AMBRÓSIO E O PELOTÃO DE FUZILAMENTO, de Inspector Boavida
O meu velho tio Ambrósio era muito chato. Implicava com tudo e por nada. Até os putos que brincavam na rua, junto à sua janela, o incomodavam. Era raro o dia em que não abria as vidraças para gritar com os pulmões que lhe restavam: «Pirem-se daqui, catraios. Vão jogar à bola para outro lado e deixem-se de gritarias. Arre, que uma pessoa nem consegue dormir uma sesta descansado. Qualquer dia perco a cabeça e corro convosco ao estalo».
A embirração com os miúdos era tal que, a partir de determinada altura, passou a guardar aquele quarteirão da rua onde morava, impedindo-os de reinar. Ficava ali especado, de mãos cruzadas atrás das costas, como se fosse um polícia de giro. Os moços mais espigadotes ainda lhe faziam frente, teimando em imitar na perfeição as habilidades do Figo e dos seus pares, até que a bola se lhes escapava e ia parar aos pés do velho Ambrósio…
Eu cheguei a contar dez bolas arrecadadas num canto do seu quarto, todas elas surripiadas aos jovens aspirantes a génios dos relvados, que, nessa altura, o brindavam com alguns mimos pouco agradáveis, mas merecidos: «Devolva a bola, seu jarreta d’um raio. Qualquer dia fazemos-lhe a folha, seu velho caduco d’uma figa». O Ambrósio enfurecia-se e remoía baixinho as piores pragas que lhe vinham à cabeça calva e já vermelha de a tanto coçar.
Certo dia, era Fevereiro – lembro-me como se fosse hoje –, o Ambrósio estava de sentinela à porta de casa, pronto a dar caça aos que se atrevessem a fazer da rua um parque de brincadeiras, um palco de tropelias e algazarras, um campo de futebol improvisado. O tempo estava frio e húmido e soprava um vento forte e agreste. Tinha chovido durante toda a manhã e não se via vivalma na rua. O meu velho tio batia o dente, mas não largava o seu posto.
De súbito, como se saíssem do denso nevoeiro que acordara a cidade e que continuava a impedir que o sol inundasse as ruas, quatro moços caminhavam em direcção ao Ambrósio. «Lá vem o bando dos quatro» – pensou o velho. Vinham de rostos cobertos, um deles com um lenço que só lhe descobria os olhos, outro com uma mascarilha, os outros com meias enfiadas na cabeça. Colocaram-se em fila em frente do Ambrósio e todos à uma sacaram de pistolas.
O meu pobre tio tremeu que nem varas verdes. A cara encheu-se de uma palidez de pânico quase transparente, que deixava ver as magras veias sem pinga de sangue. Os dentes batiam mais do que o descompassado coração, o suor caía em bica pelas faces gretadas, a boca secava, secava, secava, até que se abriu num grito sufocado pelo medo. De olhos muito abertos e boca escancarada, Ambrósio gelou quando um dos miúdos gritou: «um, dois…disparar!»
Esguichos de água fria encheram a boca do meu velho tio! O silêncio sepulcral de Ambrósio misturou-se com mil gargalhadas de crianças justiceiras, que juraram vingar naquela tarde os tormentos de dias sem conta vividos à custa do velho. Era terça-feira de Carnaval! Os miúdos correram rua abaixo e o meu velho tio galgou escadas acima. Os garotos foram pregar partidas para outra freguesia e o Ambrósio foi enfiar-se no quarto, tolhido de frio e de… medo.