a amigos e desconhecidos, estaria relacionado com o crime.

O dono da tasca não ficou lá muito agradado com a visita da Polícia. A sua “baiuca” não vivia na completa legalidade e qualquer ilícito ali cometido por algum dos seus clientes habituais ou frequentadores de ocasião poderia muito bem dar azo à suspeita de incumprimento das leis e normas que regem o funcionamento dos estabelecimentos comerciais, originando, quem sabe, uma posterior visita indesejável da temível ASAE, que anda por aí, por tudo o que é sítio, a fechar restaurantes, talhos, cervejarias, feiras e mercados. Pelo sim e pelo não, não fosse o diabo tecê-las, o melhor era mesmo colaborar na medida do possível com a “bófia”. Tal facto poderia até servir de atenuante para qualquer problema relacionado com o seu negócio, que viesse a ser suscitado durante aquela inesperada visita nocturna dos “chuis”.

O taberneiro não sabia nada do telefonema anónimo nem tão pouco da morte do homem do quiosque. E quanto a um tipo que andava sempre na penúria, sem cheta que se visse, e que agora se comportava como se lhe tivesse saído o “euromilhões”, pagando copos a toda a malta que conseguia reunir à sua mesa, só podia ser o Faneca, que tinha lá entrado há um bom bocado. O dono da tasca lembra-se que olhou, por mera casualidade, para o relógio quando eram dez horas e o Faneca já lá estava. A partir daí, esteve sempre de olho nele, porque o seu comportamento começou a ser muito pouco recomendável mesmo para uma tasca como aquela, e garante que o “bicho” não saiu do seu ângulo de visão a não ser por breves instantes quando foi à casa de banho aliviar a bexiga. Tirando o tempo da “mijinha”, o “mangas” esteve sempre à vista de todos.

Ao ser abordado pela Polícia, o Faneca mordeu logo o isco. Destilou ódios e praguejou ameaças sobre um ou dois “mânfios”, que, segundo ele, apenas o queriam tramar. Mas ao declarar que “topava” quem eram os seus “inimigos” («uns carteiristas e vendedores de cobre…»), e ao classificá-los de chibos, dava sinais de que alguém sabia ou suspeitava do seu envolvimento num delito e teria dado com a língua nos dentes. Palrador de rédea solta, Faneca desatou a falar do dinheiro que é “seu” e de pauladas e mortes sobre as quais garantia nada saber. E “desmascarou-se” mais uma vez, porque momentos antes o “tasqueiro” assegurara que ali, na sua “espelunca comercial”, não se soubera nada daquilo que a Polícia então lhe relatara, longe dos ouvidos do Faneca, que se encontrava… «acolá» (afastado, portanto, do local da conversa).

Faneca sustentava que o pessoal com quem convivia e bebericava naquela noite era tudo “gente boa” que podia muito bem testemunhar a hora da sua chegara à tasca, o que constituiria na sua opinião um álibi irrefutável. O Faneca estava redondamente enganado! Primeiro, porque voltara a “denunciar” o seu envolvimento no caso que vitimara o homem do quiosque ao fazer referência ao momento da sua chegada à tasca, “revelando” assim, mais uma vez, saber qual o acontecimento em investigação e a hora da ocorrência, coisa que a Polícia não lhe divulgara até então. Segundo, porque o falecimento da vítima ocorreu entre as 22h15 e as 22h30, por… hemorragia. Ou seja, a agressão poderia ter tido lugar muito tempo antes do Faneca se ter “refugiado” na tasca a pagar sucessivas rodadas de vinho para toda a “gente boa” que aparecesse.

De acordo com os dados recolhidos pela Polícia, a agressão e o roubo foram cometidos no momento em que o homem do quiosque se preparava para fechar a “loja”, o que acontece por norma em “negócios” desta natureza antes da hora do jantar, depois do povo sair dos seus empregos, de regresso a casa, e comprar o último maço de tabaco do dia ou a revista cor-de-rosa que traz na capa o mais recente escândalo do jet-set nacional. A partir das oito e meia/nove da noite, já não há quase vivalma na rua, pelo que não vale a pena manter o negócio aberto. Até porque na manhã seguinte é preciso voltar a abrir o “estaminé” bem cedo para “oferecer” de novo à gente que passa apressada, a caminho de mais um dia de labuta, a informação que faz as manchetes dos “frescos” matutinos expostos na banca e nos escaparates do quiosque.

Mal sabia o homem do quiosque que nas páginas interiores dos jornais da manhã seguinte a sua morte acabaria por ser título de notícia: «Homem Morto à Paulada. No silêncio da noite, escondido entre as sombras da luz ténue da lua em quarto minguante (ops, peço desculpa, esta coisa da lua diz respeito ao problema anterior!...), um energúmeno com nome de peixe avançou sorrateiro, pé ante pé, de pau na mão, e desferiu sucessivos golpes na cabeça de um pobre homem, proprietário de um conhecido quiosque, até este cair, inanimado, a esvair-se em sangue. O meliante apoderou-se depois da receita das vendas e esgueirou-se para uma tasca mal afamada, onde consumiu boa parte do produto do roubo em copos de vinho. O homem do quiosque acabou por falecer algum tempo depois, em consequência de hemorragia».

O caso acabaria por ser ainda pretexto para a TSF Rádio Notícias subordinar o seu Fórum diário ao tema “segurança e criminalidade”, dando a palavra ao vastíssimo auditório daquela emissora. Os ouvintes que conseguiram entrar “em antena” foram unânimes nas suas considerações quanto à morte do homem do quiosque e ao “álibi irrefutável”: «Mas qual álibi irrefutável, qual quê? – disse um –, então não se está mesmo a ver que o miserável Faneca limpou o “sarampo” ao homenzinho do quiosque. A traulitada e o roubo aconteceram antes dele ir “enfrascar-se” na tasca. A morte é que foi depois. Então o médico legista não disse que a causa do falecimento do pobre homem foi a perda de sangue?! Está-se mesmo a ver que a vitima primeiro levou no “toutiço” e só muito tempo depois é que foi “desta para melhor”».

A morte do homem do quiosque apaixonou de tal maneira a opinião pública que até o criminalista e autarca Moita Flores comentou o caso no Programa “Fátima”, da SIC: «Vamos lá ver. Se o médico diz que o homem morreu entre as 22h15 e as 22h30, significa que a Polícia apareceu no local do crime depois daquele espaço temporal. Admitamos que chegou lá às onze, pronto. Recolheu indícios, registou o telefonema anónimo e só então se dirigiu à tasca onde estava o tal Faneca. Não sabemos se a pessoa que fez o telefonema assistiu à agressão e ao roubo, o que podemos concluir é que estranhou o facto de um homem cronicamente “teso” como o Faneca estar a desbaratar dinheiro a rodos. Mas quem acabou por se denunciar foi ele próprio. Nenhum inocente reage daquela maneira, indiciando saber… o que devia ignorar».

Também um outro criminalista e ex-inspector da PJ, o bruto Barra da Costa, foi chamado a comentar o caso do “álibi irrefutável” no Jornal da Tarde, da RTP, tendo afinado pelo mesmo diapasão do seu antigo colega da Judite: «Deixemo-nos de tretas. Estamos para aqui a perder o nosso tempo com um assunto tão óbvio, obviamente tão óbvio, tão obviamente óbvio, que obviamente até o incompetente detective Smaluco o resolveria em menos de um fósforo». Confrontado com estas declarações pela TVI, o popular detective que marca regularmente presença nas páginas do Público, pelo menos uma vez por ano, escusou-se a fazer comentários, remetendo o assunto para o seu substituto Boavida. Este, por sua vez, afirmou que só prestaria declarações ao Almeirinense, com o qual alegou ter obrigações éticas e morais de exclusividade.

Sequiosa de notícias escaldantes e sensacionalistas, a Televisão dirigida pelo marido da Manuela Boca Guedes contactou a chefia de redacção do periódico de Almeirim, que, por seu turno, delegou nos Zés de Viseu, da Vila e dos Anzóis a responsabilidade pela prestação dos esclarecimentos devidos sobre o assunto. Os três Zés reuniram de emergência e, depois de uma muito profunda e laboriosa reflexão, decidiram em conformidade com o Regulamento dado à estampa em Julho de 2007: «A solução deste caso será apenas tornada pública no próximo dia 15 de Dezembro, na secção Mundo dos Passatempos do jornal Almeirinense e no site Clube de Detectives do actual campeão nacional de decifração do PÚBLICO-Policiário, Daniel Falcão, conhecido entre os policiaristas como o tsunami de Braga».


MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 4

A MORTE DE ANÍBAL CALDEIRA – O BANQUEIRO, de Sete de Espadas

Uma vez, já lá vão muitos e muitos anos, lembro-me que, no célebre Café Martinho (hoje, um banco), onde, ao tempo, se reunia uma das mais numerosas e aguerridas Tertúlias da época, em conversa com o Joe Match – não sei se vocês se recordam dele e do seu perfil esguio, cabelos levemente aloirados, de casaco axadrezado e sempre sobraçando milhentos “problemas de Rádio”, até chegar a essa formidável “invasão da Terra pelos marcianos”!... – dizia-me ele:
– “Sete”, fiz um problema que é uma espécie de sinopse de um grande relatório – assim como o extrair, de um texto grande, só o que “nos convém”!
– Já não é a primeira vez… respondi! Tens em “Um Crime a Bordo”, de Dennis Wheatley, o “clássico” do género: Cópias de telegramas… Relatórios… Apontamentos do agente investigador… Fotografias dos quartos… Inventários dos objectos… Fotografias de todos os suspeitos… Impressões digitais… Cabelos… Pontas de cigarros… Fósforos queimados… até chegares à própria confissão, escrita, do assassino…
–Não é bem isso, “Sete”!... Isso é demais para mim… O que pretendo é mais ou menos isto…
E, sem me dar tempo para mais, já estavam folhas de papel estendidas pelo amplo tampo de mármore da pesada mesa, onde as mãos esguias do Joe Match seguravam e garatujavam os seguintes elementos:
1) Aníbal Caldeira é um conhecido banqueiro que aparece morto, no seu gabinete, à 1 hora da madrugada de 9 de Abril…
2) Lualda, sobrinha, é quem dá com o corpo, quando vai desejar “boa-noite” ao tio…
3) O corpo está caído de costas, ao comprido, sobre a alcatifa, segurando na mão direita uma Star… com silenciador…
4) De cabelos em desalinho, face magra contraída, lábios fortemente cerrados, tem um orifício quase a meio da testa, sobre o sobrolho direito, de onde partia um fiozinho de sangue já coagulado…
5) Apesar da sua fortuna pessoal ser considerada significativa, os negócios do banqueiro – segundo investigações feitas – corriam mal…
6) Pelo testamento encontrado, era beneficiária a sobrinha, que retiraria 1/3 do “bolo” para o secretário e pequenos legados para os serviçais…
Achei, quanto a mim, que a ideia estava a ser bem esquematizada e logo ele me atirou com novas “fichas” – a que pomposamente dava o título de “extractos dos interrogatórios”…
Cozinheira:
Esperava Lualda na cozinha, quando esta entrou a correr, gritando que o tio estava morto… Acordara depois o criado, participando-lhe o facto…
Criado:
Afirmara que o banqueiro estava vivo à meia-noite e meia hora, quando lhe fora levar o habitual cálice de “gin”, que o banqueiro sempre bebia antes de se deitar… Depois, ele próprio se fora deitar, só acordando quando a cozinheira o chamara…
Secretário:
Fora ao cinema… Regressara perto da meia-noite e encontrara Lualda no corredor, quando ela se dirigia para a casa de banho. Ele subira para o seu quarto, no primeiro andar… Mas, antes de subir, e ao passar pela porta do gabinete de Aníbal Caldeira, tivera a impressão de que qualquer coisa pesada caía… Ainda estivera para bater, mas, depois, pensara nas cenas do filme policial que vira e rira-se, por se julgar influenciado… Afinal… Só quando sentira grande reboliço por toda a casa descera, tendo, então, a cozinheira, Lualda e o criado contado que o banqueiro estava morto… Telefonara imediatamente à polícia, visto que ainda ninguém o fizera… E fora, depois, ao gabinete da vítima, ver o corpo… Aí, encontrara aquele pedaço de vidro oblongo, que lhe parecera do relógio do patrão… (Não se confirmou.)
Aqui, olhámos um para o outro… Sorrimo-nos… Vários pormenores – aqueles pequenos nadas que jamais passam despercebidos a qualquer “detective”… – faziam-nos pensar no “problema” que era a morte do banqueiro… e que esta fora um…

Deixei que o Joe arrumasse todas as suas folhas e “fichas” dispersas…
E… muitos anos depois – esta história passou-se, algures, no fim de uma tarde ventosa e húmida de Dezembro de 1948 e foi escrita em 1975 – cabe-me perguntar:
1 – Crime ou suicídio? Porquê?
2 – Faça um relatório do caso, focando todas as contradições…


SOLUÇÃO de Inspector Boavida

A acção decorre nos idos de quarenta e oito do século passado, no célebre Café Martinho. Dito assim, desta maneira, poder-se-á pensar que estamos a falar do Martinho da Arcada, lugar de culto de alguns dos nossos maiores nomes de sempre das artes e das letras, desde Marcelino Mesquita a Manuel Silva Gaio, de D. João da Câmara a Gualdino Gomes, de Heliodoro Salgado a Levy Marques da Costa, de João Chagas a Eugénio de Castro, de Abel Botelho a Rafael Bordalo Pinheiro, de Guerra Junqueiro a Fialho de Almeida. Local indissociável da vida de Fernando Pessoa, onde o poeta “pensou” e escreveu grande parte da sua imensa obra, o Martinho (da Arcada) é, porém, um dos poucos Cafés lisboetas que ainda não se transformaram numa sucursal de qualquer instituição bancária.

Este Martinho (o da Arcada) nasceu em 7 de Janeiro de 1782, com a designação de Casa da Neve, tendo ostentado vários outros nomes ao longo da sua história. Em 1784 chamou-se Casa de Café Italiana e, mais tarde, a partir 1795, passou a designar-se Café do Comércio. Em 1824 o seu nome oficial mudou para Café da Arcada do Terreiro do Paço e, seis anos mais tarde, passou a chamar-se Café Martinho, designação que mantém até hoje. Martinho era o apelido do seu dono dessa altura, que o quis distinguir (com o “da Arcada”) de outro estabelecimento que abriu com o nome de Café Martinho (do Camões), situado no então Largo de Camões (actualmente Praça D. João da Câmara, junto ao Rossio), que foi espaço de grandes e animadas Tertúlias policiárias e outras, até se transformar (este sim!) num banco.

O Martinho (do Camões e, depois, do Rossio…) foi o Café mais importante de Lisboa. Nele reuniram várias gerações de intelectuais, que o tornaram famoso pelas desinteligências políticas e literárias que ali protagonizaram. Inaugurado em finais de 1846, foi palco, logo no ano seguinte, da peleja entre o Batalhão Académico e os Batalhões do Algarve e da Carta, com copos, chávenas, garrafas, pratos, açucareiros, bandejas, espelhos, tampos de mármore e bancos a esvoaçarem pelos ares. Entre 1950 e 1953, o Martinho foi transformado em Cervejaria. Em Maio de 1968, fechou as suas portas e em Outubro desse ano reabriu como Banco do Alentejo, sendo nos dias de hoje um balcão do BPI. Foi neste Café que Joe Match deu o mote para que Sete de Espadas escrevesse em 1975 “A Morte de Aníbal Cabrita – O Banqueiro”.

Agora que estamos “situados” no local (Café Martinho, o do Rossio) e na data da acção (Dezembro de 1948, segundo o decano do policiarismo português), passemos à frente, ao fio da história. O então ainda jovem e agora velho, mas sempre novo, Sete de Espadas, estava sentado em frente a uma bica “perdida” entre livros policiais e um bloco de notas, onde ia escrevendo o texto do próximo número da secção que orientava. De súbito, a sua atenção foi desviada pela chegada de um adolescente que nutria uma enorme paixão pela literatura policial, de ficção científica e fantástica, bem como pela produção e decifração de problemas policiários, que se vinha afirmando como locutor na extinta Rádio Peninsular, depois de uma breve mas promissora experiência na emissora do Liceu Pedro Nunes. José Matos Maia era o seu nome.

Matos Maia, conhecido pelo pseudónimo de Joe Match, antes de se transformar numa das mais respeitáveis vozes da rádio portuguesa, como animador, produtor, gestor e realizador, era presença assídua nas tertúlias do Café Martinho. Ele tinha aparecido no policiarismo com apenas 15 anos, participando na secção que o Sete orientava na revista Camarada, e cerca de três anos depois já dirigia uma rubrica na publicação Mundo Ri, espaço que manteve durante largo tempo. Na sua cabeça fervilhavam ideias em turbilhão, que viria a materializar mais tarde nas andanças pelos “postos amadores” das ondas hertzianas lisboetas, entre os anos 40 e 50 do século findo, com os programas de índole policiária A Hora do Crime e Um Disco… Um Tiro!, culminando mais tarde com a célebre Invasão dos Marcianos, na Rádio Renascença.

Não admira, portanto, que o jovem Joe Match tenha entrado no Café Martinho naquela húmida e ventosa tarde de Dezembro carregado de fichas e de muita outra papelada dispersa, para desassossegar o Sete com mais um novo e original problema policial. O enigma em apreço envolvia a morte de um banqueiro, ocorrida na sua própria casa, que coabitava com um secretário, um criado, uma cozinheira e uma sobrinha. Foi esta que descobriu o corpo da vítima, quando se deslocou ao seu gabinete de trabalho para se despedir dele com um beijo de boa-noite. O tio jazia ao comprido no chão, caído de costas sobre a alcatifa, com uma arma na mão. Suicídio – pensou ela. O desespero do brutal e inesperado choque sofrido obstou a que ela reparasse em pormenores denunciadores do contrário.

Se o estado emocional da sobrinha do banqueiro o permitisse, ela teria dado conta de alguns elementos que contrariam a tese de suicídio. Os cabelos em desalinho, o semblante contraído e os lábios fortemente cerrados do tio, indiciam que alguém lhe terá “mexido” na cabeça e que ele estaria aterrorizado no momento da morte, o que não aconteceria se fosse o próprio a pôr termo à sua vida. As marcas da bala (um furo…) que o vitimou, atingindo-o quase no centro da testa por cima do sobrolho, reforçam a convicção de que se está perante um homicídio. Em caso de suicídio, o tiro teria de ser disparado com a arma encostada à cabeça, ou muito próxima desta, na fronte e nunca no meio da testa, provocando queimaduras no local do embate do projéctil e uma ferida “bastante feia”, nunca um simples orifício!

Convém sublinhar também a completa impossibilidade de o corpo de um suicida, que atente contra a sua vida com um tiro, cair ao comprido de costas no chão… conservando, ainda por cima, a arma na mão depois da queda. Numa situação destas, o corpo cai “redondo” no chão, como se se tratasse de uma qualquer outra estrutura física em colapso, desmoronando por falta de sustentação dos seus alicerces de base (neste particular, os pés, as pernas…). Ao desfalecer, o corpo perde toda a acção, deixando os seus músculos e membros de possuir qualquer força ou reacção, jazendo inerte no local onde tomba. Por outro lado, em caso de suicídio, mesmo que a força e a pressão feitas no momento do disparo permitisse que a arma “assassina” permanecesse na mão que a accionou, ela soltar-se-ia naturalmente face à queda do corpo.

Completamente fora de si, fortemente abalada pelo acontecimento, sem discernimento para mais nada, a sobrinha do banqueiro correu até à cozinha aos gritos e em pranto, anunciando a morte do tio. A cozinheira apressou-se a chamar o criado, que supostamente já se encontrava a dormir, pedindo-lhe ajuda, mas todos pareciam ter ficado siderados, sem saber como proceder perante tão triste e grave situação. Valeu-lhes o secretário da vítima, que, ao sentir um enorme reboliço na casa, descera entretanto do seu quarto para se inteirar do que se estava a passar. Ao tomar conhecimento da tragédia, telefonou de imediato para a polícia e só depois (?!...) é que se deslocou ao gabinete de trabalho do banqueiro, onde confirmaria o que ouvira da boca da sobrinha do patrão e dos seus serviçais.

Enquanto esperava pela chegada das autoridades, o secretário afirmou que na noite anterior tinha ouvido um estranho barulho, como se fora de algo pesado a cair, quando passou pelo gabinete do banqueiro. Ainda pensou em bater à porta para ver o que se passava, mas não o fez por ser já quase meia-noite e porque julgou estar a ser sugestionado pelo filme a que acabara de assistir. O criado, por sua vez, garantiu que o patrão estava acordado à meia-noite e meia, quando lhe foi levar um cálice de “gin”, como era hábito fazer todos os dias antes de recolher ao seu quarto de dormir. Estranho! Se o banqueiro foi encontrado morto à uma da madrugada e o criado diz que ele ainda estava vivo meia hora antes, como se explica que o fiozinho de sangue que lhe saía do “furo” exposto no meio da testa estivesse já coagulado?!

Começava a desvendar-se finalmente o mistério da morte do banqueiro. Abril tinha nascido há nove dias e a Primavera instalara-se há pouco mais de uma quinzena. Estávamos em meados do século vinte, o buraco do ozono e as alterações climáticas que são agora um pesadelo para a Humanidade ainda não se faziam sentir e as Estações do Ano cumpriam-se em toda a sua normalidade, sem desvios de monta. O tempo não estava suficientemente quente para que o banqueiro tivesse o seu gabinete arrefecido (na altura ainda não havia ar condicionado, mas existiam outros processos que produziam os mesmos efeitos…) nem a época do ano proporcionaria temperatura ambiente capaz de coagular sangue em pouco mais de trinta minutos/uma hora, pelo que não se pode crer que o criado tivesse visto o banqueiro… vivo à meia-noite e meia.

O corpo fora encontrado à uma da manhã. O pormenor do fio de sangue (já coagulado!...) que brotava do local por onde a bala penetrara não foi observado pela sobrinha, com certeza. Ela não iria estar preocupada com esses detalhes no momento em que descobriu o corpo do tio. Também não temos a absoluta certeza de que aquela observação tenha sido feita pelo secretário, embora o possamos admitir como provável, sendo muito mais natural que tal facto tivesse sido detectado pela polícia durante as investigações. Em qualquer dos casos, o sangue não podia já estar coagulado! Se a descoberta foi feita pelo secretário, pouco passava da uma da manhã; se foi a polícia que o fez, seria uma e meia/duas da madrugada (a PJ não perde muito tempo quando é chamada para casos onde se registam mortes por arma de fogo).

Partimos do princípio, porém, que foi o secretário a detectar os pormenores que contrariam a tese de suicídio, que temos vindo a destacar, porque se tivesse sido a PJ a fazê-lo teríamos com certeza sido informados de aspectos que reputamos de vital importância para uma análise mais objectiva da ocorrência, nomeadamente: a existência (ou não) da cápsula da bala assassina no local do crime; a quantidade de sangue encontrado no gabinete do banqueiro, sua localização exacta e estado de “coagulação”; a presença (ou não) de impressões digitais na pistola e/ou no silenciador; a descoberta (ou não) de cabelos da vítima em local distante do sítio onde o corpo foi encontrado… Decididamente ficamos por aqui: o relato de Joe Match sobre a disposição do corpo do banqueiro e seu aspecto tem origem na observação feita pelo secretário.

Bom, continuemos então. O barulho que o secretário ouvira um pouco antes da meia-noite ao passar pela porta do gabinete poderia ter sido o resultado da queda do corpo da vítima, após o tiro (que não se ouvira porque fora disparado por uma arma munida com silenciador), ou provocado pelo assassino quando este montou a encenação do suicídio, arrastando o corpo do banqueiro pelo chão, facto que pode justificar a razão do seu “cabelo em desalinho”… Durante aquele “trabalhinho”, o homicida terá perdido um pedaço do seu relógio, uma vez que não se confirmou ser da vítima o estilhaço de vidro oblongo encontrado no local do crime. Considerando que à época não se comercializavam produtos “unisexo” e que o tipo de relógio a que pertencia o vidro era de um indivíduo masculino, o assassino só pode ter sido um homem.

Ou será que o vidro encontrado não era de um relógio, mas sim de um cálice… onde fora servido “gin” muito antes da hora habitual?! Talvez… Recorde-se, entretanto, que a sobrinha do banqueiro estava a caminho do seu banho nocturno e a cozinheira esperava por ela na cozinha quando o secretário regressou da sua ida ao cinema, algum tempo antes de ter passado junto à porta do gabinete do patrão e de ter ouvido o “tal” barulho que lhe pareceu ser de algo pesado a cair. Era provavelmente o corpo da vítima a tombar, depois de abatido a tiro. Mas a tombar em cima de quê? Em cima da alcatifa, é pouco provável! Se assim fosse, o “barulho” seco e surdo que a queda provocaria dificilmente seria audível no exterior do gabinete, facto que reforça a tese de que o assassino deslocou o corpo do banqueiro depois da sua morte.

Foi o criado o autor do crime! Ele sabia que o “terreno” estava completamente livre. Com o secretário ausente, a sobrinha no banho e a cozinheira à volta dos tachos na cozinha, pensou que tudo lhe correria de feição, sem o perigo de levantar quaisquer suspeitas do seu envolvimento na morte do patrão. Seria aquilo que se poderia considerar “um crime perfeito”! Os negócios do banqueiro iam de mal a pior e com certeza que os investigadores policiais considerariam esse facto como a causa provável do suicídio, que o criado haveria de simular ao mínimo detalhe. Ele esqueceu-se, porém, de um pormenor que, neste caso, faria toda a diferença: um pedaço de vidro do cálice (do relógio?...) que se terá partido durante a “matança”! Se tivesse levado consigo todos os cacos do cálice (do “cronógrafo”?...), talvez ainda se safasse. Mas assim…

A polícia, quando tomou conta da ocorrência, chegou a considerar que se estava perante um crime “colectivo”, ancorando essa tese no facto de todas as pessoas presentes, em casa, no momento da descoberta do cadáver beneficiarem com a morte do banqueiro, desde a sobrinha até aos serviçais. Esta teoria era também sustentada pela hora tardia em que a cozinheira se encontrava no “local de trabalho” (serviço de cozinha é obra!...), pelo desinteresse do secretário em saber a que se devia o estranho barulho que ouvira no gabinete do chefe e por ter telefonado para a polícia antes de se certificar da sua morte (há funcionários muito pragmáticos e pouco cuidadosos com o bem-estar dos seus superiores…), pela ida da sobrinha ao gabinete do tio a desoras (hábitos de ricos noctívagos!) e pelo sono pesadíssimo do criado (!!!).

Não sendo do conhecimento público que os negócios do banqueiro atravessavam um período crítico que talvez viesse a colocar em causa a “saúde” da sua enorme fortuna pessoal, situação de que porventura a sobrinha, o secretário e os dois serviçais eram sabedores, podemos especular sobre a eventualidade da cumplicidade de todos eles na morte de Aníbal Caldeira. Em boa verdade, se a crise dos negócios do banqueiro fosse realmente grave, capaz de representar um descalabro financeiro irreversível a curto prazo, poderíamos estar perante um crime perpetrado por todos (uma espécie de “bando dos quatro”!), uma vez que cada um deles era beneficiário dos bens do banqueiro no caso do seu falecimento… De qualquer maneira, mesmo que tivesse havido um conluio a “quatro”, o autor material do crime foi o criado.

Acabou por ser o pormenor do criado afirmar que estivera com o seu patrão à meia-noite e meia no gabinete, para lhe servir um cálice de “gin”, e meia hora depois já estar “ferrado” no sono (recorde-se que foi preciso a cozinheira acordá-lo, porque ele não reagiu ao alarido da sobrinha do banqueiro quando esta descobriu o corpo, ao contrário do secretário, que desceu logo escadas abaixo para ver o que se estava a passar), a que acresce o facto do fio de sangue que escorrera da testa da vitima estar coagulado passados que foram pouco mais de trinta minutos/uma hora, que levaram os investigadores a centrar as suas atenções no criado e… no vidro oblongo. – Olá! O que é isto? Como veio aqui parar este vidrinho? A quem pertence? É de um cálice… de “gin”?! Onde estão os restantes cacos? E por que foi omitido este incidente?...

Se o vidro fosse de um relógio, como o secretário chegou a supor, a polícia não deixaria de colocar a mesma questão, já que se confirmara que o pedaço de vidro achado no gabinete não era do relógio do banqueiro. – A quem pertence então o relógio quebrado? Como se partiu? E por que foi omitido o caso?!... Bom, fosse como fosse, o criado estava frito!!! Ele que pensou vir a gozar do pequeno legado que lhe cabia em herança por morte do banqueiro, feliz e em liberdade num qualquer lugar paradisíaco, acabaria por bater com os costados numa prisão. Mas não foi só. Levou consigo o livro “Um Crime a Bordo”, de Dennis Wheatley, com tradução de Pedro Celestino Soares, editado pela Marítimo-Colonial em 1945, que o Sete foi buscar a um dos seus míticos caixotes onde guarda “as memórias do passado”, a pedido do Joe Match… 
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