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O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 20 de novembro de 2017
UMA PASSAGEM SECRETA NA CAPELA DO SENHOR DA PEDRA
Prosseguimos nesta edição a publicação do texto vencedor do Concurso de Contos “Um Caso Policial em Gaia”. Nas duas primeiras partes já publicadas, ficámos a saber que o Inspetor Carreira anda atrás de uma pista que o conduziu até Gaia, no encalce de alguns indivíduos que suspeitava estarem envolvidos numa história que metia contrabando de vinhos, moeda falsa, ouro e tráfico de influências. Esta sua investigação levou-o até à Capela do Senhor da Pedra, por onde um suspeito se infiltrou e desapareceu misteriosamente. Após algumas tentativas frustradas, Carreira conseguiu mover uma laje que deixou a descoberto uma escadaria que se perdia na escuridão, por onde o sujeito se esgueirou. E, depois de algumas hesitações, lá foi ele também.
Sol de Inverno, de Luís Pessoa
III - Parte
Obviamente continuou a descida, até porque com o calor da noite, certamente já não haveria vendedores. Descobriu uma pequena manivela que acionou, fechando a passagem atrás de si.
Com a ténue luz do telemóvel arcaico, foi descendo a escadaria, até um patamar, semelhante a um cais, em frente ao qual se viam carris, que se perdiam no escuro. Sem hesitações, desceu o pequeno degrau, colocando-se entre os carris e começou a sua viagem, como se fosse um comboio em busca do destino.
Durante algum tempo, o caminho foi simples, não havia obstáculos e os metros vencidos com facilidade, mas repentinamente os carris terminavam, abrindo-se um buraco a que não conseguia tirar as medidas, nem no cumprimento nem na fundura. Olhou em volta e notou que do lado direito existia uma plataforma que permitia continuar, pelo menos até onde a vista alcançava, paralelamente aos carris, se estes lá estivessem. Foi continuando.
Periodicamente ia ligando a luz do telemóvel para se certificar da sua localização, mas numa das curtas exposições à luz, verificou com surpresa que já não havia precipício à sua esquerda, mas apenas uma parede, semelhante à existente à sua direita. Estava, literalmente, a seguir num estreito túnel, sem outra alternativa que não fosse prosseguir ou regressar pelo mesmo caminho percorrido.
Parou um pouco, para ganhar fôlego e para alinhar as ideias… Era óbvio que tinha de continuar, pelo menos até ver onde ia chegar.
Um cheiro fétido acudiu-lhe às narinas. Fazia frio ali em baixo e havia humidade, que lhe tolhia os movimentos. Começava a estar terrivelmente cansado quando chegou a um impasse, em forma de uma parede que impedia qualquer avanço. À esquerda, parede rugosa, tal como à direita e, agora, também em frente… Parecia restar o recuo.
A luz esbatida do telemóvel não lhe dava qualquer outra saída. Com a mão, percorreu toda a parede à sua frente, procurando alguma coisa que lhe permitisse prosseguir. Em vão.
Empurrou com os joelhos, depois com ambas as mãos, finalmente com o corpo todo. Prestes a desistir, uma pedra mais pequena que as restantes, chamou-lhe a atenção. Pressionou-a, lenta mas seguramente, sentindo que ela cedia, ao mesmo tempo que toda a parede se movia! Instintivamente levou a mão ao bolso, de onde retirou a pistola, ao mesmo tempo que avançava para uma cavidade maior, de onde vinha um estranho ruído, semelhante a um corpo volumoso em movimento. Tremeu, não sabia se de frio ou de medo, mas, sem alternativa, prosseguiu.
O cheiro fétido acentuava-se e caminhava às escuras, poupando a pouca carga de telemóvel que lhe restava, arrastando os pés para não cair em alguma armadilha. Reparou que a parede à sua esquerda desapareceu, dando lugar a um precipício, do fundo do qual parecia emanar o barulho que ouvia e o cheiro fétido. Tentou apontar para lá o foco de luz, mas sem qualquer sucesso. Era demasiado profundo. Continuou, até chegar a um ponto sem saída, com o estreitamento da plataforma em que se vinha movendo. Restavam duas alternativas: regressar pelo mesmo caminho ou descer o precipício. Procurou uma escadaria, uma rampa, alguma forma de poder descer, mas em vão. Não havia pedras soltas que pudesse atirar para medir a profundidade, a luz do telemóvel não atingia o fundo e estava receoso de se atirar sem saber para onde. Decidiu atirar a carteira depois de retirar todos os documentos, mas quando levou a mão ao bolso, sentiu o frio da caneta que Vera lhe tinha oferecido num dos seus aniversários.
-
Parabéns, meu amor, isto é para te lembrares de mim sempre que escreveres coisas boas…
Fechou os olhos, como se fizesse alguma diferença fazê-lo naquela escuridão, ou simplesmente para aguçar a concentração naquele momento mágico de recordação. Não atirou a carteira e a caneta guardou-a junto ao coração, que batia desordenadamente.
Suspendeu-se na beira do buraco, contou mentalmente até três e soltou-se, precipitando-se em curta queda.
- Afinal não era assim tão alto! – rejubilou – Carreira, desta safaste-te, rapaz!
Aguardou um bom par de minutos, recuperando do esforço e da tensão do momento, após o que começou a inteirar-se da sua situação. Afinal, o cheiro fétido vinha de um regato de detritos de esgoto que corria ali mesmo, junto a si. Sentiu pequenas bicadas nas pernas e não deixou de dar um grito quando dirigiu o ténue foco de luz para um aguerrido grupo de ratazanas de esgoto, que o cercavam completamente! Sem luz para as manter afastadas, restava-lhe estugar o passo e arrastar os pés, fazendo barulho.
Olhou para o relógio, mas estava parado. A luz do telemóvel deu o último suspiro! Estava entregue à escuridão e às mordidas das ratazanas mais afoitas, mas pelo menos tinha caminho para percorrer e era o que fazia, seguia sempre em frente!
Parecia-lhe que estava há horas no ventre da terra e provavelmente era verdade. Longe ficaram os carris onde se iniciou esta travessia e nunca mais os reencontrou…
Mecanicamente continuava a andar, ouvindo e sentindo o ruído do movimento dos roedores à sua volta, ao mesmo tempo que se apercebia que o caminho começava a subir, pelo esforço requerido. Repentinamente notou, aliviado, a ausência dos roedores, ao mesmo tempo que atingia uma plataforma que apenas dava acesso a uma ponte, aparentemente suspensa, que o devia conduzir para a outra margem. Às apalpadelas, percorreu os primeiros metros dessa estrutura, que lhe pareceu bastante sólida…
- Ó Carreira, arranjaste-a bonita! – pensou, sem se dar conta que o fazia em voz alta, surpreendendo-se com o eco.
Logo se apercebeu que alguma coisa estava para acontecer, quando começou a ouvir o tal ruído estranho, primeiro de baixa intensidade, mas cada vez mais alto e nítido, como se fosse de um enorme corpo em movimento. Um corpo de grande dimensão. Instintivamente deitou a mão ao bolso, apalpando a reconfortante coronha da sua arma. Ainda estava em cima da ponte e mergulhado na mais profunda escuridão, com todos os sentidos em alerta total, pronto para qualquer eventualidade.
(Continua na próxima edição)
DUAS NOVAS INICIATIVAS POLICIÁRIAS
A secção O DESAFIO DOS ENIGMAS, do jornal AUDIÊNCIA GP, tem neste momento em marcha duas novas iniciativas: 1)
“Mãos à Escrita!” – um concurso de produção de enigmas policiários, aberto a todos os que se queiram “aventurar” na escrita deste género de ficção, sem temática definida, tendo apenas como condição o limite máximo da dimensão do enunciado (duas páginas A4, com o tipo de letra
Times New Roman, corpo de letra 12 e espaçamento de 1,5 linhas); 2) “Solução à Vista!” – um torneio de decifração, composto pelos enigmas apresentados ao concurso supracitado, em que os participantes (também) classificam os produtores.
Os seus respetivos regulamentos aqui estão:
MÃOS À ESCRITA!
CONCURSO DE ENIGMAS POLICIÁRIOS (PRODUÇÃO)
REGULAMENTO
1. O concurso é aberto a todos os leitores do AUDIÊNCIA Grande Porto ou seguidores do blogue O Local do Crime, sem condicionalismos de idade;
2. Cada concorrente pode apresentar mais do que um original;
3. Os trabalhos, na modalidade de produção de enigma policiário, em língua portuguesa, deverão conter enunciado e respetiva solução;
4. Os trabalhos deverão ser apresentados em suporte digital, formato A4, com tipo de letra
Times New Roman, em corpo 12 e com 1,5 de espaçamento entre linhas;
5. O enunciado do enigma deve ter o máximo de 2 páginas e a solução o máximo de uma página e meia;
6. Os trabalhos, nos moldes atrás descritos, deverão ser enviados para o endereço eletrónico salvadorpereirasantos@hotmail.com, entre 1 de dezembro de 2017 e 15 de abril de 2018;
7. A classificação dos enigmas será definida através da média da pontuação atribuída pelos participantes no torneio de decifração “Solução à Vista!” e pelo orientador da secção O Desafio dos Enigmas;
8. Na apresentação da solução de cada prova do torneio de decifração acima referido, os participantes atribuirão ao respetivo enigma entre 5 a 10 pontos, tendo o orientador da secção o mesmo número de pontos para atribuir a cada enigma;
9. Será vencedor do concurso o enigma que alcançar uma pontuação média mais elevada, sendo distinguidos também os enigmas classificados na segunda e terceira posições;
10. Serão atribuídos os seguintes prémios: 1º. Lugar – Troféu M Constantino; 2º. Lugar – Taça Zé da Vila; 3º. Lugar – Taça Mário Campino;
11. Os casos omissos serão resolvidos pelo orientador da secção O Desafio do Enigmas, não havendo recurso das decisões tomadas.
SOLUÇÃO À VISTA!
TORNEIO DE DECIFRAÇÃO
REGULAMENTO
1. O Torneio de Decifração de enigmas policiários é aberto a todos os leitores do AUDIÊNCIA Grande Porto ou seguidores do blogue O Local do Crime, não necessitando de inscrição prévia;
2. O Torneio será constituído pelos enigmas apresentados ao concurso “Mãos è Escrita!”, que serão publicados mensalmente a partir de 1 de maio de 2018;
3. As propostas de solução de cada enigma deverão ser enviadas até ao dia 10 do mês subsequente ao da sua publicação, sendo acompanhadas de pontuação atribuída ao respetivo enigma, entre 5 a 10 pontos, em função da sua originalidade, qualidade e grau de dificuldade.
4. Cada proposta de solução será classificada entre 5 e 10 pontos, correspondendo 5 à simples presença e 10 à solução integral do enigma, sendo as pontuações intermédias definidas de acordo com o grau de resolução;
5. Em cada enigma, das soluções enviadas serão selecionadas, pelo orientador da secção, as três melhores, que somarão mais 3, 2 e 1 pontos;
6. Será vencedor do Torneio o concorrente que no final acumule o maior número de pontos, sendo distinguido com o Troféu “AUDIÊNCIA Grande Porto’ 2018”;
7. Os concorrentes posicionados nos três lugares subsequentes da classificação final serão distinguidos com as Taças “Natércia Leite”, “Severina” e “Medvet”;
8. Os classificados entre o quinto e o décimo lugar serão distinguidos com medalhas de participação;
9. Os casos omissos serão resolvidos pelo orientador da secção O Desafio do Enigmas, não havendo recurso das decisões tomadas.
O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 10 de novembro de 2017
SEGUNDA PARTE DO TEXTO VENCEDOR DO CONCURSO DE CONTOS Esta edição é exclusivamente preenchida com a continuação da publicação do conto vencedor do nosso Concurso “Um Caso Policial em Gaia”. Na primeira parte, publicada na última edição, ficámos a saber que o inspetor Carreira acabara de chegar a Gaia atrás de uma pista relacionada com alguns indivíduos que haviam escapado às malhas da justiça num caso de grandes repercussões ocorrido em Lisboa, que foi dado como encerrado. Durante a noite avistara um sujeito no miradouro do Mosteiro da Serra do Pilar, que gesticulava exageradamente em direção ao rio Douro, onde um barco manobrava tentando uma acostagem ao cais, enquanto falava ao telemóvel, comportamento que lhe pareceu estranho e aguçou o seu espírito de polícia.
Sol de Inverno, de Luís Pessoa
II – Parte
Logo pela madrugada, depois da noite não dormida, [Carreira] ligou ao Farinha, para saber novas de Lisboa e apanhou-o ensonado. Não havia notícias.
- Carreira, como vai a Vera? E os miúdos?
- Tudo bem, tudo calmo, agora. Estão em casa. Férias…
- Queres que vá ter com eles? Precisas de alguma coisa?
- Não, não, Farinha. Está tudo bem, vou contactando e daqui a uns dias já devo estar de volta, não te incomodes. Se houver alguma coisa digo-te e a Vera sabe que se precisar pode ligar-te. Obrigado, amigo!
Depois de desligar a chamada, pensou que dentro de dias começava um ano novo e queria estar já despachado deste caso…
- Ó “ti S’talo, dê-me aí um copo de três…
- Ó senhor Carreira, é para já… e com tampa!
Era uma particularidade daquela tasca, o velho galego há décadas no bairro, naquele mesmo local, por onde Carreira passava a caminho de casa. A tampa era uma bolacha de água e sal, com que tapava o copo. Depois, eram uns dedos de conversa, mais um copo e ficava a par das novidades do bairro…
- Senhor Inspetor, o carro está pronto.
- Obrigado, Sequeira, vou já…
A paragem era no Senhor da Pedra, uma capela “plantada” em plena praia, mesmo junto ao mar e rodeada de rochedos protetores. Um ponto de paragem quase obrigatório e por isso havia autocarros de turismo em quantidade centenas de novos peregrinos, chamemos-lhe assim, de mochilas às costas, alguns com bonés coloridos, como formigas em fila, para a capela e vindo dela. Alguns grupos paravam à porta, enquanto outros faziam as orações lá dentro.
Carreira dispensou o Sequeira. Resolveu ficar por ali, apesar do frio intenso. O dia estava bonito, o céu limpo e o sol brilhante, apesar de não aquecer.
No areal, alguns miúdos jogavam à bola, aproveitando os derradeiros dias de férias e Carreira recordava os raros momentos em que o trabalho abrandava e ia com os filhos até ao relvado da Torre de Belém dar uns pontapés na bola, em dias como este, frios e bonitos…
Perdeu o olhar na imensidão do mar e do céu azul, distraído, até que uma voz lhe chamou a atenção. Já a ouvira em algum lugar, mas não conseguia reconhecer, até baixar o olhar e ver, na fila formada à sua frente, o rosto conhecido do homem que fizera o espetáculo de som e gesto na Serra do Pilar, no dia anterior. Era curioso reencontrá-lo ali, num grupo numeroso, para visitar um monumento que ele devia conhecer, a avaliar pelo modo como “orientou” a manobra de atracagem do barco.
Seguiu com o olhar o evoluir do grupo, até desaparecer no interior da capela. Outro grupo ficou à porta, esperando a vez. Passados alguns minutos começaram a sair, enquanto os que esperavam se aprestavam para entrar. Carreira olhava de frente cada um dos homens, procurando aquele que já considerava o seu “Amigo da Serra”, mas ele não passou.
- Deve ter ficado lá mais um bocado – pensou.
Mas foram entrando e saindo pessoas sem que o homem reaparecesse. Longos minutos de espera, com alguma expectativa à mistura, mas do homem, nem sinal!
Carreira decidiu entrar também, para ver onde ele poderia estar. Não conhecia a capela, não sabia quantas portas tinha, mas uma coisa era certa, apenas se poderia retornar dela pelo areal, porque em toda a restante volta, havia rochedos e mar revolto. E não havia maneira de sair dali, fora do seu alcance visual. Por isso, esperou mais algum tempo.
Já bastante intrigado, juntou-se a meia dúzia de pessoas e entrou com elas. Rapidamente chegou à conclusão que o homem não estava lá nem se cruzara com ele. Em resumo, esfumara-se lá dentro! Na sua cabeça, algo começava a tomar forma. E se não fosse só aquele homem que não regressou, mas todos os que entraram com ele, substituídos por outros que já lá estivessem?
- Carreira, lá estás tu a maquinar coisas… Essa mania de imaginares mistério em tudo… – sorriu com o seu próprio comentário, que não disfarçava que estava mesmo intrigado.
Decidiu ficar mais umas horas, até ao anoitecer, quando as pessoas fossem embora e a capela ficasse entregue definitivamente ao seu mistério.
Com o ocaso, o frio viu reforçado o seu poder e Carreira já lamentava não ter trazido um agasalho mais forte. O vento soprava, gélido e cortante, o que fez com que se refugiasse na capela. Não havia vivalma e Carreira iniciou a busca, pedra a pedra, laje a laje, objeto a objeto. Notou que ao apoiar-se no altar, parecia haver uma pequena oscilação. Olhando com mais pormenor, notou que havia uma pequena fissura no chão. A luz ia-se perdendo e Carreira lamentou não se ter munido de uma lanterna capaz, tinha de usar o velhinho telemóvel, que tinha a fama de só trabalhar quando queria e já fazia parte do anedotário da corporação.
Procurou rodar o altar, para a direita, para a esquerda, carregar, nada. Não havia qualquer movimento.
Com a mão percorreu toda a área, sem notar nenhuma modificação, mas quando deu um passo para o lado direito, sentiu que o sapato encontrou uma aspereza, uma protuberância, entre duas lajes. Procurou com a mão, percorreu a junção e deu com uma espécie de alavanca minúscula. Notara que havia uma folga, que permitia que se movesse. Assim fez, para a direita, para a esquerda, pressionou-a. Sem qualquer resultado.
Estava prestes a desistir, fez mais umas tentativas enquanto se apoiava no altar para se erguer e foi então que quase se estatelou quando este começou a mover-se, silenciosamente, deixando a descoberto uma escadaria que se perdia na escuridão!
- Ah! – ouviu-se exclamar como se tivesse descoberto aquilo que há muito procurava – então o meu “Amigo da Serra” não se perdeu no ar, mas nas entranhas da terra!
A sua excitação perante uma perspetiva de nova investigação, apenas foi travada pela larga experiência que lhe ditava ao ouvido que devia ser prudente.
- Carreira, acalma-te, vai lá fora aos vendedores ambulantes e compra uma boa lanterna e pilhas com fartura e depois lança-te pela terra dentro… – sorriu, imaginando um anjinho virginal a dar-lhe o conselho, logo contrariado por um diabinho vermelho com um tridente: - Ó Carreira, não te fies nesse “anjola” deslavado, segue em frente!
(Continua na próxima edição)
DUAS NOVAS INICIATIVAS POLICIÁRIAS
A secção O DESAFIO DOS ENIGMAS, do jornal AUDIÊNCIA GP, tem neste momento em preparação duas novas iniciativas com arranque previsto para o início do próximo ano:
1) “Mãos à Escrita!” – um concurso de produção de enigmas policiários, aberto a todos os que se queiram “aventurar” na escrita deste género de ficção, sem temática definida, tendo apenas como condição o limite máximo da dimensão do enunciado (duas páginas A4, com o tipo de letra
Times New Roman, corpo de letra 12 e espaçamento de 1,5 linhas);
2) “Solução à Vista!” – um torneio de decifração, composto pelos enigmas apresentados ao concurso supracitado, em que os participantes (também) classificam os produtores. Os respetivos regulamentos estão por aí a chegar!
O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 31 de outubro de 2017
LUÍS PESSOA É O GRANDE VENCEDOR DO CONCURSO DE CONTOS
Luís Pessoa, contista, ensaísta, produtor de enigmas, amante e divulgador da escrita policial, animador da secção Policiário da edição dominical do jornal Público, rubrica que mantém viva há mais de vinte e cinco anos, é o grande vencedor do Concurso de Contos “Um Caso Policial em Gaia”. Nos lugares seguintes, posicionaram-se os concorrentes Rigor Mortis, António Raposo e António Jesus de Serra Nunes, por esta ordem, com os contos “Cruzeiro no Rio Douro”, “O Roubo da Abelha Gaia” e “Assalto ao Banco”, respetivamente. Recordamos, entretanto, que o Júri distinguiu ainda com menções honrosas os concorrentes Madame Eclética e Daniel Gomes, com os contos “Uma Noite no Convento” e “Viagem de Teleférico”, respetivamente. No caso do grande vencedor, para além do respetivo troféu, conquistou também o direito à publicação do seu conto nas páginas do AUDIÊNCIA GP. E não sendo possível publicá-lo na íntegra, devido à sua extensão, vamos fazê-lo em seis partes, a partir desta edição.
Sol de Inverno, de Luís Pessoa
I - Parte
O dia amanheceu frio. O Sol brilhava em todo o seu esplendor, mas o vento cortante que soprava dos lados do Marão, fazia com que todos se refugiassem em roupa bem quente, encolhendo o pescoço para quase só sobrarem as orelhas de fora.
Carreira estava debaixo de fogo. A sua vida tinha dado uma cambalhota quando meses atrás se envolveu na investigação de um caso muito completo, em Lisboa, que o obrigou a correr riscos extremos, que se estenderam à sua família, à mulher Vera e aos filhos Joca e Sara. No momento de maior risco, foi mesmo forçado a retirar toda a sua família de Lisboa e instalá-la na aldeia, perdida na Beira Alta, numa operação de recurso, na calada da noite, em que foi auxiliado pelo seu colega e amigo de sempre, o Farinha. Toda a restante investigação acabou de forma trágica, com elevados danos colaterais, o que deixou profundas marcas em Carreira. Dois civis foram mortos em trocas de tiros e a repercussão nos meios de comunicação foi muito forte, ao ponto de quase ter sido crucificado na praça pública.
Mas o caso foi concluído, ainda que com alguns indivíduos bem referenciados por Carreira a escaparem às malhas da justiça. Só que ele sabia bem quem eles eram e o que fizeram e eles sabiam muito bem que estavam sinalizados por ele. Não surpreendeu, por isso, que o inspetor aparecesse ali, em Gaia, com o rio Douro a seus pés, seguindo uma nova pista em que acreditava que os tais indivíduos estavam envolvidos, numa nova história que envolvia vinhos, contrabando, moeda falsa, ouro, sem descurar tráfico de influências, porque havia muita “caça grossa” associada.
Ali mesmo, debruçado sobre o Douro, no Mosteiro da Serra do Pilar, com um frio de rachar, apenas estava carreira e um tipo baixote, de tez escura, gesticulando exageradamente, a falar a um telemóvel. Olhava freneticamente para o rio, onde um barco manobrava tentando uma acostagem ao cais de um dos armazéns de vinho do Porto. Com um pouco mais de atenção, Carreira quase ficou com a impressão que o homem comentava a manobra a que assistia. Repentinamente, virou-se para Carreira e comentou irritado:
- Aquele gajo não percebe nada daquela m…
E logo voltou ao telemóvel, numa linguagem entrecortada por um chorrilho de asneiras e sons sem sentido.
Carreira assistia a tudo, incrédulo, sem perceber o que fazia ali aquele homem, àquela hora da manhã, num dia gélido e desagradável, agarrado a um telemóvel. Provavelmente o homem pensava o mesmo dele, ou nem tempo tinha para isso, tal era a concentração que evidenciava, olhando para o barco a atracar e falando, falando, gesticulando com a mão liberta. Finalmente o barco consegue encontrar a sua rota e acostar sem mais problemas e o homem gritou um “aleluia!” que ali pareceu descabido, como foi o erguer dos dois braços ao alto e o sorriso que lançou na sua direção, enquanto se afastava, deixando-o só.
Aproximou-se do varandim e pareceu-lhe notar que, ao mesmo tempo que o barco se imobilizava, um tipo espreitou lá para cima, na sua direção, para logo se recolher.
- Deformação profissional… – pensou em voz alta.
Todos aqueles armazéns estavam há muito debaixo de olho. Havia um volume imenso de vinho que se sabia ser contrafeito, que tinha de passar obrigatoriamente por ali, entrar sem controlo e sair devidamente certificado. Um negócio de milhões, que tardava a ser desmantelado. Havia vigilância nas estradas de acesso, fazia-se a contagem física e real dos barris que eram descarregados, quer de camiões, quer dos barcos, tudo parecia estar absolutamente controlado, mas o vinho continuava a ser falsificado. Em algum ou alguns daqueles armazéns entrava vinho clandestino, obviamente de pior qualidade, para sair com rótulo de excelência e render muitos milhões.
Carreira desceu ao cais e passeou despreocupadamente, pensando no modo que poderia ser utilizado pelos infratores para meterem lá dentro o produto, sem serem vistos. Não tinha dúvidas, os barcos acostavam e os barris eram descarregados, rigorosamente contados e controlados na sua qualidade. Havia agentes que verificavam todas essas tarefas e nada de anormal detetaram; quando o meio usado era terrestre, o processo era idêntico e nada ficava por vasculhar…
- Carreira, pega de imediato na tua família, que eu vou já para aí… – dissera-lhe o amigo Farinha.
Com a mulher Vera e os filhos prontos, apenas acompanhados pelo estritamente necessário e possível naquele instante, o carro partiu na escuridão da noite, depois de despedida fugaz, conduzido por agente experiente.
- Que se passa, Farinha, o que aconteceu?
- Estás debaixo de fogo, pá! Tu e eles, por isso retiramo-los desta cena e agora é só a ti que temos de proteger aqui. Eles ficam completamente seguros, confia em mim.
Sacudiu a cabeça com alguma violência, para afastar essas recordações que lhe eram incómodas. Sentiu raiva dos que lhe perturbaram o rumo da sua vida, certamente uma raiva igual à que sentiam esses tipos contra si, mas quando abraçou a profissão sabia ao que estava sujeito.
Cumprimentou com ligeiro aceno o agente que estava a controlar os movimentos por ali e seguiu o seu caminho.
Nessa noite, Carreira não saiu do escritório onde centralizou a investigação, um apartamento situado na marginal de Gaia, paredes meias com o que imaginava ser o centro do vulcão e onde pensava encontrar as pontas para puxar. Da janela ia notando as movimentações quase permanentes de pessoas entrando e saindo, mas nada de particularmente significativo.
(Continua na próxima edição)