MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO JARTUR MAMEDE
PROVA Nº. 1
MEMÓRIAS DE TEMPICOS (O Clube dos Mentirosos), de A.Raposo & LenaHoje vou contar-lhes mais uma das minhas histórias. Passou-se esta nos anos 90. Nessa altura trabalhava eu no edifício da Sede da P.J., ali bem pertinho do Liceu Camões, em Lisboa.
Calhou-me na sorte investigar um crime deveras curioso. Em pleno Largo Trindade Coelho (antigo Largo da Misericórdia), havia um prédio que tinha no rés-do-chão lojas de alfarrabistas e no 1º e último piso um clube. Era nem mais nem menos o Clube dos Mentirosos.
Nunca li os seus estatutos. O Clube dedicava-se à promoção do jogo do bilhar. Nada teria a ver com mentiras. Só depois percebi que o nome seria outro, mas era conhecido assim porque os seus quadros directivos e funcionários mentiam, compulsivamente. Numa pequena conversa sempre conseguiam meter uma mentira.
Na sede, havia um salão onde se efectuavam, regularmente, campeonatos de bilhar. Mais ao fundo, uma sala mobilada com uma secretária junto à janela que espreitava para o Largo e que ficava mesmo em face da escadaria da Igreja de S. Roque; era a sala do director, exactamente onde ele tinha sido morto.
Era director da colectividade um velho careca, solteirão misógamo, o conhecido major Tapioca. Um homem de mau feitio, que toda a direcção odiava.
Como assessora da direcção, trabalhava a menina – solteirona inveterada – Aldegundes, personagem de pêlo na venta, que nutria um ódio de estimação pelo seu chefe, o presidente, de quem recebia ordens e raspanetes a toda a hora. Tapioca obrigava-a a trabalhar muito para além do horário de trabalho.
Aldegundes confessou a Tempicos:
“Naquele dia, preparei-lhe, antes de sair, o habitual chá. O presidente só apreciava o chá quente. Eu levei-o geladinho, como vingança. No líquido, coloquei, com muito cuidado, o conteúdo de uma cápsula desfeita. Cianeto! Aproveitei um momento em que ele foi à casa de banho. Deixei-lhe a chávena na secretária e fui-me embora. Tenho a certeza que o liquidei. Fi-lo de forma premeditada, pois já não podia aguentar as suas atitudes. A cápsula de cianeto consegui-a através de um oficial alemão, que recuperava dos ferimentos, em Portugal, obtidos na I Grande guerra, de nome Heinrich Himmler, das S.S.”
O secretário fora ao fim da tarde à sede do Clube. Contou a Tempicos:
“Subi no elevador da Glória e fui a pé até à sede, que é ali perto. Quando percorria o passeio junto à escadaria da Igreja de S. Roque, lembro-me ver dois miúdos a pedir para o Santo António, uma tradição popular. Dei dois tostões a cada um e segui. Abri a porta e subi até ao 1º andar. Fui à sala do major Tapioca. Pareceu-me estar a dormitar na secretária. A sala tinha pouca luz e havia no ar um cheiro adocicado. Logo dali da porta saquei o meu revólver e disparei na careca dele. Saí, calmamente. Não me pareceu haver mais ninguém no Clube. Confesso que o matei.”
Registei todas as informações, inclusive aquela que me disseram que todos os membros da direcção tinham a chave do Clube.
Fui ouvir o último dos suspeitos, o tesoureiro, que me disse:
“…ao fim da tarde, entrei no Clube. Pareceu-me não haver ninguém. Subi e dirigi-me à sala do presidente. Ele estava na secretária, pareceu-me que a dormitar. A luz era fraca; somente um raio de sol entrava pela janela. Fui pé ante pé e cravei-lhe um punhal nas costas. Se ele estivesse a dormir, então, quando acordasse, estaria morto! Havia na sala um cheiro esquisito a amêndoas amargas (ou seria a pipocas?), que não era costume. Enfim, matei-o. Tenho as minhas impressões digitais no punhal e isto é uma confissão.”
O resto da história conta-se breve. A chávena de chá estava quebrada, no chão. Na secretária só ficou o pires, intacto.
A bala entrara no topo da careca e a ferida apresentava queimadura nos bordos. Uma pequeníssima quantidade de sangue escorrera da ferida da bala. Igualmente a faca espetada não fizera ensanguentar a zona.
Sabemos que cada um dos pretendentes a criminoso era mentiroso compulsivo. Precisamos definir quais as mentiras que contaram, comprovadamente expostas nas suas afirmações.
Por fim, não peço mais nada se não a nomeação da personagem que levou o major Tapioca à morte.
SOLUÇÃO de Inspector BoavidaQuando chegou ao local do crime, o inspector Tempicos ficou perplexo. A vítima jazia debruçada sobre a secretária, com a cabeça perfurada por uma bala e as costas atingidas por um punhal. No chão, havia uma chávena de chá… quebrada! A sala onde se registara aquela estranha ocorrência era o gabinete da presidência da colectividade lisbonense “Ases do Bilhar”. O morto era o conhecido major Tapioca, um sujeito que não gozava de muita popularidade por aquelas bandas, apesar de ser o presidente do clube. Era odiado por todos, principalmente por dois dos seus parceiros de direcção e pela sua assessora. Estranhamente, cada um destes três elementos reclamava para si a autoria do homicídio. Mas como todos eles tinham a fama de mitómanos, o melhor era ouvi-los com o máximo de atenção e cuidado.
A assessora da direcção era “a menina Aldegundes”, uma solteirona inveterada de nariz empinado, que se queixou da forma déspota e quase desumana como o presidente a tratava. Diz ela que já não suportava os despautérios e os desaforos do major, que passava o dia passar-lhe raspanetes e a exigir que trabalhasse para além do horário de serviço. O ódio foi-se acumulando e decidiu matá-lo. Aproveitou a ida do Tapioca à casa de banho para lhe preparar o habitual chá, que ele tanto apreciava (mas desta vez gelado!...), onde despejou o conteúdo de uma cápsula de cianeto. Deixou depois a chávena na secretária e… pôs-se na alheta. Esta história não convenceu o inspector, que se questionou como seria possível o major não ter estranhado a temperatura do chá, o cheiro intenso que emana do cianeto e a sua cor.
Poder-se-á admitir que o chá gelado não seria incómodo para o major, se considerarmos que a acção se passou no mês dos santos populares (Junho) e o calor já dera “sinais de vida”. É também natural que ele não tenha sentido o intenso e característico cheiro “adocicado” do cianeto. Não porque estaria habituado a tomar chás aromáticos ou tivesse o seu sentido olfactivo pouco apurado, mas sim porque o cianeto quando diluído em água não emana cheiros nem denuncia a sua azulada cor. Se assim não fosse, o major teria desconfiado da bebida. Mas talvez ele tivesse uma confiança sem limites na sua assessora. Se assim era, ter-se-á arrependido quando bebeu o primeiro gole. O cianeto em água gelada demora muito tempo a dissolver-se e o seu sabor é insuportável quando ingerido antes de estar completamente diluído.
Mas se é verdade que o presidente Tapioca só apreciava o chá quentinho, por que raio haveria ele de beber aquela mistura “explosiva”… gelada?! Será que só se apercebeu de que o chá estava frio quando o levou à boca? Talvez sim. Mas então já era tarde, tarde demais! Um grama de cianeto é capaz de matar uma pessoa adulta em menos de um minuto. Não há recuo possível, a morte é certa! Diz a assessora Aldegundes que o cianeto que matou o major lhe fora fornecido por uma sinistra figura, o tenebroso oficial alemão Heinrich Himmler, das terríveis e implacáveis SS, que, segundo ela, estaria em Portugal nessa altura, nos anos noventa do século XX, a tratar de ferimentos resultantes de combates travados na primeira Guerra Mundial, conflito ocorrido entre Agosto de 1914 e 11 de Novembro de 1918.
O inspector Tempicos não é parvo nem ignorante. Ele sabe muito bem que o homem forte das SS (e da Gestapo!), o poderoso Heinrich (Luitpold) Himmler, nasceu em Munique em 7 de Outubro de 1900 e suicidou-se em 23 de Maio de 1945, em Luneburg, com uma cápsula de cianeto!.. Quando ocorreu a primeira Guerra Mundial, ele já era Cadete, mas nunca esteve em combate naquele conflito. Por outro lado, nos anos 90 já tinha morrido há muito!... E quanto às SS, aquela força de elite só foi criada nos anos 20, tendo Hitler sentindo depois a necessidade, durante o III Reich, de ampliar o seu raio de acção e diluir o poder das Forças Armadas, criando uma subdivisão dentro das SS (tropas de prontidão!...), que tinha como “objectivo inicial” o controlo de desordens internas e a repressão de manifestações ou greves...
O secretário, o “Zé das Três Tabelas”, era um dos dois membros da direcção da colectividade “Ases do Bilhar” que reivindicavam igualmente a autoria da morte do presidente Tapioca. Diz ele que chegou à sede do clube ao fim da tarde, vindo do velhinho elevador da Glória. Fez o percurso a pé até ao largo Trindade Coelho e, antes de entrar, parou junto à escadaria da igreja de São Roque, que fica mesmo em frente ao gabinete da presidência do clube, para dar dois tostões a uns miúdos que andavam “a pedir para o Santo António”. Foi a sua primeira mentira. Naquela altura já não havia moedas de um tostão e de dois tostões, uma vez que elas foram retiradas de circulação em 1982, o que viria também a acontecer alguns anos mais tarde, exactamente em 1993, com as moedas de cinco e de vinte e cinco tostões.
A segunda mentira veio logo a seguir. O tesoureiro afirmou que disparara sobre a careca do major Tapioca de longe, da porta de entrada no gabinete, quando o viu, supostamente adormecido, debruçado sobre a secretária. O inspector sabia perfeitamente que a arma fora disparada com o cano quase encostado à cabeça da vítima, uma vez que o buraco provocado pela bala apresentava queimadura nos bordos. O “Zé das Três Tabelas” disse ainda que havia um estranho cheiro “adocicado” no gabinete do major Tapioca, o que podia ser explicado por duas razões: aquele odor ou provinha do corpo do cadáver, que exalava o cheiro do cianeto pela boca e pelos poros, ou do chão, por onde se espalharam as partículas daquele potente veneno, que não chegaram a ser completamente diluídas pelo chá, empestando o meio ambiente.
O tesoureiro do clube, o “Jonas do Snooker”, também fez alusão à existência de um inusitado cheiro a doce que pairava no gabinete da presidência, o que reforça a convicção da existência de cianeto no local. Disse ele que chegou ao clube ao fim da tarde e que lhe pareceu não haver ninguém por lá. Subiu e dirigiu-se à sala do Tapioca, onde a luz era fraca e apenas uma nesga de sol entrava pela janela. Esta mentira não escapou à atenção do inspector. Tempicos sabia que não era possível que, ao fim da tarde, houvesse raios de sol a entrar pela janela daquele gabinete, uma vez que fica voltado para a igreja de São Roque, que está situada a norte. O “Jonas do Snooker” reclamava a autoria do crime. Disse ele que o major estava a dormitar e decidiu matá-lo. Entrou na sala e enfiou-lhe uma faca nas costas!
O tesoureiro era muito gracioso. O seu sentido de humor não deixou de se fazer sentir, apesar da situação não ser muito propícia a gracinhas. Disse ele que, ao espetar a faca no Tapioca, pensou que, se ele estivesse a dormir, quando acordasse estaria morto. Mas será que o major morreu da facada? Ou terá morrido do tiro? Ou será que faleceu de envenenamento? Esta era a questão: quem teria assassinado de facto o major? O inspector olhou para o ferimento existente nas costas da vítima e sentenciou com convicção fundada nos seus conhecimentos forenses: «Não foi a facada que matou o presidente. Se ele estivesse vivo no momento da facada, teria sofrido uma hemorragia abundante! Numa agressão destas, só um morto não sangra. A inexistência de sangue significa que a vitima já estava cadáver há horas».
Na verdade, para que se verifique uma hemorragia temos que estar perante um vaso sanguíneo, de maior ou menor calibre, que sofre uma ruptura no seu curso, seja esta por perfuração, abrasão ou corte. Quando o indivíduo está morto, o sangue não circula, logo não existe hemorragia activa na qual se verifique uma perda significativa de sangue. No entanto, quando se dá o óbito, os grandes vasos e os capilares periféricos mantêm-se preenchidos com sangue, pelo que, pouco tempo após o óbito, se a vítima sofrer qualquer tipo de agressão traumática, é possível que se verifique uma perda discreta de sangue, que se deve apenas ao sangue que se encontra presente nestes vasos. Este facto é mais evidente quando estamos perante zonas altamente vascularizadas, como é o caso dos lábios, da região peri-ocular ou do… couro cabeludo.
O inspector Tempicos concluiu, assim, que o tiro desferido pelo secretário de direcção da colectividade “Ases do Bilhar” teve lugar pouco tempo depois da morte do major Tapioca. Se este ainda estivesse vivo quando a bala o atingiu, a hemorragia seria intensa. Sublinhe-se que, para além da perfuração do coro cabeludo, o tiro provocou igualmente queimaduras na zona atingida, por via do disparo ter sido efectuado a poucos centímetros da cabeça, o que naturalmente originaria ainda uma maior abundância de perda de sangue (se a vitima estivesse viva, claro!). Em resumo: havendo apenas uma pequeníssima quantidade de sangue a escorrer da ferida da bala, não foi o tiro que matou o major! Ele estava morto quando foi “assassinado” por mais duas vezes, primeiro pelo secretário e depois pelo tesoureiro!
Por exclusão de partes, a conclusão só podia ser uma: foi a assessora de direcção quem matou o presidente… por envenenamento. Só faltava saber qual foi o motivo do crime. Terá sido apenas por estar farta de ser maltratada pelo chefe?... É o que ela diz, mas toda a gente sabe que aquele clube está infestado de mentirosos compulsivos. E também se sabe que a “donzela” era uma solteirona inveterada e que o presidente tinha horror ao casamento! Será que a “piquena” andava “in love” com o major? – era esta agora a dúvida que pairava no espírito do inspector Tempicos. De facto, podia dar-se o caso da menina Aldegundes ter uma relação secreta com o Tapioca e ter-se cansado de esperar pela assumpção e oficialização do namoro. Será que o malandreco do major andava a iludi-la com a promessa de casamento?
Talvez nunca se chegue a saber quais as verdadeiras razões que levaram Aldegundes a matar o major. Para já, sabe-se que o chá com cianeto estava gelado porque… a vingança serve-se fria! O resto da história conta-se em breves palavras: a chávena de chá acabou quebrada, o pires ficou intacto, o presidente Tapioca caiu sobre a secretária, o cheiro do veneno empestou o ar, o secretário gastou uma bala em vão, o tesoureiro afiou a faca em vão e a assessora ficou solteira (para sempre?)!... Quanto ao inspector, sabe-se que tem andado por aí a despedaçar corações… mas nunca se constou que alguma vez tenha conquistado o amor da fogosa Aldegundes. No entanto, algumas más-línguas vêm agora dizer que a (trofense) Katinha Vanessa não é filha da mítica Nelinha mas sim da menina Aldegundes… e do Tempicos! Quem sabe?...
Em tempo:
Quando o tesoureiro diz “…ao fim da tarde, entrei no Clube. Pareceu-me não haver ninguém. Subi e dirigi-me à sala do presidente”, poder-se-á fazer a interpretação (porventura abusiva…) de que ele estaria a cometer uma mentira estúpida. Porque, se estava dentro do clube, não podia subir em direcção ao gabinete do presidente, uma vez que aquela dependência fica no mesmo piso das restantes salas. A colectividade apenas ocupa o primeiro (e último!) piso do prédio!!!
MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO JARTUR MAMEDE
PROVA Nº. 2
UMA LÁGRIMA NO ROSTO DA RAINHA, de L.SA claridade da manhã tomara conta da cidade duas horas antes. Ainda tudo dormia!
O doutor Santiago, solicitador, vestindo a rigor aquele fato especial reservado só para os grandes momentos, ia meditando na sua tarefa desse dia, à medida que avançava no empedrado. Não podia perder o negócio do novo registo de propriedade na Comissão de Valores Imobiliários do edifício dos CTT, na capital, pois o cliente, gente poderosa, especulativa mas boa pagadora para os seus mais serviçais colaboradores, deixara bem fincada a decisão de em dois dias se proceder, sem falta, ao registo. Por isso, o doutor agarrava na sua mão direita a pasta, com firmeza, apesar da corrente que a prendia ao pulso, qual algema posta a condenado.
Ao longo da Rua Adelino Veiga, lugar habitual das meninas de vida fácil, também deserta, silenciosa, a sua cabeça martelava na mesma ideia que o fazia, tão cedo, seguir até Lisboa no trem mais rápido da manhã – “O negócio do ano!” O seu escritório e os dois colaboradores estagiários igualmente veriam assegurada ali a sua actividade pois nos últimos tempos a dificuldade na liquidação do pagamento dos seus salários era a maior dor de cabeça. Felizmente o panorama parecia, assim, ir aliviar durante uns tempos…
Alcançou os primeiros degraus da escadaria da Estação Nova, subiu-os no compasso anterior e no patamar, parando por instantes, não pode deixar de reparar em dois paisanos de capa e batina dormindo, a sono solto, mais abaixo no lado dos degraus contíguo à parede do edifício, ombro com ombro, e em seu redor várias garrafas de cerveja, vazias. “Ainda traços da Queima das Fitas da véspera”, pensou para os seus botões… Apreciou o lixo existente ao longo da Emídio Navarro até onde os seus olhos alcançavam – “os almeidas naturalmente tiraram a noite, ter-se-ão unido à festa”, equacionou – lançando também uma mirada para os dois táxis parados na praça, único sinal aparente de vida activa, a massa de água do Bazófias calma e acolhedora da cidade, a Ponte e mais além Santa Clara com a Igreja da Rainha abençoando da colina, no seu vulto imóvel e secular, todo o casario em redor.
Entrou para o átrio da Estação, virou ao espaço localizado à esquerda onde se refugiava uma das bilheteiras servindo os viajantes e adquiriu o bilhete para Lisboa. Quando a sua figura se perfilou na porta interna do cais aos seus olhos apareceram, de frente, as duas linhas do comboio vazias. A ligação estaria por minutos a chegar. Uma necessidade sentida desde há minutos fê-lo encaminhar-se para a gare direita, era aí a WC e ao passar por uma porta cerrada contendo a indicação superior de “Chefe da Estação” apreciou o corpo de um vagabundo dormitando encostado a uma das ombreiras, vestido de casacão muito surrado e de face suja de barba de vários dias, remoendo os maxilares qual bovino mastigando. A casa de banho largando um odor fétido a urina e a falta de asseio encontrava-se mergulhada numa semi-obscuridade pouco recomendável a quem gosta de se servir sem arriscar um pé numa poça de líquido imundo, e não lhe agradando o que observara dos mictórios e do odor também dali exalado optou pelos compartimentos. Abriu um deles, viu e sentiu possuir higiene mínima desejável, segurando a porta com o braço esquerdo, zip abaixo, começou a aliviar-se. Estava nisso quando subitamente sentiu a porta deixar de pressionar o braço e sem ter tempo de se virar para perceber o que a continha o frio de uma lâmina entrou nas suas costas, acutilante. Numa fracção de segundos viu fugirem-lhe as forças e a reacção, as ideias turvarem-se, e sem um ai caiu de borco para cima da sanita, enrolando-se o corpo sobre si mesmo.
A Judiciária alertada de imediato fez deslocar para ali um grupo de investigadores chefiados pelo Inspector Artur M. (orgulhava-se desse tratamento) e a primeira decisão foi a de mandar fechar a Estação Nova à curiosidade do público. Executados os procedimentos adequados na recolha de vestígios biológicos, lofoscópicos e outros, de acordo com o Perito Médico-Legal efectuou-se o levantamento do cadáver do doutor Santiago para o IML. Enquanto a autópsia não era realizada procedeu M à enumeração dos dados ao seu alcance, permitindo estabelecer, por exemplo, se encontrarem nas instalações da estação, a essa hora da manhã, apenas quatro pessoas. O Chefe da dita, Acácio dos Reis, o cansaço de uma noite mal dormida fizera-o recostar no sofá de um anexo ao gabinete até à chegada do comboio de ligação para a Estação Velha, com seguimento, depois, para a Praia da Claridade via Pampilhosa, um vagabundo dormitando encostado à porta do Chefe da Estação, Apolinário dos Anjos, o homem dos bilhetes. Manuel Antunes e a empregada da limpeza que chegara e dera pela existência daquele corpo.
Manuel Antunes foi ouvido num espaço reservado na estação para o efeito, prestando-se a esclarecer todas as questões e dúvidas dos homens da PJ.
– Seriam, talvez, 6h50, Sr. Inspector, quando se me dirigiu um senhor todo bem posto a pedir um bilhete de primeira para o Rápido com destino a Santa Apolónia. Uma vez efectuado o pagamento do montante e ter aquele cliente recolhido o bilhete, num espaço de dez minutos não apareceu ninguém mais a pedir bilhete para o comboio. Foi mais ou menos nessa altura que ouvi os gritos da mulher de limpeza quando entrou na WC dos homens e viu o corpo daquele senhor, verificando por mim mesmo tratar-se do tal cliente que seguia para Lisboa. Pude aperceber-me no meio da pequena alteração à paz da Estação, que o doutor – vim a saber há pouco de quem se tratava – já não tinha consigo a pasta que levava antes agarrada ao pulso direito.
O vagabundo atrás mencionado, Apolinário dos Anjos, na realidade um “macaco velho” de 60 e poucos anos, maltrapilho por desleixe e finório por escola de vida, era um habitue da Estação. Há anos que fazia dali o seu refúgio pois sem eira nem beira aproveitava todos os cantinhos possíveis e permitidos para se aninhar e passar a noite. Contavam-se estórias dele, de mariola, algumas contas ajustadas nos tribunais da região e um rol assinalável na sua folha existente na Polícia. Vinha algo assustado e inquieto quando o Inspector o viu entrar na sala escolhida para audição das testemunhas e intervenientes.
– Então Apolinário, como vão esses ossos? Proferiu M, esticando a mão aberta ao seu “velho conhecido”, artista do tempo em que ele investigava na área do furto. Um cheiro a porcaria, forte e cáustico, invadiu a sala. Uma morte a ocorrer bem ali a teu lado, hein?, meu caro, que sabes tu a esse respeito? Que tinhas contra o doutor…?
– Eu Inspector…? Eu? Nada! Não tenho nada mesmo a ver com isso…, dizia ele com os olhos esbugalhados e com a mão esquerda nervosa segurando algo sob a sua camisola de cor azul escura, muito suja e com buracos aqui e acolá a aparecerem que o casacão de fazenda muito velha, de um negro indefinido, tentava cobrir. Tava a dormitar num dos meus locais favoritos, tive a sorte do Chefe não aparecer senão era corrido dali, quando acordei de vez ao ouvir os gritos da Dona Adosinda… Coitada da senhora. Assustou-se e assustou todo mundo que a ouviu. Eu não fui excepção, pode crer. Levantei-me e lá dentro na casa de banho vi… Olhe, não foi espectáculo bonito de ver. O sangue escorria de onde apareceu o corpo daquele senhor até a porta aberta. Que coisa terrível! Não pense isso de mim. Eu não sei de nada. Matar alguém, eu? Inspector, tenha pena!
– Mau! É estranho uma coisa destas ter acontecido mesmo ali ao pé de ti, e nós sabemos que santo não és…!, e não teres outra explicação a dar diferente da “eu não sei nada…!”… Tenta arranjar argumentos para convencer-me a ver se o consegues… Um menino da tua qualidade? Na…, e foi-se chegando a ele apesar do pivete inalado do seu corpo. Pegando naquela mão esquerda tão zelosa a segurar fosse o que fosse sob a camisola, foi-a levantando muito devagar, e ao mesmo tempo proferindo… Não me digas que te feriste aí? Deixa cá ver o que tapas com tanto cuidado…
O Inspector M viu o rosto sujo de Apolinário, de dias sem ver lâmina de barbear, a ficar lívido e os olhos a esbugalharem-se ainda mais… Era uma carteira de homem que ele segurava com tanto cuidado, de cabedal preto, com apresentação nada condicente com as condições miseráveis daquele ser humano. Abriu-a e rapidamente verificou tratar-se da do doutor Santiago, objecto em falta no momento do exame ao cadáver. Continha diversos cartões identificativos, bancários e outros documentos, mas notas de Euro nem sinais…
– Ora então não temos nada a ver com isso, sim senhor…! Explica lá, neste caso, como se eu fosse muito burro, porque apareces tu na posse desta carteira, de alguém morto perto de ti há pouco mais de uma hora atrás…? Explica-nos, MAS CONVENIENTEMENTE!!! P’ra já, despeja sem mais todo o conteúdo dos teus bolsos, para cima desta mesa. E apontou.
O atrapalhamento do vagabundo era bem visível… No conjunto de objectos na sua posse incluíam-se um lenço imundo, um maço de tabaco meio amarrotado com três cigarros, um isqueiro tipo Bic de cor vermelha, uma navalha de ponta mola e um conjunto de notas de 10, 20 e 50 perfazendo um total de 150 Euros, inevitavelmente sacados do interior da carteira do falecido.
– Então!..., questionou M. exibindo as notas numa das mãos qual troféu depois de conquistado com toda a vantagem sobre o adversário, com um desses sorrisos que não enganavam ninguém…
– Eu explico Senhor Inspector! Eu explico. Ou melhor, não sei como explicar… Só lhe posso dizer, esta é a verdade, que quando ouvi os gritos da mulher de limpeza abri os olhos e vi em cima da aba do meu casacão esta carteira. Assarapantado com aqueles berros mal tive tempo de a agarrar antes de me levantar e ir ver o que se passava. Refeito algum tempo depois daquilo, isolei-me a um canto e vi o seu conteúdo. O Senhor entenda-me… Não foi por mal mas não consegui resistir à tentação de sacar a massa… O Senhor sabe que não sei ler, como podia adivinhar? Assegurava.
– A que horas te deitaste junto à porta do gabinete do Chefe? Inquiriu o Investigador.
– Devia passar muito depois das três da madrugada quando ali me acostei já bem bebido…, lembre-se que ontem foi a Queima e a cerveja corria à farta, né, respondeu Apolinário.
– E não viste ninguém passar por ti para o WC até ao momento em que a empregada de limpeza gritou…?
– Para lhe ser sincero, não. Não reparei, na minha sonolência, na passagem de alguém para aqueles lados, inclusive da empregada… Tenho ideia de ter ouvido um bater de passos irregulares, do género tap-tloc, tap-tloc para lá e depois para cá, mas nem sei se ouvi mesmo se foi no torpor do sono que teria sonhado com tal som…
– Bem, concluiu M, vais é connosco até à Judiciária pois temos de esclarecer tudo isto melhor… Cheira-me não estares a contar tudo o que sabes desta estória…
A autópsia realizada nessa manhã veio a confirmar a suspeita já detida no exame ao corpo no local onde apareceu. Um objecto corto-perfurante entrara no médio dorsal esquerdo e atingira um dos ventrículos, causando morte imediata à vítima. Parecia ter sido um golpe executado por mão experiente e sabedora. O Inspector M fez questão de analisar o corpo nu do solicitador colocado sobre aquela laje fria, sua conhecida de tantos outros casos de homicídios por si acompanhados e investigados, e junto com o Dr. Evaristo, emérito perito médico-legal e director do sector, observaram não apresentar qualquer outro sinal de ferida ou contusão.
O solicitador, bem conhecido na cidade, tinha escritório na Rua João de Ruão há mais de 30 anos, uma carteira de clientes apreciável e partilhava o seu trabalho com dois colaboradores recém formados. O Inspector M deslocou-se ao escritório e pode dialogar com os dois.
O Dr. Joaquim Gonçalves, jovem dos seus 25 anos, moreno, 1,70m de altura, boa apresentação, nascera em Fornos de Algodres. Filho de uma família de modestos recursos, entre os estudos no secundário ajudava o pai como magarefe no negócio instalado na sua aldeia de Muxagata, tratando, assim, de criar condições para mais tarde abraçar o curso de direito em Coimbra, e neste caso na actividade de solicitador. Encontrava-se à meia dúzia de meses a ajudar o doutor Santiago no seu escritório.
– Pois, Senhor Inspector, soubemos do ocorrido esta manhã ao doutor o que nos deixou, a mim e ao meu colega, como deve imaginar, profundamente consternados e desorientados. Mas antes de continuarmos, posso oferecer-lhe um café…?
M aceitou de bom grado porquanto não tinha tido ainda tempo de retemperar as forças desde que fora chamado a intervir logo muito cedo na manhã. O jovem em passo inseguro e bamboleante dirigiu-se para a máquina do café arrumada em cima de uma mesinha de fórmica, e em pouco tempo retirou duas chávenas de um líquido negro e aromático de que ambos se serviram.
– Estávamos a par, eu e o meu colega, Dr. Robalo Cordeiro, da viagem de hoje do doutor Santiago a Lisboa e qual o seu objectivo, de um enorme interesse para o cliente e bem assim para este escritório, mas agora não vejo como se pode concretizar o negócio com o desaparecimento da pasta onde os papéis seguiam…
– Doutor Gonçalves… Onde passou esta última noite?, aflorou o Inspector M.
– Olhe Inspector… Andei por aí com uma amiga da faculdade. Fomos até ao Queimódromo, no Choupalinho, onde vimos duas bandas a tocar umas rocalhadas. Por cerca das 2h30, fui levar a minha amiga a casa e depois segui, sempre a pé, até ao quarto onde vivo para os lados da Sé Velha. Às 9h30, como é normal, dirigi-me aqui para o escritório quando o “Jorge dos Pensos”, um moço dono de uma banca ambulante instalada à nossa porta de entrada, me transmitiu a notícia… “O Dr. já sabe o que aconteceu? Apareceu morto o doutor Santiago na Estação Nova…!” Perante essa informação imaginei de imediato que vocês, da Judiciária, tivessem metido mãos nesta estaria, por isso liguei de manhã para a Directório tentar falar com alguém sobre o caso, a procurar saber do que se passara, mas não havia ninguém do sector… A telefonista disse-me ter o assunto transitado realmente para os homicídios, daí presumir ter sido o doutor assassinado… Pode o Senhor Inspector pôr-me a par, agora, do que realmente aconteceu…
M transmitiu-lhe sucintamente o ocorrido e de seguida falou com o Dr. Robalo Cordeiro, o outro estagiário, que, por afazeres pessoais só pudera chegar ao escritório a essa hora, seriam 15h15. Tratava-se de indivíduo de forte compleição, natural do Sabugal, raiano, portanto, 1,80m, 26 anos, cabelo alourado, praticante de artes marciais e pessoa com expressão decidida e firme. Com alguma agressividade na sua voz e postura enfrentou a pergunta do investigador com duas “pedras na mão”…
– Que quer o Senhor saber de mim…? (respondeu). Eu não sei nada do doutor Santiago para além do que o meu colega já lhe deve ter dito… vociferou. Deitei-me tarde por causa da Queima, fui tratar de uns assuntos nas Finanças e ali ouvi comentar sobre o aparecimento do cadáver do nosso patrono, o doutor Santiago… Mais não lhe posso dizer… – concluiu agastado.
– Calma Dr., calma!, dizia o Inspector naquele seu tom entre o paciente e o inflexível. Quero que entenda o nosso trabalho. Perante um caso destes todos temos de compreender, seja eu ou outro colega a encetar as investigações, ter a Judiciária de fazer perguntas, recolher informações, inquietar espíritos… Isso é da norma ou o Dr. não sabe disso?
Bom… Deixemos os investigadores seguirem o seu trabalho com o sigilo que ele merece na certeza de estar o assunto entregue a profissionais competentes e tracemos nós mesmos algumas ilações sobre o que acabámos de ver exposto.
SOLUÇÃO de Inspector BoavidaA Rainha está triste. O seu povo e a sua cidade estão irreconhecíveis. Homens e mulheres dormem pelos cantos das ruas, caídos de bêbedos, por entre garrafas de cerveja vazias e os mais diversos dejectos. Ano após ano é sempre assim na Queima das Fitas. Coimbra transfigura-se. A cidade dos estudantes, dos doutores e do conhecimento passa a ser poiso de jovens alcoolizados e de adolescentes vencidos por outros comportamentos de risco. O dia nasceu há algum tempo e no largo da Estação Nova são poucos os sinais de vida. Dois táxis aguardam passageiros madrugadores, dois jovens de capa e batina parecem recuperar dos excessos de uma noite de farra e o solicitador Santiago prepara-se para apanhar o comboio.
Lisboa é o seu destino. Comprou bilhete para o rápido que parte dentro de pouco tempo da Estação Velha. Leva consigo uma pasta com documentação preciosa. Vai registar a compra de um edifício dos CTT na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Há no ar uma estranha sensação de “déjà-vu”. Se ele não estivesse bem acordado e Maio não fosse o mês da Queima, pensaria que retrocedera no tempo até Março de 2003, altura em que um edifício dos CTT de Coimbra rendeu alguns milhões num negócio relâmpago. A especulação imobiliária é uma maldita realidade de sempre, pensou ele. Olhou em seu redor. O comboio que faz a ligação entre as duas Estações ainda não está na gare. Há tempo que chegue para um chichi.
O solicitador entrou na casa de banho da Estação, mas… não saiu de lá com vida. Uma mão certeira espetou-lhe um objecto corto perfurante pelas costas. A lâmina entrou pelo médio dorsal esquerdo, atingindo um dos ventrículos. Foi morte mediata. Numa fracção de segundos, enrolou-se sobre si próprio e caiu de borco. O matador tirou-lhe a vida, a carteira e a pasta que continha os documentos do edifício dos CTT. Apesar de ter levado a pasta presa ao pulso, através de uma corrente, a vítima não apresenta nenhum ferimento ou contusão, para além da ferida provocada pelo golpe mortal. Logo, a corrente não foi arrancada! E o móbil do crime não foi o roubo de dinheiro. A carteira da vítima tinha 150 euros e foi despachada para o colo de um sem-abrigo.
O assassino queria apenas a pasta, ou melhor, os documentos que ela continha. Terá mexido na carteira do solicitador para retirar a chave da “pulseira” que lhe acorrentava a pasta ao pulso. Ele sabia onde estava a chave. Depois, abandonou a Estação, com a mesma decisão com que havia feito o seu trabalho de carniceiro. O criminoso passou junto ao andrajoso que dormia encostado à ombreira da porta do gabinete do Chefe da Estação. O mendigo ouviu, ou sonhou que ouviu, os passos de alguém que passou em direcção da casa de banho e depois caminhou no sentido inverso. Estava a dormir profundamente. Não pode jurar que ouviu. Só se lembra com precisão do que se passou após de ter sido acordado pelos gritos da empregada de limpeza.
O vagabundo disse que, quando acordou sobressalto com a gritaria da serviçal, deu conta de que tinha uma carteira alheia sobre a aba do seu casaco. Escondeu a carteira sob a camisola e só depois correu para a casa de banho, onde jazia o solicitador. Ao ser descoberto com a carteira, o mendigo Apolinário, personagem bem conhecido da polícia, tentou amaciar a razão de ter em seu poder um objecto que não lhe pertencia. Quando lhe fizeram perceber que a carteira era do morto, o vagabundo disse que desconhecia esse facto porque não sabia ler. Como se as fotografias precisassem de legendas!... Ele não teve foi tempo para olhar bem para a carteira. Preocupou-se apenas em ver se tinha dinheiro e a arrecadar o pecúlio no bolso.
O homem da bilheteira afirmou que a vítima havia comprado bilhete às 06h50. Não disse, mas pensou, que cinco minutos antes (às 06h45) tinha partido um rápido para Lisboa. E não percebia a razão do solicitador não ter apanhado esse comboio, uma vez que ele queria ir no “trem” mais rápido da manhã. É certo que ia para Santa Apolónia e aquele comboio não termina lá a sua marcha; faz paragem no Oriente e em Entrecampos e depois atravessa a Ponte 25 de Abril em direcção a Faro, mas… o metro leva-o a quase toda a Lisboa! E por que raio teria chegado tão cedo para a Estação, se o próximo comboio para Lisboa só partia da Estação Velha às 07h45? Será que ele não conhecia o horário dos rápidos da Linha do Norte no mês de Maio?...
O inspector Artur M, responsável pela investigação do crime, também fez o mesmo raciocínio e acrescentou: um homem que viaja em primeira classe no alfa (não há intercidades antes das 08h00!...) tem com certeza condições económicas para apanhar o táxi para a Estação Velha, não se sujeitando a andar pelas ruas com documentação tão importante. Ao dizer isto, o M recordou que, a partir de 1999, com o advento dos pendulares, deixou de haver primeira e segunda classe nos alfas; aquelas classes passaram a designar-se de Conforto e Turística. Mas a verdade é que ainda hoje muitos passageiros utilizam a formulação de antigamente: nunca pedem bilhetes para a classe Conforto ou Turística – é sempre primeira ou segunda classe!
Mas onde está o Chefe da Estação?, quis saber o M. Ao que parece, ele esteve a dormir até a partida do comboio urbano para a Praia da Claridade, que fazia escala na Pampilhosa antes de rumar à Figueira da Foz, deu depois luz verde à composição que assegura a ligação com a Estação Velha para o alfa das 07h45 e para o inter das 08h00, e tornou a deitar-se. Foi por isso que a polícia não o ouviu? Não se deve acordar quem tem sono, terá pensado o M, que é muito respeitador do bem-estar das pessoas!?... Ou será que o Chefe ainda estava com os vapores do álcool bebido na noite anterior e não dizia coisa com coisa? O M não terá achado importante ouvi-lo, talvez porque não recaía sobre o homem quaisquer suspeitas de envolvimento no crime.
Na Estação não havia mais nada a fazer e o inspector M tinha muita urgência em deslocar-se ao escritório do solicitador. Quando lá chegou só estava presente um dos dois estagiários, o jovem Joaquim Gonçalves, que trabalhava com a vítima apenas há cerca de seis meses. Ele era descendente de famílias modestas e, antes de ir para Coimbra tirar o curso de Direito, ajudava o pai como magarefe em negócio de família. O rapaz parecia cansado, facto que poderia ser explicado por se ter deitado tarde, já depois das duas e meia da manhã. Ao que disse o próprio, ele terá andado a “curtir” a Queima até àquela hora com uma amiga, tendo-a depois levado a casa, seguindo de imediato para o quarto onde vive, para os lados da Sé Velha.
O cansaço do estagiário Joaquim parecia reflectir-se na forma como caminhava, inseguro e bamboleante. Aquele aparente cansaço não era normal num jovem de 23 anos que apenas se teria deitado um pouco mais tarde do que o habitual. Para o inspector, tudo parecia indicar que o ex-magarefe tinha perdido a noite. Ou será que o andar inseguro e bamboleante do Joaquim era natural? Olhando bem, percebia-se que o rapaz tinha uma particularidade no andar. Ele movia-se com passos irregulares, provocando um barulho do género “tap-tloc, tap-tloc”, tal e qual como o mendigo Apolinário disse ter ouvido quando “dormia” na Estação, antes da empregada de limpeza ter descoberto o corpo do solicitador.
Enquanto o inspector matutava na “deficiência” física do rapaz, este procurava ser um anfitrião simpático e prestável, tendo-se prontificado a preparar uma chávena de café para a visita. O M agradeceu, porque não é mal-educado e um cafezinho quentinho vinha mesmo a calhar. Depois de ambos se servirem de uma chávena de café, o inspector M e o estagiário do solicitador começaram a conversar calmamente. Foi então que o Joaquim demonstrou ter conhecimento de factos que não podia conhecer. Ele disse, por exemplo, que o homicídio do patrono impedia agora que o negócio do edifício dos CTT se concretizasse, devido ao desaparecimento da pasta com os documentos. Não havia dúvida: o Joaquim sabia demais!
De facto, o Joaquim não podia saber do desaparecimento da pasta e dos documentos que o seu patrono levava. Segundo as suas próprias afirmações, quem o informou da morte do solicitador foi o dono da banca ambulante instalada à porta do escritório, notícia que lhe viria a ser depois confirmada por uma telefonista da Judiciária, quando esta lhe disse que o assunto da morte do doutor Santiago tinha transitado “realmente para os homicídios”. Este “realmente” indicia que o Joaquim perguntou à telefonista se o Santiago tinha sido assassinado. Mas o que o levou a pensar que se estava perante um caso de homicídio? O vendedor ambulante não lhe falou de assassinato. Por outro lado, ninguém lhe falou do roubo da pasta e dos documentos!
Como é que ele sabia destes pormenores? A esta pergunta, o inspector M respondeu com uma evidência: foi o Joaquim que matou o solicitador! Esta afirmação é sustentada por diversos factos, entre os quais se sublinham os seguintes: ele sabia da viagem do doutor Santiago a Lisboa, sabia da hora em que partia e onde apanhava o comboio; tinha conhecimento da importância dos documentos que transportava na pasta; sabia onde o solicitador levava a chave (na carteira?) da corrente que prendia a pasta ao pulso; estava ligado a um sector actividade onde se movimentam outros eventuais interessados no negócio que o patrão se preparava para concretizar; e tinha experiência de magarefe, o que explica o golpe certeiro e a morte imediata do doutor Santiago!
Mas será que o Joaquim fez tudo sozinho? O inspector M tinha o “feeling” de que o ex-magarefe não esteve sozinho na preparação e execução do crime. Algo lhe dizia que ele era um dos dois “paisanos” que dormiam (fingiam dormir…) junto à escadaria da Estação Nova quando o solicitador chegou no início daquela manhã ao Largo da Estação. Estavam encobertos com capa e batina (Joaquim acabara o Curso de Direito há pouco tempo…), para que Santiago os não reconhece. Esperaram que o solicitador entrasse na Estação e Joaquim (habituado a matar animais – a anatomia do porco é em tudo igual à dos seres humanos!) dirigiu-se à Gare, levando na peugada o seu cúmplice, que estava preparado para intervir caso acontece algum imprevisto.
Mas quem seria o cúmplice de Joaquim? O inspector teve resposta a esta pergunta quando viu entrar no escritório outro dos estagiários do solicitador. Também era jovem, mas mais alto e corpulento, com corpo de atleta (ou de segurança…). Chama-se Robalo Cordeiro e apresentou-se com agressividade e mau humor, tratando o inspector com duas pedras na mão. À primeira pergunta do M respondeu que nada sabia sobre o seu patrono, para além do que o colega já lhe devia ter contado. A pergunta terá sido a mesma que M havia feito ao Joaquim (onde passou esta última noite?), pelo que a resposta não deixou de ser surpreendente. Por fim, embora agastado, o Cordeiro lá acabou por dizer que se deitou tarde por causa da Queima.
Quanto à hora tardia de chegar ao escritório, justificou que estivera durante toda a manhã nas Finanças, onde ficou a saber da morte do doutor Santiago. Quanto ao que ele fizera naquela manhã, o M podia admitir que estivera nas Finanças (um excelente local para fazer troca de documentos importantes…). Mas quanto à madrugada anterior, o inspector está desconfiado de que o Cordeiro andou a vestir pele de Lobo junto à Estação Nova. Ele também tinha conhecimento do negócio que o solicitador se preparava para fazer em Lisboa e provavelmente teria sido igualmente aliciado por um qualquer concorrente do cliente do seu patrono a roubar os documentos que ele levava para a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários.
O inspector M despediu-se dos dois estagiários com um sorriso malandreco e foi até Judiciária. Pelo caminho interrogava-se da razão que levou o assassino do solicitador a deitar a carteira da vítima para cima do mendigo. E só encontrou uma explicação: o meliante queria inculpá-lo. M sabe que o Apolinário não é boa peça, mas neste caso da morte do Santiago ele não teve qualquer intervenção directa. Foi apenas receptador involuntário de 150 euros, que lhe davam muito jeito, e de uma carteira comprometedora. Dito isto, o inspector sentou-se em frente ao computador e começou a escrever o seu relatório. Fazia questão de entregar aquele documento ao Ministério Público até ao fim da tarde. O lugar do Joaquim era na cadeia!
Depois de concluído o relatório, o inspector respirou de alívio, com a sensação do dever cumprido. Quando saiu para a rua já o sol se havia posto no horizonte. Coimbra continuava suja. Profundas olheiras marcavam os olhos dos rostos amarelecidos dos jovens que passavam por ele. Aqui e ali comentavam-se os excessos da Queima e… a morte do solicitador. No alto da colina, de onde abençoa toda a cidade e a sua gente, a Rainha continuava triste. Quando o Inspector M passou junto à Estação Nova sentiu o peso da morte que ensombrou a vida dos lá trabalham. Pairava no ar o espírito do doutor Santiago. Parou, olhou para em redor e pensou: a miséria humana não pára de me magoar. E caiu então uma lágrima no rosto da Rainha…
MUNDO DOS PASSATEMPOS – JORNAL ALMEIRINENSE
TORNEIO JARTUR MAMEDE
PROVA Nº. 3
A MORTE DA MICAS PEIXEIRA, de Inspector BoavidaO subchefe Pinguinhas estava mais mal-humorado do que nunca. Aquilo podia ser um mau prenúncio, dizia-se na esquadra. “O que estará por acontecer? Sempre que ele está de trombas, é certo e sabido que temos tempestade ou desgraça pela costa.” As razões do seu mau humor não tinham nada a ver com o tempo, apesar do Instituto Nacional de Meteorologia ter anunciado chuva e ventos fortes para quase todo o país. O estado de espírito triste e sombrio que exibia estava relacionado com o seu sportinguismo assanhado. O clube do seu coração recebia naquela noite os escoceses do Glasgow Rangers e ele não podia ir ver o duelo ao vivo.
Passava pouco das cinco da tarde e o Pinguinhas não parava de resmungar com a escala de serviços, que o obrigava a permanecer na esquadra. Ainda tentara mudar de turno, mas nenhum graduado teve a gentileza de aceitar a troca. À noite jogava o seu Sporting e ele ali enfiado, quase a espumar de raiva. Noutros tempos, não pensaria duas vezes. Mal a hora do jogo estivesse a chegar, abandonaria o posto. Mas agora era muito arriscado. Há três anos que a esquadra não tem porta e algo lhe dizia que, mais cedo ou mais tarde, a malta dos jornais viria a descobrir o caso, o que daria bronca da grossa pela certa. Não, ele não podia sair dali… a não ser em serviço na zona.
O serviço chegou-lhe pelo guarda Lopes: mais um telefonema de casa da Micas peixeira e do Tóino pintor! Há umas semanas que era raro o dia em que o Tóino não malhava na mulher. O homem metera na cabeça que ela andava enrolada com um vizinho e por via disso chegava-lhe a roupa ao pêlo. Eles moravam ali perto, nas Portas de Santo Antão, num dos poucos edifícios que ainda resistem à especulação imobiliária. O Pinguinhas resolveu ir ele mesmo até lá. Quando chegou à porta da rua, deu de caras com a cigana Etelvina, uma velha mais surda do que um penedo, que assim que o viu desatou aos gritos: “Ai, santo Deus, que o malandro do Tóino matou a Micas!”
O Pinguinhas galgou os degraus até ao primeiro esquerdo e encontrou a porta aberta. O Tóino pintor agarrou-se a ele, deixando-lhe na farda as mesmas marcas de tinta que se viam claramente na blusa da mulher, caída entre a cama e o roupeiro: “Não fui eu, não fui eu! Juro que não fui eu!” A Micas jazia, morta. Tinha sido agredida com violência e estrangulada. Os sinais não deixavam dúvidas. O Tóino insistia, nervoso: “Desta vez nem lhe bati! Passámos até uma noite agradável. Fizemos as pazes e foi como se tivemos vivido uma espécie de segunda noite de núpcias.” Havia laivos de sinceridade nos olhos do Tóino e… arranhões recentes no seu pescoço.
O Tóino fez saber que se levantou às oito e que a mulher ficou na cama, a descansar. Ele tinha um trabalho no Príncipe Real e ela faltou à venda. À uma da tarde, largou o rolo e a trincha, para que os donos da casa onde fazia o biscate almoçassem. Comprou duas sandes e uma cerveja e sentou-se num banco do jardim. Não havia ninguém por lá. Duas horas depois, voltou às pinturas. Passava das cinco quando regressou a casa. Tocou à campainha e a Micas não respondeu. Pegou na chave, abriu a porta, chamou por ela e… nada. Foi até ao quarto e viu a mulher caída no chão. Debruçou-se sobre ela, abanou-a, mas nada havia a fazer. A Micas já estava morta.
O Pinguinhas não hesitou nem mais um instante. Pegou no telemóvel e ligou para a Judiciária. Entretanto, entrou pela casa adentro o vizinho do primeiro direito, o advogado Camurça, que começou por se atirar ferozmente ao Tóino: “Então, seu monstro, está contente, está?!” Para amansar a fera, o subchefe quis saber por onde andou o doutorzeco durante o dia. O advogado disse ter estado num julgamento, no Tribunal da Boa Hora, que acabou por volta da uma. Foi até ao escritório, onde almoçou, sozinho, um iogurte e duas maçãs. Tinha um corte na parte superior do dedo polegar da mão direita, provocado, segundo ele, por uma faca quando descascava uma maçã.
O advogado foi dizendo que tinha saído do escritório por volta das duas horas, antes dos seus colegas e sócios voltarem do almoço, para casa de um cliente conhecido, onde estivera até perto das cinco da tarde. Mas o Pinguinhas já mal o ouvia, obcecado que estava com a ferida que ornamentava o dedo polegar do Camurça. Um e outro foram subitamente interrompidos pela chegada intempestiva do piloto aviador Murtosa, que morava no segundo esquerdo. Ele vinha muito afogueado e queria saber à viva força o que se tinha passado. Mas o subchefe Pinguinhas não lhe deu muita saída: estava mais interessado em fazer perguntas do que em dar respostas!
O Murtosa lá foi dizendo que tinha aproveitado o seu dia de folga para tratar de uns assuntos burocráticos relacionados com um terreno que havia comprado na Serra da Lousã. Saíra de casa cedo, tendo atestado o carro na Rotunda do Relógio, ali ao pé do Aeroporto (retirou da carteira o recibo da gasolina para confirmar a hora: nove em ponto). Seguiu depois para a Pampilhosa. Esperou que os serviços da Câmara reabrissem, tratou do que tinha a tratar, deu um salto até à sua propriedade e regressou depois a Lisboa. Servindo-se de um outro recibo, confirmou que tinha voltado a meter combustível no Pombal, às 16h30. Chegara agora a casa. Eram sete da tarde.
Questionados sobre se tinham ouvido algo de anormal durante a noite e a manhã, antes de saírem de casa, Murtosa e Camurça referiram ambos o barulho feito pelo casal naquela madrugada. “Eram sete e meia e eu ainda não conseguia dormir” – disse o Murtosa. “Não eram barulhos de discussão, não. Ou a Micas era masoquista ou o Tóino é sádico. Então, depois de uma noite de amor, ele dá-lhe uma tareia que a mata?!” – acrescentou o Camurça. Foi nessa altura que chegou a Judiciária. O piquete era chefiado pelo carismático Marcos Dias, que vinha acompanhado pelo seu amigo Jartur e mais dois elementos. Pinguinhas contou o que sabia e regressou à esquadra.
A Etelvina ainda se encontrava à porta da rua a contar a desgraça da Micas à gente conhecida. O Pinguinhas questionou-a sobre se tinha ouvido algo de estranho em casa da peixeira, ao que ela respondeu que não. Perguntou-lhe pelo neto, o Chico da Coca. “Ainda está a dormir, o malandro. Chegou por volta da uma e meia da tarde, a tremer muito e de olhos esgazeados. Deitou-se e ainda há pouco ressonava que nem um porco. Pouca sorte a minha, sôr subchefe.” Antes de abandonar aquele prédio de dois andares, o Pinguinhas ainda perguntou se já morava alguém no rés-do-chão. “Não, continua desabitado desde que o Costa bateu a bota, já lá vão mais de três meses.”
Pouco passava das nove da noite quando o telefone voltou a tocar na esquadra. O guarda Lopes passou a chamada ao subchefe. Era o seu amigo Jartur: “A mulher foi estrangulada entre as 13h10 e as 13h40 e o criminoso já confessou o crime.” O Pinguinhas mal agradeceu a gentileza do telefonema e continuou vidrado no televisor que tinha em cima da secretária. O seu Sporting perdia por um a zero, mas ele ainda tinha fé… Quando o jogo acabou, estava duplamente chateado: os Leões tinham ido à vida e ele ficara sem saber quem tinha assassinado a Micas e porquê! “Não vou agora chatear o Jartur. Talvez o pessoal que lê o Almeirinense consiga ajudar-me” – pensou.
SOLUÇÃO de Inspector BoavidaO veterano detective Marcos Dias estava de serviço quando o subchefe Pinguinhas alertou a Polícia Judiciária para um caso de violência física que resultou na morte de uma jovem mulher que vivia na baixa de Lisboa, na Rua das Portas de Santo Antão. O seu velho amigo Jartur encontrava-se na capital a tratar de assuntos relacionados com a recolha de material para o Arquivo Nacional de Problemística Policiária, o seu projecto mais querido, e foi convidado a integrar a equipa de investigação. Os dois amigos chegaram ao local da ocorrência por volta das sete da noite. O subchefe da Esquadra da PSP do Rossio aguardava-os impacientemente. Ele não queria perder o jogo de futebol do seu Sporting com o Glasgow Rangers, que a TVI transmitiria essa noite em directo do novo Estádio José Alvalade!
Apesar da pressa, o subchefe Pinguinhas concedeu o tempo necessário à passagem de todos os indícios recolhidos e de todas as informações prestadas pelos moradores do prédio antes da chegada da equipa da Judiciária. Perante estes dados, o veterano investigador colocou logo as suas privilegiadas meninges a trabalhar mesmo antes de ouvir o marido e os vizinhos da vítima. Enquanto organizava o seu raciocínio, acompanhou Pinguinhas até à porta do prédio, onde teve oportunidade saber que o rés-do-chão estava devoluto e de ouvir as explicações da velha cigana Etelvina relativamente ao comportamento do seu neto. Depois, voltou a subir as escadas, muito lentamente, ao mesmo tempo que procurava juntar todas as peças daquele caso a que foi dado o nome de “A Morte da Micas Peixeira”.
Sobre a tinta encontrada na blusa da Micas Peixeira, exactamente igual à que o Tóino Pintor havia deixado na farda do subchefe Pinguinhas ao abraçá-lo, o detective Marcos Dias admitiu logo que o facto podia ser explicado pela eventualidade do marido da Micas se ter debruçado sobre ela quando a encontrou caída no chão, uma reacção perfeitamente normal numa situação daquelas. Na verdade, a primeira reacção do Tóino Pintor poderá ter sido a de prestar socorro à mulher, na esperança de que ela ainda estivesse viva. Com o desespero, o Tóino terá agarrado e abanado a mulher para a trazer de volta à vida. E quanto aos arranhões no pescoço do Tóino, convém recordar o rebuliço havido durante a noite e a madrugada. É que há mulheres que, em certas ocasiões, são umas verdadeiras gatas…
No que respeita à ferida existente na parte superior do polegar da mão direita do advogado Camurça, o veterano detective também tinha uma explicação que lhe parecia bastante plausível: bastava simplesmente que o causídico fosse canhoto ou ambidextro para que pudesse ter provocado acidentalmente um ferimento na mão direita ao descascar uma maçã, durante o seu almoço frugal no escritório onde exerce a sua actividade profissional. Entretanto, Marcos Dias tinha como propósito, na sua lista de prioridades, prestar a máxima atenção aos gestos de Camurça para apurar se ele era esquerdino e, mais tarde, procuraria comprovar se era verdade o que tinha dito, relativamente ao que fez durante todo o dia, nomeadamente se tinha almoçado sozinho no escritório. O que era perfeitamente natural.
O olhar esgazeado e as tremuras do neto da cigana Etelvina podiam ser explicados, na óptica de Marcos, pela dependência de drogas, situação que provoca normalmente aqueles sintomas em episódios de ressaca ou de abstinência. O velho detective conhecia muito bem os sinais da toxicodependência em períodos de carência, uma vez que já lhe tinham passado pelas mãos diversos processos que envolviam pessoas que sofriam na pele os efeitos daquele flagelo. Quanto à avó do Chico da Coca, não parecia haver nada que fizesse recair suspeitas sobre ela. E quanto ao facto de não ter ouvido nada durante a noite, a explicação estaria na sua surdez. A esta razão acresce o facto da velha viver no piso superior ao da vítima, mas do lado oposto, o que tornaria mais difícil a audição de sons emitidos pela Micas e pelo Tóino.
Os pensamentos de Marcos Dias foram entretanto interrompidos pelo colega médico legista, quando este lhe trouxe os primeiros resultados dos exames feitos à vítima. Ele havia apurado que a Micas Peixeira morrera por estrangulamento entre as 13h10 e as 13h40, espaço temporal em que o Toino Pintor, o advogado Camurça e a velha Etelvina não têm como provar onde estavam. Ao contrário de todos estes moradores do prédio, o piloto Murtosa parecia ter um álibi forte e consistente. Ele mostrou talões de compra de combustível em Lisboa e no Pombal, para atestar a sua ausência da capital entre as 09h00 e as 19h00, embora não tenha exibido documentos de portagens. Talvez tivesse Via Verde, quem sabe?... – pensou o detective Marcos Dias, que não se preocupou minimamente em colocar esta questão ao piloto.
Murtosa justificou aquela sua viagem com a necessidade de tratar de assuntos na Câmara da Pampilhosa. Ao que disse, ele terá sido atendido na autarquia ao início da tarde, tendo passado depois pelo terreno que possui na Serra. Assim sendo, mesmo admitindo que o Murtosa tivesse sido logo atendido na abertura da Câmara, ou seja às 14h30, não gastaria menos de vinte a trinta minutos no guiché, pelo que teria saído dos serviços municipais por volta das 15h00. Se acrescentarmos que ele teria gasto mais quinze minutos no percurso entre a Câmara e o seu terreno serrano, e outros tantos minutos nesse local, seriam mais ou menos 15h30 quando se pôs a caminho da capital. Considerando as estradas sinuosas da serra da Lousã, era pouco credível que ele tivesse abastecido o carro no Pombal às… 16h30.
Bom, ele voava… mas nos aviões. Nos carros a coisa fia mais fino! O concelho de Pampilhosa da Serra apresenta algumas fragilidades no que toca a ligações viárias externas. Em consequência do relevo acidentado, a rede viária caracteriza-se pela existência de grande número de estradas com traçado irregular. Para além da Estrada Nacional 112, o concelho conta com uma rede de Estradas Municipais que estabelecem a ligação entre as suas principais localidades e o exterior. Assim, e considerando uma velocidade média de 120 kms/hora em auto-estrada ou estradas nacionais e 65 kms/hora noutras estradas, estima-se que distância a percorrer a entre Pampilhosa da Serra e Coimbra (78,5 kms) tenha uma duração aproximada de 1h16m. E ainda faltava percorrer a distância que medeia entre Coimbra e Pombal...
Mas não se ficou por aqui o raciocínio do investigador Marco Dias, que comentou em voz alta com Jartur, seu inseparável companheiro das lides policiaristas: Mesmo admitindo que o piloto Murtosa conseguisse fazer a viagem entre o concelho da Pampilhosa da Serra e a localidade de Pombal em cerca de uma hora, não se percebe porque é que o Murtosa teria necessidade de abastecer novamente o seu carro de combustível numa bomba de serviço em Pombal, uma vez que ele tinha atestado a viatura na cidade de Lisboa antes de demandar a terras da Beira-Baixa. Mesmo que o “bólide” fosse de grande cilindrada, cobriria com toda a naturalidade a distância de aproximadamente de 482 kms, que separa Lisboa de Pampilhosa da Serra (ida-e-volta) sem precisar de um segundo abastecimento de combustível.
A estas incongruências, o Marcos Dias e o Jartur acrescentariam ainda uma (outra) grande mentira do piloto. O Murtosa não poderia ter acedido aos serviços municipais de Pampilhosa da Serra nesse dia, uma vez que era feriado naquele concelho. O Dia do Município de Pampilhosa da Serra assinala-se a 10 de Abril, efeméride que, neste ano de 2008, ocorreu no dia em que o Sporting Clube de Portugal discutia a passagem às meias-finais da Taça UEFA, em partida a disputar no Estádio José Alvalade, com os escoceses do Glasgow Rangers. Foi este o jogo que o subchefe Pinguinhas não pôde ver nessa noite ao vivo no estranho complexo desportivo engendrado pelo popular arquitecto Taveira, conhecido sobretudo por ter empurrado umas meninas pelas traseiras (….), o que deu escândalo na imprensa dita cor-de-rosa.
(abre-se aqui um parêntesis para dizer o seguinte: Os menos identificados com o chamado desporto-rei poderão questionar se aquelas duas equipas não se teriam confrontado noutra qualquer data, no Estádio dos leões. É verdade que sim. Aconteceu na temporada 1971-1972, com a vitória do Sporting Clube de Portugal por 4-3, em partida a contar para a extinta Taça das Taças. E o jogo não foi disputado num dia 10 de Abril. Porém… nessa altura, no ano de 1972, a esquadra do Rossio, ainda tinha porta!!!... Recorde-se que no enunciado do Problema dizia-se que, no dia em que a Micas foi estrangulada, a esquadra de D. Maria (Rossio), posto da PSP que abrange a zona da rua das Portas de Santo Antão, não tinha porta há três anos. Tal facto viria a ser descoberto e relatado pela comunicação social em Maio de 2008).
Foi o Murtosa quem assassinou a Micas. Ele não conseguiu dormir durante a noite, não devido aos barulhos, mas por ciúmes. Há uns tempos que o Tóino suspeitava que a Micas se deitava com um dos vizinhos e por isso lhe batia. As desconfianças do pintor eram fundadas. O vizinho com quem a Micas a atraiçoava era o Murtosa. O piloto terá saído de casa antes da maratona amorosa dos vizinhos terminar e não soube que a peixeira tinha feito gazeta à venda. Atestou o carro no posto habitual, junto ao aeroporto, e deambulou pela cidade até à hora em que a Micas costumava regressar do mercado. Bateu-lhe à porta e, em vez de a encher de carícias e beijos, deu-lhe uma sova que a matou. Normalmente os casos de violência doméstica têm por protagonistas marido e mulher, mas neste caso os “artistas” foram a mulher e… o amante!
De nada valeram os eventuais gritos da Micas peixeira. No prédio só estava a vizinha do segundo direito, a avó do Chico, e esta é surda que nem uma porta. Depois de consumado o assassinato, Murtosa desceu escada abaixo e meteu-se à estrada para encenar a história esfarrapada que contou ao Pinguinhas. O piloto poderá ter enganado o subchefe, mas não escapou à argúcia do detective Marcos Dias e do seu amigo Jartur. Só com o que ouviram do Pinguinhas e da cigana Etelvina, e antes mesmo de interrogarem os moradores do prédio, já eles tinham chegado à conclusão que fora o piloto Murtosa quem assassinara a mulher do Tóino pintor. Não eram ainda nove horas, quando Jartur ligou para a Esquadra do Rossio a dar conta do resultado da investigação ao amigo Pinguinhas. Mas o subchefe só estava interessado no seu Sporting!...