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segunda-feira, junho 23, 2008
  MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL


PROVA Nº. 5

SONHO OU PESADELO?, de Daniel Falcão


Pouco passava da meia-noite. Não havia forma de a insónia que se estava a manifestar naquela noite se retirar para bem longe. Foi nessa altura que me apercebi que alguém tinha colocado sobre a mesa, situada ao lado do sofá em que estava refastelado, um dos romances da rainha do crime: “O Crime do Expresso do Oriente”. É claro que já o tinha lido demasiadas vezes, mas foi exactamente por essa razão que recomecei a minha enésima leitura. A minha esperança era que, sendo conhecedor da trama, o sono chegasse rapidamente e pudesse finalmente descansar.
Infelizmente, nada do que previra acontecera. A minha leitura já se prolongava há quase três horas e a insónia permanecia bem presente. O que fazer? Bom, se o sono não aparecia, iria passear um pouco, pois podia ser que encontrasse alguém que estivesse a padecer o mesmo sofrimento.
A praia ficava muito próxima da casa de férias que alugara e foi por isso mesmo que decidi passear no areal. O areal àquela hora era imenso, visto que a maré tinha vazado completamente. O que tinha uma vantagem: a probabilidade de tropeçar em alguém era substancialmente reduzida.
Enquanto caminhava pelo areal, comecei a escutar sons de música provenientes de uma vivenda muito perto da praia. A música ia-se escutando cada vez com maior nitidez, conforme me ia aproximando. Já estava a trautear a melodia que escutava, quando me apercebi que se tratava de uma canção original de Michael Bublé intitulada “Save the Last Dance for Me”. Ao passar pela vivenda, reparei que muitas das jovens que dançavam no jardim exterior envolviam o seu corpo com páreos e, além de grinaldas na cabeça, traziam colares de conchas e de flores de tiaré. “Uma festa taitiana!” – foi o que pensei.
A minha caminhada continuou, até que voltei a ter na minha companhia apenas os muito leves ruídos nocturnos. Inesperadamente, escutei o som de um disparo. O som que escutara proviera algures da vivenda ao lado da qual passava naquele preciso momento. Corri imediatamente nessa direcção na expectativa de surpreender quem disparara. Demorei apenas um par de minutos a encontrar o local onde estava a pessoa que fora vitimada pelo disparo.
Boiando na piscina da vivenda, mas muito próximo da borda, lá estava um corpo no qual pude observar, graças à luminosidade lunar proveniente da Lua Cheia, o local bem no meio da testa por onde entrara a bala fatídica. Não pude deixar de reparar na água límpida da piscina, convidativa para um mergulho.
Preparava-me para telefonar às entidades competentes, dando conhecimento da ocorrência, quando apareceu um indivíduo com um aspecto muito estranho. Este, sem que eu lhe tivesse dirigido a palavra, disse-me que escutara um tiro e perguntou o que havia acontecido. Antes de lhe responder, prossegui o meu telefonema. Só depois de executar os procedimentos habituais, naquele género de situação, é que me dirigi ao sujeito.
Depois de me identificar, coloquei-lhe uma série de questões. Pelas suas respostas, fiquei a saber que aquele homem que usava óculos fumados e um laço ao pescoço, era de nacionalidade brasileira, chamava-se Xico Surucucu e vivia há já cinquenta anos na cidade de Tavira. Naquela noite estivera num casino, na companhia de mais alguns amigos, onde as coisas não lhe tinham corrido muito bem. Acrescentou que apanhou um grande susto, o que era especialmente complicado no seu caso particular, visto que sofria de insuficiência cardíaca e tinha uma arritmia diagnosticada como supraventricular.
Foi precisamente depois destas declarações que escutei, primeiro de uma forma muito ténue, mas depois de uma forma mais vigorosa alguém a chamar-me pelo nome…
–… Aranha… Aranha… Aranha….
–Sim? O que se passa?...
–Acorda, pá! O que te deu para adormeceres?...
Só então verifiquei que estava sentado num sofá, no renovado Clube do Aranhiço, rodeado por vários amigos. Entre as mãos, tinha o resultado de um trabalho elaborado pelo Daniel e dedicado aos concorrentes da secção PÚBLICO-Policiário. Afinal, tudo não passou de um sonho (ou seria antes um pesadelo?).
Já completamente acordado, resolvi partilhar o sonho com os meus amigos.
–Eh, pá! Mas que interessante. Com certeza, apercebeste-te facilmente das inconsistências presentes no teu sonho…
–Claro que sim! Por isso mesmo, espero que ponham os vossos dotes de detectives amadores em acção e que me indiquem quais são, na vossa opinião, essas inconsistências.



SOLUÇÃO de Inspector Boavida

Antes de partir para umas curtas mas merecidas férias, o inspector Aranha propôs que os três Zés do Almeirinense se reunissem no velho Clube do Aranhiço para ultimarem pormenores relacionados com a realização do Torneio Domingos Cabral, cujo arranque estava agendado para o primeiro dia de Setembro. Havia que estabelecer definitivamente todos os critérios de avaliação das soluções concorrentes, e, por outro lado, garantir a máxima qualidade e um considerável grau de dificuldade dos oito problemas que iriam constituir a Prova. Era sobretudo isso que o trazia preocupado. Os enigmas tinham que se situar num patamar absolutamente superior aos que integraram a temporada 2006-2007 do PÚBLICO-Policiário.

Os problemas tinham de ser qualitativamente superiores ao do Rip e aos que se lhe seguiram na secção do LP, nomeadamente o que fora subscrito pelo Boavida e que enfermava de uma fragilidade confrangedora. Até o Raposo ficou aquém do que lhe é habitual, assim como o veterano Fidalgo. Este, então, conseguiu a proeza de provocar um tsunami classificativo inexplicável, já para não falar do Peter Pan que quase afogou uma bela thaitiana com a água que meteu no seu problema. Mr. Ignotus matou um brasileiro de forma inconcebível e os Búfalos inventaram uma carta da defunta Nelinha que não convenceu ninguém. Safou-se o Onaírda, que pôs o coração dos concorrentes a bater descompassadamente e à beira de uma arritmia supraventricular…

Até ele, Aranha, que já anda nesta vida do policiário há um ror de anos, perdeu horas e horas de sono à conta de tão insólitos e fracos problemas. Foi tal a falta de noites bem dormidas, que ele, naquele fim de tarde de Julho, adormeceu sentado num sofá enquanto ouvia o Zé de Viseu falar das inúmeras vitórias morais conseguidas na pré-temporada pelo glorioso Benfica, das magníficas performances do seu velho bólide e dos sucessos das últimas pescarias, que o outro Zé, o da Vila, ia escutando com a máxima atenção e… paciência de santo. Entretanto, nos braços de Morfeu, Aranha ia vivendo uma mirabolante e complicada história que misturou grande parte das incidências narradas nos oito enigmas que LP deu à estampa no PÚBLICO.

No seu agitado e profundo sono, Aranha sonhou que as malditas insónias “policiárias”, que o tinham acompanhado sem cessar nas últimas noites, voltavam para o atormentar de novo. Pegou à pressa num dos grandes clássicos de Agatha Christie que tem permanentemente junto à cabeceira, que ultimamente havia funcionado como um soporífero de efeito rápido, e mergulhou nele como se fosse uma espécie de “bíblia de salvação”. Na lombada do livro podia ler-se, a letras impressas a ouro: “O Crime do Expresso do Oriente”… (Puxa! Lá estava mais uma vez o enigma do Fidalgo a dar-lhe a volta à cabeça!). Mas aquele título não existe. O romance que a rainha do crime escreveu em 1934 chama-se “Um Crime no Expresso do Oriente”!

O sonho começou a transformar-se num pesadelo verdadeiramente insuportável. Aquilo já era demais. Aranha não conseguia aguentar tamanha provação. De súbito, levantou-se de um salto e saiu para a rua. Eram três horas da manhã e a lua, cheia, grávida de luz, iluminava o imenso areal macio da praia. A maré, completamente vazia, reflectia laivos de prata irradiados pelo luar que inundava a madrugada… (Bolas! Lá estava agora o problema do casal de Búfalos a estalar-lhe as meninges!). Mas não, não pode haver maré vazia à três da manhã quando a lua está cheia. Em qualquer dia do ano, só pode haver baixa-mar àquela hora em noites de quarto minguante ou de quarto crescente. Com a lua a rebentar de gorda, a maré tinha de estar cheia!

Aranha caminhou ainda mais depressa pela praia, como se fugisse dos “fantasmas” que tinham tomado conta do seu pesadelo. Aquela “cena” da maré baixa em noite de lua cheia tinha saído da carta forjada pelo casal da Damaia, onde se punha em causa o bom-nome de Mestre Raposo e a memória da defunta Nelinha, que viveram em tempos um romance forte e arrebatador. De repente, Aranha começou a ouvir o tema “Save the Last dance for Me”, um original do canadiano Michael Bublé que faz furor nos quatro cantos do mundo… (Gaita! Agora era o enigma de Peter Pan que vinha desassossegá-lo na madrugada!). Mas não, aquela canção não é da autoria de Bublé. Ela foi escrita, em 1960, por Doc Pomus e Mort Schuman, para os Difers.

Ao chegar ao local de onde provinha o som, uma casa erguida no cimo da encosta junto à praia, Aranha viu um grupo de rapazes e raparigas, muitas delas de páreos vestidas e de colares conchas e de flores de tiaré ao pescoço. Tratava-se de uma festa, onde se comemorava o noivado da bela Vaiani… (Chiça! Lá estava outra vez o problema do Peter Pan de Massamá a dar-lhe volta ao miolo!). Teve vontade de desaparecer, sumir daquele lugar que só lhe trazia à memória os horrores vividos durante a temporada do PÚBLICO-Policiário, e correu, correu, para muito longe. Mas de nada valeu a fuga e a distância percorrida. De súbito, no silêncio da madrugada, ouviu-se um tiro. O disparo vinha da direcção de uma vivenda das proximidades.

Em menos de um “fósforo”, não muito distante do local onde se encontrava naquele momento, e onde nunca estivera, ao que parece para os lados de Cascais, deu de caras com o corpo de um homem boiando numa piscina… (Safa! Agora era o enigma do Ignotus que lhe tomava conta da sua rica “mona”!). A vítima tinha um furo mesmo no meio da testa. A água estava clara, límpida, apetecível a um bom banho apesar da hora tardia da madrugada… Nada batia certo. O disparo que ouvira não fora o que matara aquele pobre homem. Este não morrera há pouco tempo nem caíra na piscina aquando do tiro fatal, caso contrário a água apresentaria vestígios de sangue e a ferida provocada pela bala ainda verteria com certeza sangue em abundância.

Não havendo sinais de sangue no local, a vítima terá sido alvejada algures noutro sítio, deslocada então para aquela vivenda e atirada depois para a piscina. O transporte do corpo terá sido feito com extremo cuidado, uma vez que a vítima ainda tinha ar nos pulmões, porque, caso contrário, ter-se-ia afundado – pensou o Aranha. Mas não, nada disto fazia sentido. O cadáver nunca poderia conservar nos pulmões ar suficiente a ponto de funcionar como uma espécie de “bóia”, após a trasladação para a piscina… Por outro lado, se a vitima ainda respirasse quando foi atirada à piscina, a água engolida inundaria os pulmões e provocaria a sua morte por afogamento. Também neste caso o corpo afundar-se-ia e só passado muito tempo viria ao de cima.

De acordo com as “leis da física”, em qualquer das situações o peso do corpo ficaria no fundo da piscina. Basta fazer o exercício de colocar um qualquer objecto no interior de uma vasilha com água. Esse objecto sofrerá, por parte da água, uma força de baixo para cima, chamada empuxo, equivalente ao peso do líquido deslocado. Esta força não é mais do que uma reacção do líquido e verifica-se pelo facto do objecto estar a ocupar um espaço que pertence à água. É o princípio de Arquimedes! O impulso de baixo para cima (impulso ascensional) equivale ao peso do líquido deslocado. Assim, se o objecto em causa tiver, por exemplo, 30 cm3 de volume, receberá um impulso correspondente ao peso que representa, ou seja 30 gramas de água. Mas…

Não podemos esquecer, porém, de uma outra força que actua sobre todos os corpos da Terra: a atracção terrestre. Ou seja, o peso dos objectos. Deste modo, torna-se necessário saber qual é a força mais intensa. Porque: se o peso for maior que o impulso ascensional, o objecto afunda; se o peso for inferior ou exactamente igual ao impulso ascensional (empuxo), o objecto ficará em equilíbrio, parado, suspenso na água e sem nada acima da superfície livre do líquido. Recorde-se que o empuxo é a força que o líquido faz para cima e vale exactamente o peso do volume do líquido deslocado, que corresponde ao volume do sólido que está submerso. É claro que este “exercício” sofre efeitos particulares quando o “objecto” é um corpo de uma pessoa!

Neste caso concreto, estando em causa o corpo de um homem adulto caído sobre a água de uma piscina, o empuxo não tem seguramente força suficiente para elevar o “objecto estranho” ao líquido até à superfície, mantendo-se o corpo no fundo da água. É verdade que ao fim de determinado tempo, tratando-se de um cadáver, o corpo começa a entrar em putrefacção e a produzir gases, que fazem aumentar o seu volume e peso, mas, em contrapartida, os gases acabam por funcionar como uma espécie de bóia que determina a ascensão do corpo. Este processo (putrefacção do corpo e a produção de gases) é muito moroso e, por outro lado, deixa marcas intensas e bem visíveis na água. E o que é facto é que o Aranha verificou que a água não estava suja…

O Aranha estava espantado. Ele via com os seus próprios olhos uma coisa que não podia acontecer: aquele corpo não podia estar a boiar, estando a água limpa! Com todos estes pensamentos a bailarem-lhe em turbilhão na cabeça, num rodopio imparável, Aranha pegou no telemóvel para chamar a polícia. Mas eis que, de repente, lhe apareceu, vindo do nada, um homem de óculos fumados e de laço ao pescoço… (Raios! Desta vez era o problema do Boavida que dava sinais de vida!). Aquele estranho homem disse ter ouvido o tiro e procurou saber o que se passava. Decerto que ele nada tinha a ver com o homicídio. Se estivesse envolvido no caso, não teria aparecido por lá. E daí… “O criminoso volta sempre ao local do crime” – não é o que dizem?

Mas não, o homem não parecia estar comprometido de forma nenhuma com aquele funesto acontecimento. Apareceu ali porque ouviu o disparo, e pronto! Da mesma forma que o inspector Aranha acorreu ao local, depois de ter ouvido o tiro, também aquele homem teve o mesmo impulso. Bastante curiosa era a sua pronúncia, mais ou menos abrasileirada. Quando ele se apresentou, Aranha sofreu um abalo. O homem era mesmo brasileiro e chamava-se Xico Surucucu… (Irra! Só cá faltava um dos homens do Sindicato do Crime que o Raposo inventou!). Mas espera, brasileiro era também o tipo que o Ignotus “matou” no seu enigma!... Aranha começou a sentir-se meio tonto, perdido num mar de confusões, de coisas sem nexo nem sentido!

Para aumentar a confusão que começava a inquietar cada vez mais o espírito do inspector Aranha, o brasileiro disse que morava em Tavira e tinha vindo há pouco de um casino, onde…. (Porra! Em Tavira morava o velho que o Rip “assassinou” às mãos de um polícia e num Casino tinha estado o Smaluco do Boavida, mais a boazona da Natália. Mas que grande salgalhada!). As coisas não tinham corrido bem no Casino ao pobre do “brasuca”, que ainda por cima sofria de insuficiência cardíaca e tinha uma arritmia diagnosticada como supraventricular (Merda! A coisa estava a ficar feia. Já só faltava o enigma do Onaírda para atormentar a sua noite!) Bom. Era preciso respirar fundo, contar até dez, manter a calma e o sangue frio.

Mas nada acalmava o Aranha. A confusão instalara-se definitivamente. O brasileiro era o morto no enigma do Ignotus, mas neste caso era apenas um transeunte, um pobre homem imigrado no nosso país há imenso tempo e que viera do casino, onde a coisa dera para o torto por causa de desentendimentos com um homem de laço e um outro de óculos fumados. Não, nada disso. Isto foi o que se passou no enigma que o Boavida “esgalhou” junto à ria Formosa enquanto comia uma dose de conquilhas mal lavadas. Não, não, não! Essa das conquilhas com areia tem a ver com o enigma do Rip, o amigo do Eduardo Trindade, que actualmente anda pelo Brasil a descobrir criminosos ligados ao Sindicato do Crime. Não. O problema do Raposo, outra vez não!

Vamos lá ver se a gente se entende – dizia de si para si o Aranha. O morto não era brasileiro e tinha um furo na testa provocado por uma surucucu… Não, espera, Aranha, espera, a surucucu não é para aqui chamada. O morto estava morto antes de cair morto na piscina. Mas que raio de português! Vamos lá outra vez. O morto que foi morto a tiro numa festa thaitiana, realizada num navio-escola chileno fundeado ao largo da baía de Cook… Não, calma. Isto da festa no convés do Esmeralda deve-se à imaginação do Peter Pan, que misturou gente boa num navio carregado de histórias terríveis e… De súbito, Aranha começou a ouvir vozes além, muito além, sumidas, como se viessem do fundo de um túnel infinito, até se tornarem claras e perceptíveis.

Eram os Zés (o da Vila e o de Viseu) que lhe gritavam aos ouvidos e o abanavam nervosamente e com todo o vigor, porque o amigo aparentava estar mal, respirando descompassadamente e com bastantes dificuldades. Aranha abriu os olhos, meio assarapantado, e suspirou de alívio. Tudo aquilo não passara afinal de um pesadelo ruim…. Mas mal sabia o Aranha que estes oito problemas que dominaram o seu sonho naquela noite de Julho viriam a causar uma pequena chatice entre os Búfalos e o Fidalgo, por causa de suspeitas levantadas por uns desconhecidos “detectives” relativamente ao critério utilizado pelo casal da Damaia na sua votação para o Campeonato de Produção, deixando o resto tribo policiária em polvorosa.

Pior era o que estava para vir. E isso, nem ele nem ninguém de bom senso seria capaz de admitir como possível: a temporada 2007-2008 do PÚBLICO-Policiário começaria tarde e a más horas, e ainda por cima com um problema que ia dando cabo do Natal aos “detectives” de Domingo, obrigando-os a “medir” gerações e a pescar incongruências sem fim, enquanto comiam rabanadas (fatias paridas, na minha terra), aletria, arroz doce e bolo-rei. Para cúmulo, o enigma seguinte era tão fraquinho, tão fraquinho, que não se percebe como é que o Luís Pessoa ainda dá espaço a produções do Boavida. Puxa! Bolas! Gaita! Chiça, Safa, Raios! Irra! Porra! Merda! Aquela coisa de meter o teatro no Policiário não lembra mesmo a ninguém!!!


MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 6

O INSPECTOR FIDALGO E O MORTO NO RIBATEJO, de Inspector Fidalgo


O Sebastião apareceu morto.
Naquele local ermo e calmo, algures no interior do Ribatejo, em zona onde muitas vezes os nevoeiros têm o seu reinado, um nome como o dele prestava-se a brincadeiras a propósito da lenda que mostraria um Sebastião a aparecer numa manhã de nevoeiro…
Diziam-lhe os amigos para ter o cuidado de nunca aparecer quando os nevoeiros tapassem a planície, pois poderia acabar em rei… sem trono!
Sebastião não era rei de coisa nenhuma.
Filho de um modesto caseiro de uma propriedade abastada, teve a sorte de vir ao mundo com dois palmos de cara e assim conquistar a filha do senhor das terras, algo que não era, como é óbvio, muito bem recebido por este.
Daí que estivesse proibido de aparecer na parte da casa dos senhores, o que não impedia, ao que se dizia, alguns encontros furtivos.
Naquela manhã, Alarcão, proprietário e pai de Carolina, levantou-se cedo, cerca das 7 horas e, como declarou mais tarde à polícia, não viu nada, porque o nevoeiro ali é mesmo cerrado e também não ouviu nada estranho, nem os cães deram sinal, pelo que foi logo fazer aquilo que mais gostava, ou seja, tratar dos seus cães, mas muito rapidamente porque ainda era muito cedo e o vento gelado cortava a cara.
O casarão ficava na parte da frente do terreno, ainda a considerável distância da estrada e era vedado em todo o seu perímetro por muros altos. Na parte de trás do terreno, fora dos muros, estava a casa do caseiro, onde vivia Sebastião.
Todo o terreno estava isolado de outros, uma vez que havia pinhais em toda a volta, excepto na frente, onde passava a estrada. Do lado direito, havia um caminho que dava acesso à casa do caseiro, ao longo do muro compacto, de mais de 100 metros, apenas interrompido, quase no seu extremo, por um portão que era usado por todos os que da casa do caseiro iam ou vinham para a casa do Alarcão. Foi por volta das 8 horas que a mãe do moço deu com ele sem vida, quando o foi chamar para o pequeno-almoço.
Os pais de Sebastião não deram por nada, segundo declararam, o mesmo acontecendo com os moradores da casa de Alarcão. Os vizinhos mais próximos, do outro lado do pinhal, disseram que apenas ouviram os cães em grande algazarra, por volta das 7 e meia, como sempre faziam, quando o seu dono regressava a casa depois de alguma ausência e o vento estava de feição.
O padeiro da aldeia, que circulava por ali, como sempre fazia por volta daquela hora, na faina de levar o pão de porta em porta, declarou que não deu nota de nada e que só viu, ao olhar da estrada, o senhor Alarcão a caminhar em direcção a sua casa, vindo dos lados da casa do caseiro, ainda não eram 8 horas.
A polícia interrogou-o durante algum tempo. Sabia-se que Sebastião namorara com a filha dele durante muito tempo e que chegaram a ter data marcada para o casamento, mas a chegada da filha de Alarcão fez cair por terra todos os planos. O interrogatório não revelou muito mais.
A filha do padeiro, por seu lado, declarou não saber nada sobre o assunto, já que nessa madrugada e manhã estivera com a mãe a fazer o pão que o pai levava a casa das pessoas, o que se confirmou.
Alarcão manteve a sua história e mostrou-se muito ofendido por alguém alimentar sequer a suspeita de que ele seria capaz de fazer tal atrocidade ao moço, mesmo querendo, como ele queria, que ele largasse a sua filha, de vez.
O Inspector Fidalgo não precisou de muito tempo para descobrir que alguém não dizia toda a verdade nesta história e que, apesar do Sebastião jamais poder surgir do nevoeiro, esse alguém também não o poderia fazer durante muito, muito tempo…

Caro detective: O Inspector Fidalgo sabe que não fez nada de especial para decifrar este caso e cabe-lhe a si demonstrá-lo! Elabore um relatório, sem se esquecer que não basta dizer quem mente. É preciso justificar, apresentando provas.



SOLUÇÃO de Inspector Boavida

Não se via um palmo em frente do nariz. O nevoeiro era de tal maneira denso naquele início de manhã que o agente Ambrósio conduzia o seu velho fiat a pouco mais de 10 kms/hora pelas estreitas ruas de Salvaterra de Magos, em direcção ao posto onde prestava serviço há quase uma vida. Ainda mal tinha estacionado o carro no parque quando recebeu a ordem do comando. Tinha de voltar a sair! O dia começava mal. O filho do caseiro do abastado Alarcão aparecera morto no seu quarto, há pouco mais de meia hora. Ambrósio reuniu três homens, pegou numa viatura de serviço e meteu-se ao caminho. No interior do concelho, o nevoeiro há muito que se esfumara em virtude do vento frio que por ali soprava desde que a madrugada nascera.

Sem o nevoeiro foi muito mais fácil chegar à morada onde se tinha registado a ocorrência que lhe fora relatada em breves segundos pelo comando. Em menos de nada estava perante um rico casarão “escondido” por altos muros que cercam todo o seu perímetro. Ambrósio estacionou o carro à berma da estrada e foi a pé até à habitação dos caseiros. Percorreu o caminho que ladeia um dos muros laterais da propriedade do Alarcão e, depois de muito mais de uma centena de passos curtos e seguros, encontrou a chorosa mãe do jovem Sebastião. Foi ela que deu com o filho morto, quando o foi chamar para tomar o pequeno-almoço. A cor da morte ensombrava o rosto do jovem que trazia pelo beicinho algumas das raparigas solteiras da terra.

Uma das jovens que se perdeu de amores por Sebastião é a filha do padeiro que fornece, manhã cedo, de pão fresco todas as casas das imediações, tanto as que ficam nos domínios da propriedade do Alarcão como as que se estendem por detrás dos pinheiros que a cercam lateralmente e pelos fundos. Aquele amor parecia correspondido, tendo resultado num romance que durou um ror de tempo. O namoro virou noivado e o casório teve até data marcada, mas a cerimónia acabou por não se realizar porque a filha do Alarcão se meteu pelo meio. Este desfecho não agradou a nenhum dos pais das jovens. O Alarcão fez logo saber que queria muito melhor marido para a “rica” filha e o padeiro nunca aceitou o desfecho da relação.

Enquanto cogitava sobre o assunto, Ambrósio reconheceu que aquele caso parecia demasiado complicado e complexo para um pobre e simples agente como ele e para a inexperiente equipa que dirigia. O seu instinto dizia-lhe que a morte de Sebastião tinha mão assassina. Lembrou-se então de que um dos mais brilhantes investigadores portugueses se havia mudado recentemente para uma moradia algures no Ribatejo profundo, e não perdeu muito mais tempo. Renovou os seus sentidos pêsames ao caseiro e à mulher, deu ordens para que ninguém entrasse no quarto do rapaz, pediu aos homens que o acompanhavam o maior cuidado e atenção a todos os detalhes suspeitos, pegou no telemóvel e ligou para o célebre… Inspector Fidalgo.

Sentado na viatura que deixara na estrada, e enquanto ficava à espreita da chegada do carismático Inspector Fidalgo, o agente Ambrósio deu uma olhadela à propriedade do Alarcão. Dali não se via praticamente nada do interior da propriedade, a não ser a cobertura da mansão. Apenas se conseguia distinguir os muros altos que ficam voltados para a estrada, os muros laterais, da mesma altura, que se estendem ao longo de mais de cem metros, e os pinheiros que ladeiam a propriedade lateralmente e pelas traseiras. O resto perdia-se de vista. De súbito, Ambrósio viu um carro que circulava com os quatro piscas ligados, exactamente como tinha combinado com o Fidalgo. Vários sinais de luzes fizeram parar o Sherlock de Marinhais.

Ambrósio respirou de alívio e suspirou de satisfação. Por um lado, tinha a certeza de que, com a colaboração do Inspector Fidalgo, o caso da morte do jovem Sebastião seria resolvido a contento, e, por outro, sentia-se um privilegiado. Estava perante um reputado investigador, admirado e respeitado pelas polícias de quase todo o mundo. Para ele seria uma honra poder conhecer de perto os métodos utilizados por tão famosa personagem e dar-lhe colaboração directa e permanente em todos os passos inerentes àquela investigação. Enganou-se redondamente. Fidalgo colocou-lhe algumas breves questões e pô-lo logo na alheta. Ou seja, mandou-o dar uma volta: Ambrósio ficou com a incumbência de auscultar a vizinhança.

Fidalgo, por sua vez, começou por dar um passeio calmo e tranquilo pelo exterior da propriedade, fumando pacientemente e com indisfarçável prazer a sua primeira cachimbada da manhã. Os seus passos levaram-no algum tempo depois até ao interior da humilde habitação do caseiro. Saudou simpaticamente os homens do Ambrósio, cumprimentou muito respeitosamente a infeliz mãe do jovem Sebastião, olhou pesaroso o cadáver e sussurrou algumas perguntas ao pai do morto. Rodeou sobre si próprio, dirigiu-se lentamente até à cozinha, poisou os olhos sobre a mesa posta para o pequeno-almoço, pegou num pedaço de pão que levou à boca, e, em menos de nada, decidiu: chamem o padeiro, a filha deste, o Alarcão e a sua menina.

O senhor da terra, o abastado dono daquela propriedade, um dos homens mais ricos e poderosos do Ribatejo, reagiu muito mal quando foi questionado pelo Inspector Fidalgo. Negou liminarmente qualquer envolvimento na morte do jovem Sebastião, considerando até uma grande ofensa que alguém tivesse a veleidade de admitir sequer que ele fosse capaz de cometer ou de ser cúmplice de tamanha atrocidade. Confessou que não aceitara, nem aceitaria nunca, o relacionamento do moço com a sua filha Carolina, para quem desejava muito melhor sorte, mas daí a assassiná-lo ou a desejar a sua morte… Ele só queria que Sebastião deixasse a sua querida filha da mão, que se enamorasse de gente da sua condição, nada mais!

Naquele dia, o Alarcão levantara-se muito cedo, por volta das sete da manhã. Segundo ele, não se enxergava nada por via do nevoeiro. Também não se lembrava de ter ouvido nada de anormal nem dos seus cães terem feito qualquer sinal que indicasse a presença de gente estranha. Tratou dos animais, com o mesmo prazer de sempre, mas voltou logo para dentro de casa porque ainda era muito cedo e o vento frio cortava como facas afiadas. Fidalgo dispensou Alarcão na mesma altura em que o Ambrósio voltava com o resultado das sondagens feitas nas redondezas. Os vizinhos tinham escutado os cães por volta das sete e meia, o que sempre acontecia quando o dono regressava a casa depois de uma qualquer ausência e o vento ajudava.

O Fidalgo sorriu com todos os dentes que tem, deixando perceber a falta de alguns caninos. «Com que então os cães só fizeram uma vez algazarra naquela fria manhã de nevoeiro?! Bate certo, claro que tudo bate certo, até mesmo a hora. Os bichos manifestaram-se alegremente quando o dono apareceu para tratar deles e depois calaram-se para sempre, o que quer dizer que jamais sentiram a presença de estranhos. É óbvio. Tudo parece estar explicado» – pensou o Inspector de Marinhais. O Ambrósio estava de olhos arregalados e de boca aberta, meio apalermado. Ele não fazia a mínima ideia do que pensava o seu famoso chefe de ocasião, que, de repente, deixou soltar uma frase enigmática e… cortante: «Vamos lá ver o padeiro».

O padeiro da aldeia tinha andado durante a manhã a distribuir pão de porta em porta pelo casario, como era hábito fazer todos os dias, e disse não se recordar de ter notado nada de especial naquela propriedade. Lembrava-se, isso sim, de ter visto da estrada o Alarcão a caminhar para a sua moradia, vindo da direcção da habitação do caseiro, ainda não eram oito horas. Esta afirmação confirmou as suspeitas do Inspector Fidalgo sobre o envolvimento do fazedor de pão na morte de Sebastião. Era completamente impossível ver da estrada o que ele disse ter visto, em virtude da altura dos muros e do nevoeiro. Mesmo que ele estivesse no enfiamento do caminho que dá acesso à casa do caseiro, não poderia reconhecer ninguém àquela distância.

O portão que dava acesso à moradia do Alarcão, para quem viesse dos lados do caseiro, ficava ao fundo do mural, a cerca de cem metros, o que impediria que se visse da estrada, naquela manhã, algo “reconhecível” face ao nevoeiro. Para o Fidalgo, estava detectado o mentiroso e explicado o silêncio dos cães. A presença do padeiro, o seu “odor”, era-lhes tão habitual e familiar que eles nem tugiram. Teria o padeiro motivos para odiar o rapaz, ao ponto de o assassinar? Nada justifica um acto daqueles, mas ele acharia que sim. O jovem manchara o seu nome e o da sua família, ao abandonar a filha, que havia prometido levar ao altar, para se fazer à herdeira do ricaço Alarcão. Para o padeiro, aquela desfeita justificava a lavagem da honra com a morte.

O Ambrósio, ao contrário do Inspector Fidalgo, tinha algumas reservas sobre o envolvimento do padeiro naquela atrocidade. «Coitado, ele era tão bom homem, tão trabalhador, tão amigo do seu amigo! Ainda para mais, os vizinhos do Alarcão haviam sido unânimes sobre os motivos da algazarra dos cães naquela manhã. Segundo eles, os cães faziam aquele barulho sempre que o dono regressava a casa depois de alguma ausência». Para o agente Ambrósio isto queria dizer que o Alarcão se tinha ausentado depois das sete, voltando a casa por volta das sete e meia, quando os vizinhos ouviram a barulheira dos cães. É verdade que o padeiro não podia ter visto, ou melhor, distinguido o Alarcão, a uma distância de cem metros, havendo nevoeiro, mas…

O Inspector Fidalgo até parecia que lia o pensamento das pessoas. Virou-se para Ambrósio e disse-lhe, muito calmamente: «Caro agente, ninguém sabe o que um homem é capaz de fazer quando lhe fazem mal, a si ou aos seus. Acredite em mim: foi o padeiro que meteu o Sebastião no forno da morte para sempre! Ele levou o pão lá a casa, apanhou o jovem a dormir e… zás! Lembre-se que a mãe do rapaz deu com ele morto quando o foi chamar para o pequeno-almoço. Ou seja: o pãozinho já lá estava em casa, entregue pelo padeiro, como era usual. E quanto à vizinhança ter afirmado que os cães se portaram como acontecia sempre que o dono voltava a casa depois de uma ausência, a explicação é simples: os bichos já não viam o Alarcão há horas!…»

Ao ver que o Ambrósio não ficou muito convencido, Fidalgo reforçou: «Os vizinhos não viram nada – os pinheiros, os muros e o nevoeiro não deixavam! Assim como nunca viram “as razões” que provocavam o barulho dos cães – os muros altos e os pinheiros nunca deixaram! Portanto, eles apenas podiam especular sobre as causas do tal comportamento. A não ser que já tenham comentado o assunto com o Alarcão, o que é natural. Mas convém não esquecer que a “casa” dos cães numa propriedade com aquelas características não é dentro de casa, onde dorme o dono. A “casa” dos cães fica junto ao portão de entrada, para que estes evitem o acesso de intrusos. Para eles, cães, o Alarcão estivera ausente de “casa” durante umas horas… enquanto dormiu».

Ambrósio embasbacou. Ficou quedo e mudo a olhar para o Inspector. A explicação continuava a não ser muito convincente. Fidalgo percebeu a dificuldade do agente em aceitar os seus argumentos, e continuou: «É até bem provável que o Alarcão tenha saído pelo portão, que fica na extremidade do muro lateral da propriedade e faz serventia aos caseiros, tendo voltado a entrar depois. Ou seja: de acordo com a sua lógica, ele ausentara-se “por breves instantes”! Mas não é só isso que pode justificar a algazarra dos animais. Porque, caro Ambrósio, só quem nunca teve cães é que não sabe quão ruidosas são as manifestações dos bichos quando o dono aparece junto deles no começo de cada dia, ainda por cima para tratar deles, dar-lhes comida… e mimos!»

Ambrósio continuava a olhar para o Inspector Fidalgo com cara de quem diz «repita lá tudo outra vez, mas mais devagar, como se eu fosse muito burro». O Sherlock de Marinhais não se fez rogado: «Vamos lá ver tudo desde o início. Como ainda hoje acontece em boa parte das habitações das nossas aldeias, a porta da casa dos caseiros do Alarcão estava apenas fechada no trinco, permitindo facilmente a sua abertura pelo lado de fora. O padeiro deixou o saco de pão pendurado na maçaneta da porta, como era hábito, abriu-a muito devagarinho, foi “pé-ante-pé” até ao quarto do Sebastião, pegou numa almofada (também podia ter usado uma faca de cortar pão…) e sufocou o jovem até à morte. Posto isto, fez o caminho inverso e pôs-se na alheta».

Interiormente, Ambrósio começou a sofrer uma verdadeira metamorfose. Cada vez se sentia mais burro. Só lhe faltava mesmo surrar. Sempre atento às transformações psicológicas dos seus interlocutores, o Inspector Fidalgo prosseguiu: «Terá sido no momento em que o padeiro chegou à estrada, que os cães do Alarcão desataram em grande algazarra. Seriam sete e meia da manhã. O homem do pão sentiu, a subir pela espinha acima, um arreio de frio, mais gélido do que o vento que soprava (ao contrário do que se diz, o vento frio não desfaz logo o nevoeiro quando ele é bastante denso…) e suspirou de alívio. Por pouco que não foi observado pelo dono dos cães, que se encontrava junto ao portão, no interior da propriedade, a tratar dos animais».

Fidalgo ia embalado na sua argumentação: «Da estrada, onde deixara estacionada a sua carrinha (para ir de porta em porta, entregando pão em todas as propriedades da zona, o padeiro precisava de um meio de transporte…), ele olhou para o caminho que dava acesso à casa do caseiro e nada viu ao fundo, junto ao portão. Mesmo que o Alarcão lá estivesse, ele não o poderia ver (distintamente). Nem mesmo que não existisse nenhum nevoeiro! Um caminho (estreito…), ladeado por um muro alto, rodeado de pinheiros (altos também…) por um dos lados e pelo fundo, nunca poderá receber muita luz natural, nem mesmo em manhãs de sol radioso (o que não era o caso…). Acresce ainda que o portão está a cem metros de distância da estrada!...»

O Inspector parecia movido a pilhas de longa duração: «Mais. Se o padeiro estando parado na estrada, em frente ao caminho, tinha dificuldade em distinguir um vulto ao fundo do mural, imagine se ele estivesse a passar por lá, ao volante da carrinha. Neste caso, era completamente impossível que ele visse fosse o que fosse, quanto mais ao ponto de distinguir uma pessoa àquela distância!» Fidalgo estava tão cheio de si, tão convencido do que dizia, que mal ouviu a padeirinha, a filha do Alarcão e as restantes pessoas que com ele vivem. Virou-se para Ambrósio e sentenciou: «Pronto, meu caro, deixo o caso nas suas mãos. Agora só tem que fazer o Relatório e entregá-lo aos seus superiores. Se precisar de mais alguma coisa, já sabe, estou em Marinhais».

Ambrósio não sabia o que fazer. Não acreditava em nada do que o Fidalgo defendia. Para ele, o padeiro estava inocente. Tudo o que o pobre distribuidor de pão dissera fazia sentido. Pelo contrário, o Alarcão, o rei com trono, dono e senhor daquelas terras todas, mentira quando disse que se levantou às sete da manhã e não se via nada por causa do nevoeiro, ao mesmo tempo que estava, segundo ele, um vento frio, gélido, de cortar à faca. Quando o vento sopra assim, diga o Fidalgo o que disser, não pode haver nevoeiro, muito menos tão denso ao ponto de não se ver nada… numa planície! Para mais, o Ambrósio fazia fé no que lhe dissera a vizinhança. Os cães tinham-se comportado como sempre acontecia quando o Alarcão se ausentava de casa.

Para o agente Ambrósio, a ocorrência pode ser relatada da seguinte forma: «O Alarcão sabia que o jovem Sebastião andava a pôr-se na filha e ele não aceitava de forma nenhuma tal coisa. Ainda por cima, a sua Carolina não respeitava a vontade do pai e teimava em encontrar-se às escondidas com o filho do caseiro. Havia que colocar um ponto final no caso e o abastado senhor daquelas terras decidiu fazê-lo com as suas próprias mãos. Ele conhecia os hábitos dos caseiros, a que horas se levantavam, quais os quartos em que dormia cada um dos membros da família. Por outro lado, como dono da propriedade, tinha uma cópia das chaves de todas as casas. E… sabia muitíssimo bem a que horas, normalmente, o padeiro entregava o pão naquela casa!...»

O raciocínio do agente Ambrósio era linear, mas objectivo: «O Alarcão levantou-se às sete da manhã, esperou que o padeiro depositasse o pão na entrada de casa dos caseiros, deixou que ele abandonasse o local, e… depois saiu pelo portão que fica na extremidade do muro, abriu a porta da habitação dos serviçais, dirigiu-se ao quarto onde dormia Sebastião e mandou-o para as alminhas! Alarcão fez depois o caminho inverso e quando passou o portão, de regresso a sua casa “após aquela breve ausência”, os cães fizeram a grande algazarra de sempre. Nessa altura, o padeiro passava pela estrada na sua labuta de todos os dias e viu o Alarcão entrar o portão, vindo da habitação do caseiro. Ainda não eram oito horas…»

«Os vizinhos ouviram os cães ladrar por volta das sete e meia (o vento estava de feição…) e o padeiro viu o Alarcão dirigir-se a casa, vindo dos lados da habitação do caseiro, ainda não eram oito horas. Bate certo, mais coisa, menos coisa. Por outro lado, o Alarcão foi muito veemente na defesa da sua inocência naquela atrocidade, como ele classificou o crime cometido na pessoa do jovem Sebastião…. O ricaço deu a entender que sabia demais» – pensou em voz alta o Ambrósio, enquanto se dirigia para o seu posto de serviço, em Salvaterra de Magos, para redigir num velho computador o Relatório que levará para a cadeia o Senhor daquelas terras do “reino” do Ribatejo profundo, que se perdeu no… “nevoeiro e no vento gelado de cortar a faca”!...

Perante isto o que pode fazer um pobre aprendiz de “detective”, esforçado decifrador de problemas policiais? Opta pelo espírito dedutivo e raciocínio lógico (?) de um inspector credenciado, muito estimado e respeitado no mundo policiário, ou subscreve a dedução feita por um simples agente de polícia com sede de trabalho na província, sem qualquer experiência na investigação de casos assim tão difíceis e complexos? Em circunstâncias destas, confesso que às vezes o melhor é atirar moeda ao ar. Porém, neste caso não se justifica “atirar ao calhas”! O Inspector ficou muito mal na fotografia. O agente é que tem razão. Ou seja, subscrevo a posição defendida pelo Ambrósio: quem mente é o Alarcão, o pai da Carolina Alar…cona!



MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 7

O MISTÉRIO DO RELÓGIO DE CUCO, de Rip Kirby

O professor Ludgero Silveira era um milionário e filantropo que havia dedicado a sua vida e fortuna ao ensino especial, tendo, para isso, fundado um colégio onde crianças e jovens, portadores de variadas insuficiências, recebiam a instrução adequada. Além disso, outras organizações lhe deviam a origem ou o apoio. Por tudo isso, eram numerosas as comendas e condecorações que, ao longo da sua vida, lhe foram atribuídas.
Era também um conceituado charadista, cruzadista, xadrezista e damista, tendo em todas estas modalidades recebido numerosos troféus, que enfeitavam uma estante na sua casa.
Tudo isto foi anunciado nas estações de rádio e televisão no dia em que ocorrera o seu falecimento, aos 95 anos de idade. Todas estas qualidades eram já do meu conhecimento. Afinal, o falecido era meu conterrâneo e tio do Sargento Silveira.
Contudo, o professor, apesar da toda a sua inteligência, tinha uma fraqueza supersticiosa pelo número 3 e pelo triângulo. Dizia ele que o triângulo era um símbolo de força e poder. Por isso, ele, apesar de se afirmar um ateu endémico, não tinha pejo em afirmar que a força do Cristianismo estava na Santíssima Trindade. Por esse motivo, ele tinha também um carinho especial pelo Eduardo. Costumava dizer-lhe que o apelido que ela carregava consigo haveria de o levar longe na profissão que escolhesse.
Alguns dias após a morte do professor, o Silveira convidou-me para assistir à abertura e leitura do testamento do tio. Contrariado, aceitei e é por isso que, agora, estou aqui sentado entre o sargento e o inspector Trindade (que também foi convidado), no meio de uma multidão desconhecida para mim, nesta sala da casa que foi a moradia do professor.
A biblioteca fora o local escolhido para se proceder à leitura do testamento e, enquanto isso não tinha o seu início, entretive-me a estudá-la.
Na parede de um dos topos, aquela que se encontrava na minha frente, por cima da mesa de trabalho, encontrava-se um retrato do professor, pintado por um artista seu conterrâneo. A ladeá-lo, emoldurados, viam-se os numerosos diplomas dos cursos frequentados, em Portugal e no estrangeiro, pelo professor. Num dos cantos da sala, estava uma vitrina onde se viam os troféus ganhos nas modalidades já referidas. No canto oposto, outra vitrina continha as condecorações com que o professor havia sido agraciado.
Na parede do lado direito, havia várias janelas que davam para uma varanda, para lá da qual se via o jardim. Nos espaços entre as janelas, havia estantes repletas de livros.
Na parede do lado esquerdo, entre duas portas que davam acesso a outras dependências da moradia, havia mais estantes com livros e obras de arte.
Na parede que ficava nas minhas costas, havia uma fotografia aérea da cidade natal do professor e um grande relógio de cuco, artisticamente trabalhado. Este relógio era obra de um irmão do professor, também já falecido, apaixonado por mecânica e relojoaria. Era dotado de dois pesos, de tamanho proporcional ao relógio – um que accionava o mecanismo que fazia girar os ponteiros e o outro destinado a accionar o carrilhão.
Finalmente, o Dr. Peres Monteiro, advogado do professor, tomou lugar na secretária, retirou de uma pasta, que transportava consigo, um envelope de formato A4, que mostrou para todos verem que os três selos de lacre se encontravam intactos. De dentro deste envelope, retirou outros cinco mais pequenos, que observou, rapidamente. Pegou num deles que também mostrou, para que víssemos que se encontrava lacrado e dirigido à sua pessoa, com a referência de confidencial.
Abriu-o e leu em silêncio a folha que retirou de dentro. Acabada a leitura, disse:
“Nesta carta, que me foi endereçada, sou informado de que o testamento se encontra escondido, algures, nesta moradia.”
“Tenho aqui quatro envelopes, dirigidos a cada um dos sobrinhos do meu cliente, nos quais é fornecida a pista para a descoberta do testamento. Devem verificar que se encontram lacrados. Analisem o seu conteúdo, sem tecerem, entre vós, qualquer comentário a seu respeito.” Chamou, de seguida, os quatro presumíveis herdeiros, entre os quais o Sargento Silveira.
O Sargento levantou-se quando foi chamado, recebeu o envelope que lhe correspondia e voltou, sentando-se, agora, entre mim e o Eduardo. Abriu o envelope que continha uma folha de papel, datada de dois anos atrás, onde estava desenhada a tabela reproduzida abaixo (ver Nota).
Por alguns momentos, olhámos o desenho; depois, sem soltarmos palavra, retirámos dos bolsos as nossas agendas e canetas e começámos a escrever.
Durante largos minutos ou horas, o silêncio reinou na sala e só foi quebrado quando, no relógio de cuco, soaram três badaladas. “Só três horas!” Exclamou alguém.
“O relógio está atrasado duas horas”, esclareceu Maria Isabel, que vivera com o professor até à morte deste. “Há mais de dois anos que ele se atrasa quase três horas em cada 24, mas o tio nunca autorizou que se mandasse reparar a avaria”.
Escutando esta informação, o sargento Silveira, que já tinha parado de escrever e que tinha a mesma paixão que o pai pela relojoaria, levantou-se e foi até junto do relógio, que analisou detidamente. De repente, exclamou:
“Cá está!” E ergueu, na mão direita, um relativamente fino rolo de papel, atado com uma fita e lacrado, que entregou ao advogado.
O advogado quebrou o lacre, desenrolou o rolo, que observou durante um minuto e disse:
“Portanto, já temos na nossa mão o testamento do meu insigne amigo e cliente Professor Doutor Ludgero Silveira.” Passou a ler…
…Não vamos ficar escutando a leitura do testamento, o que é sempre maçador para aqueles que não são beneficiados por ele; e nós, certamente, não seremos.
Apenas queremos que nos digam o significado desta tabela. Queremos também que nos digam, pormenorizadamente, onde o sargento encontrou o testamento. E, para completar a informação, agradecemos também que nos digam o que levou o sargento a concluir que o testamento estaria exactamente onde o encontrou.

Nota: Os pequenos círculos eram pintados de negro, o que lhes dava um pequeno relevo.


SOLUÇÃO de Inspector Boavida

O velho professor Ludgero Silveira foi-se, apagou-se, finou-se. O seu passamento já era há muito esperado, devido a sua quase centenária idade, mas nem por isso deixou de ser muito lamentado e chorado por familiares, conhecidos e amigos. Mas quem mais chorou a sua morte foram sobretudo os que beneficiaram directamente do seu espírito filantropo, designadamente os que sofriam de problemas graves de linguagem, de deficiência visual, auditiva, motora, cognitiva ou de multi-deficiências, e que, graças a ele, puderam encontrar a “preço zero” um estabelecimento de ensino especial, dotado de técnicas alternativas e de equipamento específico para suprir as suas dificuldades de aprendizagem.

O popular Zé de Olhão, conterrâneo do professor Ludgero e grande amigo de um dos seus quatro sobrinhos, o famoso sargento Silveira, soube do infeliz desenlace através da rádio. Todas as emissoras de âmbito local, regional e nacional abriram os seus espaços informativos com a notícia do falecimento daquele que era um dos homens mais ricos e queridos do Algarve. O seu humanismo e a sua dedicação à causa pública valeram-lhe as mais diversas condecorações, mas a popularidade granjeada ao longo dos tempos também se ficou a dever à sua forte ligação aos desportos mentais. As palavras cruzadas, o xadrez, as damas e… as charadas eram algumas das paixões com que ocupava os seus tempos livres.

Em escassos minutos, o alter-ego de Rip Kirby passou mentalmente em revista as inúmeras e gratas memórias que guardava do falecido professor, um homem profundamente inteligente e extremamente bondoso, cuja personalidade enfermava de uma estranha, mas inabalável, superstição pelo número três e pelo triângulo. Para ele, o triângulo simbolizava a força e o poder. E era tão forte esta sua “fraqueza”, que, apesar do seu ateísmo confesso, afirmava com toda a convicção que a força do Cristianismo estava na Santíssima Trindade. Esta sua crença levava-o a garantir vezes amiúde que o (então) jovem conterrâneo Eduardo Trindade havia de ter uma vida de sucesso… devido ao seu apelido.

Zé de Olhão e Eduardo Trindade não podiam faltar às exéquias do velho professor Ludgero. Já há muito tempo que os três amigos, eles e o sargento Silveira, não estavam reunidos na cidade que os viu nascer e onde viveram e cresceram até se tornarem homens. Como é inevitável nestas ocasiões, eles acabaram por recordar os bons momentos vividos juntos, revivendo, sobretudo, os tempos de convívio partilhados com o homem singular e extraordinário a que prestavam agora sentida homenagem fúnebre. Falaram do seu espírito humanista, do seu particular gosto por charadas, e, como seria de esperar, trouxeram “à baila” o mistério da sua crença no número três, no triângulo e… na Santíssima Trindade.

A abertura e leitura do testamento do professor estava marcada para alguns dias depois e o sargento Silveira conseguiu convencer os amigos Zé e Eduardo a ficarem pelo Algarve por mais uns tempos, para poderem assistir àquela cerimónia. O evento teve lugar na biblioteca do falecido e juntou uma “multidão” de personalidades da região, para além de inúmeros amigos e, claro, os presumíveis herdeiros. Enquanto esperava pelo inicio da sessão, Zé de Olhão observou minuciosamente a sala até ficar de olhos “presos” num grande relógio de cuco, uma preciosa obra de arte produzida por um dos irmãos de Ludgero e pai do sargento Silveira, já falecido, que tinha uma louca paixão por mecânica e relojoaria.

Dotado de dois Pesos, sendo que um accionava o mecanismo que fazia girar os ponteiros e o outro espoletava o carrilhão, o relógio não era provido de pêndulo. Na opinião (errada!) de Zé de Olhão, a sua maquinaria de medição de tempo deveria assentar no equilíbrio dos dois pesos, em articulação com uma terceira peça, que se constituiria numa espécie de nervo central, que produziria um movimento periódico regular de definição do padrão do tempo, através de uma mola espiralada ou de um conjunto de rodas dentadas que receberia os impulsos dos dois Pesos. Este processo encerrava, de alguma forma, a força e o poder de que falava o professor Ludgero quando se reportava ao triângulo!...

O pensamento de Zé de Olhão foi interrompido pela voz do Dr. Peres Monteiro, advogado do professor. Depois de saudar os presentes, o causídico tirou de uma pasta um envelope endereçado à sua pessoa, com o carimbo de confidencial e lacrado com três selos, que continha no seu interior outros cinco envelopes mais pequenos, também lacrados, sendo que quatro deles eram destinados aos sobrinhos de Ludgero Silveira. O outro sobrescrito era dirigido ao advogado, onde se lia mais ou menos o seguinte: “Cada um dos meus quatro sobrinhos deve analisar o conteúdo do seu respectivo envelope e não tecer quaisquer comentários com nenhum dos outros. O testamento está na minha moradia. Compete-lhes descobrir onde».

Os quatro sobrinhos do professor Ludgero já estavam de tal maneira habituados a que o velho tio aproveitasse todas as oportunidades para lhes acicatar as meninges, com os mais diversos problemas de dedução lógica e com os mais distintos enigmas em forma de charada, que não estranharam tão insólita situação. E foi por isso que eles aceitaram de bom grado e até com bastante “desportivismo” o desafio que lhes era proposto. Um a um, levantaram-se e dirigiram-se ao Dr. Monteiro. O sargento Silveira, depois de receber o seu envelope, sentou-se calmamente entre os seus amigos Zé e Eduardo. Estava criado o triângulo. Juntos decifrariam o enigma que continha o sobrescrito. Os três seriam a força e o poder!

Não foi com grande surpresa que o sargento Silveira e os seus amigos de infância depararam com uma folha de papel escrita num alfabeto criado por um francês nascido em 1809, que teve a infelicidade de cegar aos três anos de idade, vítima de um lamentável e estúpido acidente. Luís Braille era o seu nome de baptismo. Ele devia ter pouco mais ou menos quinze anos quando inventou este código, inspirado num sistema de escrita usado para transmissões nocturnas pelo capitão Charles Barbier de La Serre – que cegara na Palestina –, também baseado na produção de pontos em relevo, que acabaria por revolucionar a comunicação escrita entre os invisuais, que até então se fazia de uma forma muito complicada.

Este processo de escrita, conhecido como “sistema Braille”, é um meio de excelência usado por cegos há mais de cento e setenta anos, constituindo-se hoje como disciplina nuclear em qualquer programa de reabilitação ou modelo de ensino para pessoas portadoras de deficiência (ou insuficiência) visual. O sargento Silveira estava bastante familiarizado com aquela escrita, não só por força dos contactos que tinha com os jovens invisuais que frequentavam o colégio fundado pelo seu tio Ludgero, mas talvez também por influência deste, que devia ter com certeza uma especial “atracção” pelo Braille, considerando o facto daquela escrita se basear em sinais com relevo em dois grupos verticais de… três pontos!...

A surpresa da mensagem deixada pelo tio Ludgero Silveira não estava no modelo de escrita utilizado, mas sim na circunstância de ser ininteligível. De acordo com a transcrição das letras correspondentes aos pontos pintados a preto com relevo para a grafia (dita) normal, a frase construída não fazia nenhum sentido. Os três amigos entreolharam-se, estupefactos. Mas a perplexidade durou pouco tempo. O cuco “cantou” três vezes… e já eram cinco horas. Soube-se que o relógio se atrasava cerca de três horas em cada vinte e quatro, e o professor nunca deixou que ninguém o “consertasse”. Segundo a Maria Isabel, isso acontecia há mais de dois anos, período temporal que era coincidente com a data da mensagem em Braille.

O sargento Silveira olhou para os amigos. Eles eram três, como três era o número “fetiche” do Ludgero. Três! A mensagem em Braille estava codificada. Cada sinal correspondia a uma letra somada de três à sua ordem no alfabeto. Ou seja, o sinal correspondente à letra A devia ler-se D, e assim sucessivamente. Desta forma, podia ler-se: DEVEM PROCURAR NO RELÓGIO DE CUCO. Perante esta “informação”, não restavam dúvidas: o testamento estava na biblioteca, compartimento onde “morava” o relógio de cuco e onde decorria a sessão. O Zé de Olhão não conhece a mecânica do relógio, mas o Silveira sim! Ele sabia onde estava exactamente o papel com as últimas vontades do seu tio Ludgero.

Só o Peso que fazia accionar os ponteiros do relógio poderia determinar o atraso ou o avanço das horas, em conformidade com o aumento ou a diminuição do seu peso. Ou seja, se o seu peso subisse de valor, a força diminuía e os ponteiros sofriam um atraso; se o seu peso descesse de valor, a força aumentava e os ponteiros registavam um avanço. O outro Peso, o que estava ligado ao carrilhão, só agia em função do encontro do ponteiro dos minutos com o número doze, dando “ordem” ao cuco para cantar a quantidade de vezes correspondente ao número que o ponteiro das horas indicava. O tal triângulo (que simboliza a força e o poder) era constituído pelo Peso dos ponteiros, pelo Peso do carrilhão e… pelo cuco!

O sargento Silveira encontrou o fino rolo lacrado (em três pontos?...), que continha o testamento, preso no cordão que suspendia o Peso responsável pelo movimento dos ponteiros. O cordão não estava ao alcance da vista de quem olhasse o relógio pelo exterior, uma vez que estava encoberto pela caixa sobre a qual giravam os ponteiros (o relógio era grande…). E seria exactamente por fora, movendo os ponteiros com as suas próprias mãos, que o professor Ludgero acertava o relógio todos os dias, ao longo dos dois últimos anos. É também de calcular que o pai do Sargento tenha sido conivente no “acerto” do peso do fino papel do testamento para provocar exactamente três horas de atraso no relógio…

Enquanto o advogado Peres Monteiro lia o testamento, Zé de Olhão deitava contas às horas de máquina de calcular em punho. Olhando, ora para os ponteiros, ora para a calculadora, questionava: «se o relógio se atrasa três horas em cada vinte quatro, significa que se atrasa uma hora em cada oito. Ou seja, se às dezassete horas o relógio estava atrasado duas horas (o cuco cantou três vezes!...), quer dizer que a primeira hora de atraso aconteceu às nove da manhã (e o cuco terá cantado oito vezes!...). Sendo assim, o acerto do relógio nesse dia teria acontecido à uma da madrugada… Mas por que raio é que a Maria Isabel estava acordada àquela hora da madrugada?!» Mas essas não eram contas do seu rosário!!!...



MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO DOMINGOS CABRAL

PROVA Nº. 8

SORTE RIMA COM MORTE, de M. Constantino


Medíocre advogado obcecado pela “roleta”, Vaz hospedava-se no Hotel Heldo I, três vezes por mês, para jogar… se é que, por motivos óbvios, não partia no primeiro… Naquela noite, entrou febril no Casino, atirou uma ficha de €100… viu a bolinha saltitar na roda, parar: ganhou! Sem forças deixou que as fichas se acumulassem, sempre a ganhar. Um saco de plástico veio parar-lhe às mãos. Despertou? Recolheu a colheita, trocou-a por dinheiro sólido, resistindo ao crédito para o dia seguinte. Queria ser rico, um só dia que fosse! Quase meio milhão! Pediu dois vigilantes para o acompanharem ao hotel. Levantou a chave na recepção, subiu com os dois homens, abriu a porta do quarto. Heldo, que na “sala de repouso” tirava um livro da última prateleira, ouviu vozes, espreitou e viu o hóspede tirar duas notas de €500 para cada um dos acompanhantes, sorrir, entrar e fechar a porta. Heldo desceu com os homens, que conhecia do Casino e soube do sucesso. Deitou-se, satisfeito. Vaz acendeu as luzes, estendeu as notas, como uma criança, contou-as e recontou-as, saudou as luzes do Casino através do vidro da janela, colocou o saco na mesa de cabeceira e, exausto, atirou-se para a cama, vestido, feliz, sorrindo para ninguém… Adormeceu. Sonhou. Uma luz sobre os olhos que tentou proteger, um véu rubro, pesado, a transformar-se em negro… no subconsciente a apagar-se, uma última reflexão: “sorte, rima com morte”!

Oito e meia da manhã. Amália, a servente dos quartos, saiu do quarto 10 e entrou no 9 com uma braçada de toalhas limpas para, como de costume, as trocar na casa de banho. Momentos depois, gritos: encontrou Vaz, morto! A irmã de Heldo, que vinha do quarto 4, seu e dos velhos pais, chamou o irmão e este a GNR; de seguida, fez um telefonema extra. O Director da Judiciária não era homem de “pedidos”, mas Heldo era seu irmão. Cerca de duas horas depois, o Inspector Cabral, mais conhecido por Inspector Aranha, pela facilidade impressionante como se movimentava nas teias do crime (segundo ele próprio um vulgar Zé dos Anzóis), chega junto de Heldo e do Tenente, que aguardavam. Este último fez um breve resumo do caso, tendo procedido às primeiras diligências com o seu pessoal: impressões digitais, vestígios, exame legal, “sem mexer no corpo”. “Certo, certo, só a hora da morte… Deixámos tudo como encontrámos.” Parecia aliviado por deixar o assunto “em boas mãos”. Cabral, decidido, subiu ao 2º andar e, guiado por Heldo, que lhe narrava a ocorrência, entrou no quarto, utilizando a chave que o Tenente lhe entregara.

As luzes estavam acesas. Reparou nas toalhas lavadas, que não chegaram a ser utilizadas, na mesa junto aos pés da cama, colocada no sentido do seu comprimento, com a cabeceira junto à parede do banheiro, na qual jazia a vítima com o rosto esfacelado. Sangue seco espalhara-se no peito e lençóis; a mão esquerda junto ao rosto; via-se o relógio de pulso destruído e os ponteiros, encravados no mostrador, marcavam 2h45. A arma do crime, um cinzeiro de pedra, pesado e rugoso, estava no chão, assinalado com um círculo a giz. A janela de vidro fechada com ferrolho em baixo, persianas meio descidas. Abriu-a e passou para o amplo terraço, comum com o quarto 11 mas separado por um muro de azulejos de 2,30 metros, impossível de transpor sem escada, aliás sem sinais de escalada. “Todos os quartos do nascente, nos 2º e 3º andares, têm esta disposição, para banho solar, mas em nenhum andar coincidem” – informou Heldo, que prometeu uma planta.

Fixando pormenores, abriu o guarda-roupa com um fato tipo smoking no cabide, calça e casaco, sapatos pretos, meias, cuecas, um lenço na mala de viagem aberta. Do dinheiro, nem sombra! Na saída, entrou na casa de banho, salpicou de água oxigenada a pia – sem resultado, se bem que quem matara tivesse de sujar-se de sangue! Foi ouvir Amália ao quarto de Marta, irmã de Heldo. Surpreendeu-se. Sem maquilhagem, olhos vermelhos de choro, morena, esbelta, blusa branca e saia preta, pernas bem torneadas terminando nuns sapatos “Gucci” de salto alto… era uma linda mulher! Sondou-a e deixou-a ir para casa, a pedido de Heldo. Para este, Amália era insuspeita. Cabral indagou se suspeitava de alguém. O visado encolheu os ombros, hesitou, depois lembrou quatro hóspedes gémeos que sempre que por ali passavam havia roubos nas redondezas. Desceram. O recepcionista, irmão e sócio de Heldo, estivera toda a noite acordado; ele e o porteiro mantinham um eterno torneio de xadrez, só interrompido pela chegada de hóspedes. Acredita que o culpado habita o 2º, pois o 1º é a sala de jantar, os restantes estão desabitados nesta época. Ninguém pode subir, nem subiu, sem passar pela recepção. Amália entrou por uma porta lateral do r/c às 8h00, passou para levar a chave antes de subir. Não distingue os gémeos (nos BI’s as fotos e digitais são iguais, como eles). Regista os nomes que lhe dizem: Albino, Betino, Celino e Delfino. Sabe que o mais velho (o que nasceu primeiro) tem um sinal no polegar direito, que os outros lhe obedecem sem querela. Um foi actor teatral, conhecido pelo “sempre actor”. Os quartos? Números 11, 12, 15, o que vem com Amélia ocupa o 8. Foi buscar um caderno onde se apontam o tempo das jogadas (para desempate) e registo de interrupções. Vaz entrou à 1h35; minutos depois, foram levantadas as chaves do 11 e do 15; Amélia e o parceiro entraram às 2h10; o gordo do 5, bêbado como sempre, às 3h20, e o do 12 às 3h35. O gay rico do 7 e a dançarina do Casino, do 3, não entraram. Os gémeos saíram às 7h30 para Coimbra, vêm almoçar. Cabral recebeu a planta do prédio e a chave mestra que estava em poder de Amália.

Subiram. Começou pelo 8; nada de interesse, excepto as duas camas unidas para o casal; seguiu-se o 11, aparentemente em ordem. Notou um cheiro a queimado, não de tabaco – algo fora queimado. No balde metálico dos papéis deparou com um resíduo de cinza inidentificável – papéis ou tecido, o qual recolheu para um envelope próprio. Ia a sair, parou, tirou da pequena mala a tiracolo um tubo, derramando o conteúdo no puxador da porta de ambos os lados, comentando: “Este, pelo menos, vamos saber quem é!” No 12, um apartamento de luxo, nada existia de interesse. No 15, idem, apenas uma revista “Art”, com folhas dobradas em algumas páginas, e foi tudo. Heldo indicou que os 13 e 2 estavam vagos, o 10 era ocupado por um casal de idosos que não quiseram ir para um lar, o 6 era do Notário e esposa, presentemente em férias. O 1 servia provisoriamente de roupeiro. Dirigiram-se à “sala de repouso”, na sequência dos quartos 12 e 15, quando o telemóvel de Heldo anunciou a chegada dos gémeos que bebiam um aperitivo por conta da casa. Sabiam da ocorrência pois toparam com Amália (um imprevisto contrariador para Cabral). Rapidamente, decidiu: Heldo dir-lhe-ia que o Inspector esperava na sala anexa dentro de 20 minutos. Entrou! Uma prateleira frontal cheia de livros até ao tecto fê-lo passar a mão suavemente sobre as lombadas, mesas com tabuleiros de damas e xadrez, cadeiras e sofás individuais. Escolheu uma mesa rectangular, colocou duas cadeiras no lado direito, uma à esquerda e duas nos topos, ocupando uma delas. Sensivelmente à hora indicada, entraram quatro clones em fila indiana: mesmo rosto, mesmo físico, barba negra (razão de não encontrar objectos de higiene), fatos azuis, gravatas, excepto um, que usava laço preto… Antes que tivesse tempo de ordenar a colocação, o primeiro da fila sentara-se na sua frente, o do laço à esquerda, e os outros nas cadeiras restantes. Olhou-os; ninguém pronunciava palavra. Notou que todos tinham um sinal no polegar, o do laço ostentava os vestígios da armadilha no puxador. Começou por este mas dirigindo-se a todos: “Sou da Judiciária, não tenho uma acusação, gostaria apenas de ouvir-vos… houve um crime e desapareceu dinheiro…”

Interrompendo, o que estava à sua frente respondeu, gesticulando, teatralmente: “Que diabo! Sempre o dinheiro! Parece que não sabem falar noutra coisa se não em dinheiro, dinheiro! Só sabem dizer dinheiro! Só conhecem a palavra dinheiro…” Cabral fê-lo calar com um gesto. Voltou ao primeiro que respondeu, com desembaraço: “Sou o caga-no-ninho da família, trabalhei no circo (abriu a camisa para mostrar uma tatuagem “Star Circo”), falhei. Sou jogador, faço trapaça, há que viver. Matar? Desde que seja num aperto…” O da cadeira à minha direita, observou: “Sou perito de uma Companhia de Seguros, pintura clássica, arte sacra e régia. Poderia facilmente roubar um Rubens ou um Renoir que valeria milhões, mas para quê, se não poderia vendê-lo ou expô-lo. Sou um admirador de D. José, o reconstrutor de Lisboa. Prefiro pensar em ter na cabeça, por um só dia, a coroa que esse Rei usava… que satisfação!” Apontou para o segundo à direita, mais afastado. Este engoliu em seco, mas com altivez referiu: “Fui professor de português num Liceu da Capital! Expulso. Ao meu ver, tem um problema sério, Inspector.” Voltou-se para o irmão: “Tu, irmão, és um dos que desejas uma coroa… eu, uma mulher! Tenho que ir fazer um telefonema para Amélia… com licença!” Levantaram-se e saíram.

Cabral ficou sentado, pensativo. Levantou-se e saiu, avisando na recepção que almoçava fora e assim fez, calmamente. Andou em volta do Hotel, foi até à praia… a cada passo encaixava uma pedra na muralha do pensamento. Quando olhou o relógio, eram 17h30. Amália, renovada, estava no bar ao lado da recepção a tomar um martini: “Então, Amália, já descansou?” A moça sorriu, não respondeu. Ia insistir, quando uma voz atrás de si pronunciou baixo: “Deixa a moça em paz, amigo!” Voltou-se. Não havia ninguém. Muito afastado, apenas o empregado, que lavava copos. Ia interpelar a moça, quando esta lhe entregou um papel que acabara de rabiscar… “Sou surda-muda, desculpe.” Ficou atónito. A moça já subira. Esperou pelo elevador e foi refugiar-se na “sala de repouso”. Com toda a discrição, como lhe recomendaram, entregou ao Tenente as suas conclusões. Heldo entrou e subiu a pequena escada de alumínio, para recolocar o livro que tirara na véspera; ao descer, reparou no investigador e dirigiu-se-lhe: “Então?” “Tudo resolvido”, respondeu o Inspector.

E os leitores? Será que decidiram da colocação de cada um dos gémeos nos quartos, do seu carácter, por quem e como foi praticado o crime?



SOLUÇÃO de Inspector Boavida

O grande Casino da Figueira da Foz está de luto. Morreu assassinado um dos seus mais fiéis jogadores. Vaz, de seu nome, tinha lugar cativo no Hotel Heldo I duas ou três vezes por mês, sempre que os seus passos o levavam até ao pano verde do black-jack, da banca francesa, do bacará ou da… roleta, o jogo que mais apreciava e onde apostava um dia triunfar. Aquela noite tinha sido de sorte, mas a madrugada foi de… morte. Quase meio milhão de euros ganhos em meia dúzia de lances na roleta foi a sua fatal perdição. Perdeu tudo numa única jogada: no meio do sono, um pesado e frio cinzeiro caiu sobre a sua leve e quente cabeça, esmagando com dor e sangue todos os sonhos de fortuna e grandeza que acalentava.

Vaz, advogado medíocre e jogador inveterado, adormeceu exausto de felicidade e… ainda cansado das emoções vividas, acordou. Foi abruptamente despertado por uma luz que irrompeu no quarto sem aviso… Um clarão indesejável apagou-se aos seus olhos quando adormeceu para sempre, depois de um cinzeiro cair brutalmente sobre a sua cabeça! Foi encontrado morto, deitado na cama, às oito e meia da manhã, por uma servente de quartos de sapatos de salto alto… uma empregada madrugadora e pouco respeitadora da privacidade dos hóspedes, que fazia as mudas das roupas de banho, manhã cedo, sem a devida autorização. Ou será que a porta do quarto de Dr. Vaz estava aberta e as luzes acesas, dando sinal verde para a sua arrumação?...

Verde ficou o Zé Aranha Cabral dos Anzóis, o diligente inspector da Polícia Judiciária chamado a deslindar tão misterioso acontecimento. Havia ali algo de muito estranho. As empregadas de Hotel responsáveis pelo serviço de arrumação de quatros apenas procedem às mudas de roupa de cama ou de banho quando os hóspedes deixam de manhã os aposentos, o que acontece normalmente após o pequeno-almoço. No caso do Dr. Vaz, que tinha “afazeres” nocturnos no Casino quando lá ficava alojado, decerto que os seus hábitos não eram muito madrugadores. Ou seja, devia ficar na cama até ao limite da hora em que se serve a primeira refeição do dia, o que acontece, por regra, nos hotéis vizinhos de Salas de Jogo por volta das onze da manhã.

Estranho era também o facto da empregada Amália desempenhar os seus serviços de… salto alto. Como bizarro fora o caso de ela ter começado o arrumo dos quartos exactamente pelos aposentos ocupados, quando havia quartos que não foram sequer utilizados naquela noite e outros que tinham sido deixados livres desde as sete e meia da manhã. Não fazia de facto sentido que, tendo ela entrado no Hotel às oito horas, iniciasse o trabalho com a mudança de roupas do casal de velhos que habitava o quarto nº. 10 e logo depois entrasse no quarto ocupado pelo Dr. Vaz. Como também não fazia sentido nenhum que ela, uma modesta servente de quartos, andasse calçada com sapatos Gucci, uma das marcas mais caras do mundo da moda.

Aquela marca de sapatos nos pés de uma criada de quatros conferia ainda uma outra curiosidade ao caso do homicídio ocorrido no Hotel. Isto porque a Gucci não está apenas associada à moda, mas também à história do crime e… das artes. Em 1995, Maurizio Gucci, neto do fundador daquela prestigiadíssima marca, foi assassinado em frente ao seu apartamento em Milão. O crime foi planeado pela sua mulher e por uma amiga. O acontecimento foi notícia de abertura nos espaços informativos da rádio e da televisão de todo o Mundo e encheu as páginas da imprensa da época. O crime acabaria, aliás, por inspirar o famoso cineasta Ridley Scott a realizar um filme sobre a história da família Gucci, com produção da super-poderosa Fox.

Cabral ficou com a “pulga atrás da orelha”. Sondou a empregada de quartos, mas um dos filhos do proprietário do Hotel, Heldo, assegurou que ela não tinha nada a ver com aquele funesto caso. Amália tinha um encanto especial. Mesmo sem maquilhagem e apesar dos olhos vermelhos do choro, a sua beleza e formosura não escaparam ao “olhar clínico” do Inspector Cabral. As suas pernas bem torneadas eram capazes de fazer perder o juízo a qualquer homem! Heldo não tinha suspeitas de ninguém, embora não deixasse de referir a estranha coincidência de acontecerem assaltos pelas redondezas sempre que se encontravam hospedados no Hotel, como era o caso presente, quatro irmãos gémeos, iguais como gotas de água.

Amália, a empregada, foi apenas sondada. Cabral concordou em deixá-la descansar. O importante para ele era conhecer os gémeos. Ficou a saber que era impossível distingui-los. Nem através dos Bilhetes de Identidade se conseguia obter tal desiderato, uma vez que tanto as fotos como as impressões digitais eram exactamente iguais. Um facto, porém, não escapou ao “faro” do Inspector Cabral: os quatro gémeos deixaram o Hotel para uma viagem a Coimbra às sete e meia da manhã, quando, na véspera, todos haviam recolhido aos seus quartos de madrugada. A ausência dos manos acabaria, no entanto, por facilitar as investigações, uma vez que o terreno estava livre para uma visita a cada um dos quartos que eles ocupavam.

Antes, porém, Cabral visitou o local do crime. O quarto tinha as luzes acesas e continuava exactamente como os homens da GNR o encontraram. A vítima jazia deitada. Ao contrário do que se supunha, as toalhas de banho levadas por Amália não estavam caídas, espalhadas a eito pelo chão, junto à cama. Facto curioso este: a empregada de sapatos Gucci viu um hóspede de rosto esfacelado e ensanguentado, já sem vida, e aproximou-se do leito da morte para deixar a roupa de banho numa mesa colocada no sentido do comprimento da cama, fazendo-o como se nada de anormal tivesse acontecido. O natural seria que, ao ver o morto, a empregada gritasse e recuasse. Mas não. Ela gritou e aproximou-se. Estranho – pensou Cabral.

A vítima tinha a mão esquerda junto ao rosto, como se quisesse amparar a pancada fatal. Os ponteiros do relógio finaram quando faltavam quinze minutos para as três. Terá sido nessa hora que o destino marcou o fim de Vaz. O sangue que secara no seu peito e manchara os seus lençóis jorrara-lhe da cabeça. O cinzeiro da morte estava caído no chão. A janela que dava para o terraço encontrava-se fechada no ferrolho, por dentro, e as persianas meio corridas para baixo. Lá fora, um muro com mais de dois metros transformava o terraço em dois, cedendo metade ao quarto do lado, o número 11. Em situações normais, um muro com aquela altura só podia ser transposto com a ajuda de uma escada e não havia vestígios de que tivesse sido escalado.

O Inspector Cabral é um homem cheio de dúvidas. Questionava-se: será que o homicida entrou pelo terraço ou a porta do quarto do Vaz foi-lhe franqueada? Uma certeza tinha ele: Quem lá esteve no quarto a fazer “maldades” ao Vaz não se preocupou em “encenar” uma entrada pela janela, caso contrário não a teria deixado no ferrolho nem com a persiana semi-descida. Ao invés, deixaria sinais claros e evidentes de abertura da janela e marcas denunciadoras da transposição do muro que dividia o terraço. Como vestígios de sangue ou … um escadote, por exemplo! Bom, a não ser que o homicida “morasse” no quarto vizinho e lhe parecesse necessário evitar a todo o custo que algo pudesse indiciar o seu envolvimento no caso!

Cabral voltou a entrar nos aposentos do Vaz. Vasculhou o roupeiro e apenas encontrou um fato de cerimónia, um par de sapatos, cuecas, meias, lenço… Camisa não havia. Nem uma! O dinheiro da roleta sumira. Entrou na casa de banho e deitou água oxigenada no lavatório. A reacção de efervescência que aquele produto provoca ao entrar em contacto com vestígios hemáticos, por mínimos que sejam, mesmo que invisíveis a olho nu, não se verificou. Se o homicida tivesse lavado naquela pia as suas mãos, com certeza ensanguentadas, esse facto não escaparia ao teste da água oxigenada! O assassínio estava sujo de sangue e decerto que não abandonou o quarto sem se limpar. Terá usado um trapo? Por exemplo, uma camisa do morto…

O Inspector Cabral quis conhecer mais pormenores sobre os gémeos. Ficou a saber que eles ocupavam os quartos números 8, 11, 12 e 15. Soube que o irmão mais velho, o que nasceu primeiro, é o chefe do “grupo da irmandade”, aquele a quem todos os outros obedecem sem querelas. Também ficou a saber que um deles foi actor e é vulgarmente conhecido como o “sempre actor”. Pouco mais se sabia dos quatro manos clones, a não ser que um vem acompanhado por uma mulher. Uma tal Amélia. Este facto deu para concluir que era o quarto número 8 que “o casal” ocupava, porque mais nenhum dos outros apartamentos tinha as duas camas encostadas. Mas faltava a resposta a uma questão: qual deles era o homem da Amélia?

Cabral visitou depois o quarto que tem terraço “geminado” com o quarto ocupado pelo Dr. Vaz. Naquele quarto, o número 11, não escapou ao olfacto do Inspector um cheiro a queimado. Num balde metálico, foi encontrado um pequeno vestígio de cinzas. Talvez de papel ou de… tecido, não se sabia. Cabral recolheu a cinza com o máximo cuidado para posterior análise laboratorial e, quando já ia a sair do quarto, aplicou no puxador da porta, por dentro e por fora, um pedaço de Roxo de Genciana, um produto cicatrizante que deixa “impresso” na pele de quem o toca pigmentos de cor entre o roxo e o azul-escuro, que só desaparece após muitas e sucessivas lavagens diárias. Nem com álcool a cor desaparece!

O périplo pelos quartos dos gémeos recomeçou pelo 12, um apartamento de luxo onde nada existia de interesse, e culminou no quarto número 15, um espaço igualmente luxuoso, mas que apresentava uma curiosidade relevante para a investigação, uma vez que podia vir a contribuir para a identificação do gémeo que lá dormia: uma edição da “Art”, uma publicação especializada em Artes, que dedica um espaço privilegiado às expressões plásticas, nomeadamente à escultura e à pintura. A revista tinha algumas páginas dobradas… e Cabral sorriu. O seu sorriso indiciava que mais uma peça daquele complicadíssimo puzzle estava a ser descoberto. A sua intuição nunca o havia traído. Ele tinha esperança de estar no caminho certo.

A caminhada seguinte levou o Inspector Cabral à “sala de repouso”, que fica ao fundo do corredor daquele piso. De repente, o telefone tocou. Não havia tempo para descanso. Os manos tinham regressado ao Hotel. Amália foi vista junto deles. Cabral partiu do pressuposto de que ela lhes contara o que havia sucedido com o “Vaz da jogatina” e apressou-se a marcar um encontro com os “pequenos”: pediu a Heldo que os convocasse para uma conversinha naquela sala, passados que fossem vinte minutos. Durante esse tempo, Cabral preparou o território. Uma mesa rectangular, uma cadeira a cada topo, duas de um lado e uma outra no lado contrário. Ele sentou-se a um dos topos e ficou à espera dos quatro gémeos madrugadores.

Os manos entraram em fila indiana. Todos vestiam fatos azuis, com gravata. Excepto um, que trazia lacinho ao pescoço. O que vinha à frente acomodou-se na cadeira situada no topo oposto ao local onde se sentara Cabral. O gémeo do laço sentou-se na cadeira à esquerda. Os outros dois ocuparam as cadeiras da direita. Enquanto ia fazendo perguntas, o Inspector reparou nas mãos do homem do laço: lá estava a marca do Roxo de Genciana. Era ele o hóspede do 11! A conversa durou pouco. Acabou quando um dos gémeos que estavam à sua direita disse que ia telefonar… para a “sua” Amélia (?). Levantou-se e saiu, levando todos com ele!!! Estava assim conhecido o mano que ocupava o quarto número 8 (os aposentos do casal!).

Cabral já tinha entretanto descoberto quem era o “sempre actor”, quando, no inicio da sua conversa com os gémeos, o que estava sentado no topo oposto ao seu desatou num discurso teatral, de gestos largos e em tom melodramático, tendo por mote o dinheiro e a sua excessiva importância na sociedade actual. Se Cabral acreditasse no seu alegado desprezo pelos valores materiais deduziria que ele ocupava o quarto 12, onde nada havia de interesse. Curioso é que esta dedução viria a ser confirmada um pouco depois, mas por mera exclusão de partes, quando o outro gémeo que estava à direita de Cabral disse (mentindo!) que era perito em obras de arte. O quarto deste era obviamente o 15, onde foi encontrada a revista “Art”!

Para além de já saber qual o quarto que cada um dos gémeos ocupavam, o Inspector Cabral estava também agora em condições de definir o carácter de cada um dos maninhos clones. O mais novo (“caga-no-ninho” = mais novo), ocupante do quarto número 11, era um trapaceiro, um jogador (terá ele estado no Casino na noite anterior?...), um artista circense (a sua especialidade seria a acrobacia?...), uma estrela em decadência, um homem sem escrúpulos, capaz até de matar se preciso fosse, como confessou. Estranho: ele parecia saber que tinha sido cometido um homicídio no Hotel, mas Cabral falou apenas em… crime! É certo que Amália tinha cruzado com os gémeos e poderia ter-lhes comunicado o assassinato do Vaz, mas...

O gémeo que ocupava o quarto número 12, o “sempre actor”, era um artista, mas muito mau! Representava tão mal, tão mal, que não conseguiu convencer minimamente o Inspector Cabral com o seu inflamado e empolgante discurso sobre dinheiro. Quis fazer-se passar por alguém alheado da realidade, um sonhador, um homem despegado dos valores materiais, que vivia no mundo da ilusão, da poesia, um ser incapaz de fazer “mal a uma mosca morta”, sobretudo tendo o dinheiro por móbil. Não passava de um grande mentiroso!!! Ele estava a par do plano que havia sido sendo engendrado para aquela noite, no quarto do Dr. Vaz. A sua deslocação a Coimbra com os restantes manos não foi ingénua. Ele sabia de tudo o que se passara.

O mano que ocupava o quarto 15, o que se dizia perito em obras de arte, também é um farsante (e ignorante). Atribuiu a reconstrução de Lisboa a um Rei (que, após o terramoto, acometido de claustrofobia, se refugiou na Ajuda, em luxuosos complexos de tendas), quando toda a gente sabe que aquela obra se deve a um polémico Ministro: Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal). Para além de ter trocado as voltas à História, o tratante ainda quis convencer o Inspector de que não são os bens materiais que o realizam, mas sim os do espírito. Denunciou-se como mentiroso quando disse que o maior gozo da sua vida seria ter na cabeça, e apenas por um dia, a coroa usada pelo monarca D. José. Coisa que este nunca teve, nunca usou!...

O irmão que habita no quarto 8 confessa preferir os prazeres mais físicos… Para além de ser um “exemplo acabado” do macho latino, é um sujeito altivo e determinado. As mulheres são a sua perdição. Mas as mentiras também!!! Disse que tinha sido professor de português e fez um discurso breve cheio de “pontapés” na gramática. Disse «Ao meu ver…», quando devia ter dito «A meu ver…». Disse ainda «Tu, irmão, és um dos que desejas…», quando devia ter dito «Tu, irmão, és um dos que desejam…». Se ele tirou algum curso na sua vida, foi a de mentiroso!!! Ou, talvez, de sexólogo. O sexo parece ser a sua verdadeira vocação. Ele ocupa-se agora dessa especialidade tendo uma estranha, misteriosa e ausente (?...) Amélia como parceira para aulas práticas.

Quando os gémeos saíram em debandada da “sala de repouso”, acompanhando o que parece ser o mais “velho”, que deixara Cabral “a falar sozinho” com o pretexto de ir telefonar para Amélia (?), o Inspector ficou por uns breves instantes sentado e muito pensativo. O puzzle estava quase montado. Faltavam apenas algumas pequenas peças. Era necessário reuni-las, com calma e paciência. Um bom passeio à beira mar, precedido de um almoço de peixe grelhado, acompanhado de um branco fresquinho, seria um bom tónico para as suas privilegiadas meninges. Mas os sapatos Gucci, a forma como ocorreu a morte do neto do fundador daquela marca de calçado e as mulheres que engendraram o seu assassínio, persistiam em matraquear a sua cabeça!...

Cabral não queria ser influenciado pela relação dos sapatos de salto alto usados por Amália com a morte de Maurizio Gucci! Até porque a época era outra e o assassínio de Vaz jogador não parecia ter sido motivado por razões passionais. Com algum esforço, fixou-se nos gémeos e numa simples pergunta: qual deles podia ter assassinado o ocupante do quarto 9? O gémeo do quarto 12, o “sempre actor”, entrou no Hotel quando já passava das três e meia da manhã e o Vaz levou com o cinzeiro da morte muito antes, quando faltava um quarto para as três. Portanto, este não podia ter sido o autor do homicídio, pelo facto de ter entrado no Hotel depois da hora morte! Mas já tinha sido com certeza informado da consumação do crime!...

O ocupante do quarto número 15, o gémeo que diz ter por paixão as Artes, nomeadamente as obras clássicas, sacras e régias, e que fingia ter um particular gozo em tocar nelas, sem delas ter qualquer beneficio material, chegou ao Hotel poucos minutos depois do Dr. Vaz ter entrado na companhia de dois vigilantes do Casino e de… um saco de dinheiro. O gémeo “perito em Arte” estava no Hotel quando o Vaz morreu, mas nada indicia que tenha sido o autor material do crime. O que não quer dizer que não fosse cúmplice… Por outro lado, falta encontrar a resposta a uma pergunta que se ajusta a todos os suspeitos: como é que o homicida entraria no quarto do Vaz, se este se trancou por dentro depois de voltar do Casino cheio de massa?

O gémeo do quarto número 11, o que tem terraço “geminado” com o quarto da vítima, gosta muito de jogar! O rapazola teria estado no Casino?! Teve conhecimento da fortuna ganha pelo Vaz? Talvez. Mas o roubo fora com certeza planeado antes. O Dr. “viciado na roleta” tinha chegado nesse dia. A sorte não seria tão madrasta ao ponto de ele perder todo o dinheiro numa só noite. Podia até acontecer o contrário… como sucedeu, aliás. O “gémeo do laço” admitiu ser capaz de matar. E o rapazinho define-se como trapaceiro. Mas como é que ele entrou no quarto da vítima – questionava-se Cabral? Será que a sua especialidade como artista lhe permite a proeza de galgar um muro com mais de dois metros, sem deixar vestígios?!...

Falta o gémeo do quarto número 8, o garanhão, o homem da Amélia (?...). Ele levantou a chave dos seus aposentos às duas e dez da manhã. Já estava no Hotel quando o Vaz “bateu a bota”, mas àquela hora um macho que se preze, sempre sedento de sexo, e ainda por cima acompanhado da sua fêmea querida, não tem tempo a perder com mais nada. Ele já sabia do monte de massa que o Vaz tinha ganho nessa noite. Notícias dessas correm depressa… O dinheiro era muito e fazia-lhes muita falta… Mas há muito que já estava tudo previsto e controlado para que o “pilim” do doutorzeco ficasse em “boas mãos”. Era exactamente por isso que no dia seguinte, bem cedo, os quatro manos iam todos até à cidade do “Portugal dos Pequenitos”…

Os gémeos saíram para Coimbra às sete e meia da manhã. Podiam muito bem ter levado o dinheiro escondido numa mala de senhora... Não havia nada a fazer: a morte de Maurizio Gucci e os sapatos de salto alto da empregada não deixavam de “arranhar” o pensamento de Cabral. O Inspector voltou ao Hotel e… para sua surpresa voltou a encontrar Amália (?...). Eram cinco e meia da tarde e a moçoila estava a beber um martini, no bar. Cabral dirigiu-lhe a palavra e ela calou-se. Em vez de se ouvir a sua voz, foi outra que se ouviu (baixinho: «deixa a moça em paz, amigo»). O Inspector voltou-se e não viu ninguém por perto. Quando se dirigiu de novo à jovem, ela deu-lhe um papel onde se podia ler: «sou surda-muda, desculpe»!...

O Inspector Cabral ficou atónito, meio parvo, completamente perplexo. Quando se recompôs, já Amália (?...) tinha subido no elevador. Ele não teve quaisquer pressas. Ficou serenamente à espera que o ascensor ficasse livre e subiu nele, depois. Dirigiu-se então para a “sala de repouso” e começou, calmamente, a redigir um relatório com as conclusões da sua investigação. Quando Heldo, um dos filhos do proprietário do Hotel Heldo I, entrou para colocar nas estantes o livro que havia retirado na noite anterior, utilizando o pequeno escadote que por lá se encontrava, já Cabral tinha acabado o seu trabalho. «Está tudo resolvido!», exclamou o Inspector Zé Aranha Cabral dos Anzóis, para espanto do irmão do Director da Polícia Judiciária.

Amália era Amélia (ou Amélia era Amália?...), um caso de dupla personalidade quase esquizofrénico. Um mulher que tinha uma vida dupla! De dia era uma modesta empregada de quartos e de noite servia(-se) “à grande” nos quartos. Ela já conhecia os gémeos há muito tempo, com quem tinha colaborado em diversos furtos em ocasiões passadas, sempre que eles vinham por aquelas paragens. Fingia de surda-muda quando era Amélia e era capaz de falar (e de gritar!!!) quando era Amália. Foi a cumplicidade destas “duas mulheres” que retirou a vida ao viciado jogador Vaz, da mesma forma que foram também duas mulheres que “assinaram” o homicídio de Milão, em 1995, que vitimou o neto-herdeiro do fundador da marca Gucci.

No dia anterior à morte de Vaz, foi como Amália que esta dupla-mulher preparou tudo, em combinação com os gémeos. Entrou no quarto do Dr. Vaz, deixou a janela desferrolhada e de persiana subida, de maneira a que um dos gémeos (o artista circense!) pudesse entrar através do terraço. Este utilizou, para o efeito, o escadote que havia na “sala de repouso”, em perfeita conjugação com os seus dotes de artista. Subiu o muro pelo lado do seu quarto, “pescou” o escadote com um dos pés e puxou-o para cima. Quando estava no topo, passou para o outro lado deslizando pelo muro e levando o escadote no pé (ele era um homem ginasticado, um acrobata-malabarista de primeira água!..), descendo os seus degraus até ao solo sem qualquer ruído.

O gémeo circense abriu a janela com o máximo cuidado, pegou em silêncio num cinzeiro igual aos que ornamentavam todos os quartos, dirigiu-se à cama onde dormia Vaz e, para não errar o alvo, acendeu as luzes. O advogado acordou estremunhado e mal tempo teve de perceber o que estava a acontecer. Mesmo assim, ainda tentou desesperadamente defender-se. Ergueu o braço esquerdo à altura da cabeça, mas de nada lhe serviu. Apenas conseguiu que o relógio de pulso permitisse mais tarde que a GNR e Cabral determinassem a hora da ocorrência. Uma pancada forte desfez-lhe a cabeça e os sonhos. O sangue cobriu-lhe os olhos, o rosto, os lábios. Vaz sentiu com dor e sangue a sua partida para um buraco negro, fundo e sem fim.

O gémeo “caga-no-ninho” ficou com a mão assassina manchada de sangue da vítima, que havia também salpicado a sua camisa (t’shirt?..., camisola?...). Ele não podia saltar assim o muro, de volta ao seu quarto. As marcas de sangue ficariam lá marcadas. E não queria correr o risco de sair pela porta do quarto de Vaz. Podia ser visto por alguém. Antes de pegar no saco de plástico que continha o dinheiro ganho na roleta, o gémeo despiu a sua camisa salpicada de sangue, limpou com ela as mãos e enfiou-a no saco… sem sujar a “massa”. Pegou numa camisa do morto e vestiu-a. Foi assim vestido que ele retornou ao terraço e saltou para o outro lado do muro utilizando o mesmo expediente do “pé de escadote”. Amália faria o resto!...

Entretanto, já no seu quarto, o gémeo “Star Circ” queimou no balde metálico dos papéis a sua roupa salpicada de sangue e a camisa do morto. Despejou a cinza na sanita, mas não toda…. (o Inspector Cabral acabaria por detectar não só o cheiro da queimada, como também alguns vestígios da cinza). O gémeo lavou então, vezes sem conta, as suas mãos e, depois, foi muito descontraidamente depositar o pequeno escadote na “sala de repouso”. Se alguém o visse julgaria que ele teria ido buscar um livro para fazer face a qualquer insónia, daquelas mais resistentes. Voltou ao seu quarto. Já tinha consigo o dinheiro. De manhã cedo, as sete e meia, iria com os manos colocar a “massa” em lugar seguro. Em Coimbra? Porque não?! É ali tão pertinho!...

De manhã, à hora combinada, os quatro gémeos e Amélia (…) saíram do Hotel. O saco do dinheiro estava em segurança, “em boas mãos”. Meia hora depois, às oito em ponto, Amélia metamorfoseou-se em Amália. Com a pressa esqueceu-se de trocar de sapatos e nem deu por isso. Entrou pela porta lateral, passou pela recepção e levantou a “chave mestra”. O recepcionista e o porteiro terão comentado pela enésima vez: a Amália é muito parecida com a gaja que anda com o gémeo do 8! Afinal ela era as duas! Amália e Amélia eram apenas uma. Amália falava e ouvia; Amélia fingia-se surda e muda, mas ouvia o telefone tocar quando o gémeo que a “trincava” lhe ligava (ele disse na “reunião” com Cabral que tinha de telefonar para a sua Amélia)...

Amália não perdeu tempo com o seu serviço. Começou por tratar do quarto do casal de velhos e foi de seguida para o quarto do Vaz. Certificou-se se havia vestígios no terraço e no muro, trancou a janela, desceu as persianas, colocou as toalhas de banho na mesa colocada aos pés da cama e… gritou, gritou, gritou! Chorou muito Amália. Chorou tanto que metia dó! O filho do dono do Hotel teve tanta pena dela que a mandou para casa descansar, com a anuência do Inspector. Este desconfiou dos sapatos Gucci e do comportamento da jovem, mas… Heldo garantiu que ela era boa moça, livre de suspeitas. Boa era ela, como o Cabral teve ocasião de constatar. Mas isenta de suspeitas, isso não. Para um bom investigador que se preze, todos são suspeitos!...

Amália saiu como Amália, mas regressou pouco depois como Amélia. Era ela que estava com os gémeos quando eles voltaram para o almoço. E foi também como Amélia que ela se apresentou no bar do Hotel às cinco e meia da tarde, para beber um martini. Fingiu-se surda-muda, para não ser incomodada. Utilizando os seus dotes de ventríloqua, “arte” que aprendeu com o gémeo “caga-no-ninho”, conseguiu deixar o Inspector Cabral a “falar sozinho”. Disse com a sua voz “ventriloquista”: «deixa a moça em paz, amigo», Cabral procurou por perto quem poderia ter dito aquela frase e não encontrou ninguém. Quando se voltou, Amália/Amélia já se tinha sumido para o quarto número 8. De elevador, para não se cansar. Levava nos pés sapatos Gucci!... 
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