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sexta-feira, julho 17, 2020
  O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 20 de julho de 2020

     UMA HOMENAGEM A GENTE ILUSTRE DA BEIRA-RIO DE GAIA
O conto que hoje publicamos tem por palco a Beira-Rio e miolo do Centro Histórico de Gaia. Para além da história que ele encerra, são recordadas algumas das figuras mais ilustres daquele lugar da freguesia de Santa Marinha. Não sabemos se o seu protagonista existiu ou se é apenas fruto da imaginação de Inspetor Mokada, que se estreia na nossa secção, mas as outras personalidades evocadas em jeito de homenagem existiram mesmo e ainda hoje são recordadas com saudade pelas pessoas que com elas tiveram o privilégio de conviver. Ora, leiam por favor:

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       
Conto nº. 3    
“O Meu Velho Tio Ambrósio”, de Inspetor Mokada
O centro histórico de Gaia encerra uma secular história, que se encontra inscrita nas pedras das suas ruas, becos e escadarias, nas suas velhas casas e na alma das pessoas que as habitam. São as pessoas, aliás, os maiores bens patrimoniais que acrescentam real valor ao lugar. A nossa memória cultural não é apenas constituída por monumentos, outros edifícios históricos, estátuas, pelourinhos ou paisagens singulares. São sobretudo as pessoas que fazem o espírito dos lugares, sempre feitos de diferenças e complementaridades.
Há pessoas que se eternizam na nossa memória pelas melhores razões e outras que permanecem para sempre na nossa cabeça por motivos menos felizes, dramáticos ou até mesmo caricatos. Da beira-rio, da marginal junto ao cais ou do miolo do centro histórico, são muitas as pessoas que se projetam no futuro através da nossa memória.
Zé da Micha é uma dessas pessoas, uma das figuras mais queridas das gentes da beira-rio, uma personagem singular de grande humanidade e espirito de ajuda ao seu semelhante, com uma forte ligação ao rio Douro, de cujas revoltosas águas arrancou muitos homens das garras da morte.  
Inesquecível é também Fernando Peixoto, poeta, historiador de teatro e investigador de história contemporânea na área da política institucional, que chegou a servir os seus concidadãos como presidente da junta de freguesia de Santa Marinha, terra que o viu nascer, à beira-rio.
Inesquecível é igualmente José Guimarães, autor de canções, encenador e autor de teatro de revista, que veio do Porto já homem para Gaia e que por cá ficou até ao seu desaparecimento físico, não sem antes ser merecidamente homenageado pela Câmara Municipal gaiense com a medalha de Ouro da cidade pelos serviços prestados à cultura.
Mas além destes e de outros ilustres homens, que se distinguiram pelas suas qualidades, sociais, desportivas ou culturais, outros houve que ficaram na história da nossa vida por particularidades pouco recomendáveis. Foi o caso do irmão de meu pai, o sapateiro Ambrósio.
O meu velho tio Ambrósio era muito chato. Implicava com tudo e por nada. Até os putos que brincavam na rua, junto à sua janela, o incomodavam Era raro o dia em que não abria as vidraças da janela para gritar com os pulmões que lhe restavam: “Pirem-se daqui, catraios. Vão jogar à bola para outro lado e deixem-se de gritarias. Arre, que uma pessoa nem consegue dormir uma sesta descansado. Qualquer dia perco a cabeça e corro convosco ao estalo.”
A embirração com os miúdos era tal que, a partir de determinada altura, passou a guardar aquele quarteirão da rua onde morava, impedindo-os de reinar. Ficava ali especado, de mãos cruzadas atrás das costas, como se fosse um polícia de giro. Os moços mais espigadotes ainda lhe faziam frente, teimando em imitar na perfeição as habilidades de Figo e dos seus pares, até que a bola lhes escapava e ia parar aos pés do velho Ambrósio...
Eu cheguei a contar dez bolas arrecadadas num canto do seu quarto, todas elas surripiadas aos jovens aspirantes a génios dos relvados, que, nessa altura, o brindavam com alguns mimos pouco agradáveis, mas merecidos: “Devolva a bola, seu jarreta d’um raio. Qualquer dia fazemos-lhe a folha, seu velho cadudo d’uma figa.” O Ambrósio enfurecia-se e remoía baixinho as piores pragas que lhe vinham à cabeça calva e já vermelha de a tanto coçar.
Certo dia, era fevereiro – lembro-me como se fosse hoje –, o Ambrósio estava de sentinela à porta de casa, pronto a dar caça aos que se atrevessem a fazer da rua um parque de brincadeiras, um palco de tropelias e algazarras, um campo de futebol improvisado. O tempo estava frio e húmido e soprava um vento forte e agreste. Tinha chovido durante toda a manhã e não se via vivalma na rua. O meu velho tio batia o dente, mas não largava o seu posto.
De súbito, como se saíssem do denso nevoeiro que acordara a cidade e que continuava a impedir que o sol inundasse as ruas, quatro moços caminhavam em direção a Ambrósio. “Lá vem o bando dos quatro” – pensou o velho. Vinham de rostos cobertos, um deles com um lenço que só lhe descobria os olhos, outro com uma mascarilha, os outros com meias enfiadas na cabeça. Colocaram-se em fila diante do Ambrósio e todos à uma sacaram de pistolas.
O meu pobre tio tremeu que nem varas verdes. A cara encheu-se de uma palidez de pânico quase transparente, que deixava ver as magras veias sem pinga de sangue. Os seus dentes batiam mais do que o descompassado coração, o suor caía em bica pelas faces gretadas, a boca secava, secava, secava, até que se abriu num grito sufocado pelo medo. De olhos muito abertos e boca escancarada, Ambrósio gelou quando um dos miúdos gritou: “Um, dois... disparar!”.
Esguichos de água fria encheram a boca do meu velho tio! O silêncio sepulcral de Ambrósio misturou-se com mil gargalhadas de crianças justiceiras, que juraram vingar naquela tarde os tormentos de dias sem conta vividos à custa do velho. Era terça-feira de Carnaval! Os miúdos correram rua abaixo e o meu velho tio galgou escadas acima. Os garotos foram pregar partidas para outra freguesia e o Ambrósio foi enfiar-se no seu quarto, tolhido de frio e de... medo.

CONVITE AO LEITOR
E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, repetimos o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em função da sua qualidade e a originalidade, do terceiro conto do nosso concurso, da autoria de Inspetor Mokada, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).
A competição prossegue na próxima edição com a publicação do quarto conto, desta vez com assinatura de Ma(r)ta Hari, repetindo-se o processo de avaliação crítica dos nossos leitores durante o mesmo espaço temporal de 30 dias. A sua colaboração é fundamental, caro leitor!

 
sexta-feira, julho 03, 2020
  O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 5 de julho de 2020

     UM NOVO CONTO DO CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”
No momento em que se assinala o 4º. Aniversário da nossa secção (nascida a 1 de julho de 2016), publicamos o segundo conto do concurso “Um Caso Policial em Gaia”, de Inspetor Boavida. O pseudónimo “esconde” uma personalidade ligada à atividade cultural, com fortes raízes afetivas ao concelho de Vila Nova de Gaia, mais especificamente à freguesia de São Pedro da Afurada, local de nascimento do “herói” da história revisitada no original que hoje se publica. A ação desenrola-se no último quartel do século passado, gloriosos tempos de muitos sonhos germinados pela esperança nascida com a Revolução de Abril. Só que uns baseavam os seus desejos na “lei do menor esforço”, buscando nos mais diversos atos ilícitos ou em miríficos golpes de sorte a fuga ao negro destino de uma vida marcada pelo infortúnio e pelo crime. É este o retrato da principal personagem do conto em apreciação nesta edição da nossa secção, cujo desfecho é verdadeiramente surpreendente. Ora vejam lá como se construiu a história de vida deste homem:

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       
Conto nº. 2    
“O Negro Manto da Vida ou As Cinco Cores da Sorte”, de Inspetor Boavida
Esta história aconteceu no último quartel do século passado, mas ainda hoje, em pleno século XXI, é contada pelos mais velhos que se movimentam pelo mundo do crime na cidade de Gaia, entre os quais se destaca um homem de muitos músculos e poucos miolos que dá pelo nome de Seca Pipas, alcunha que ganhou depois uma noite em que ficou fechado numa das Caves de Vinho do Porto, sem conseguir pregar olho. É ele que tem por hábito contar o que se passou com um dos filhos da terra, entretanto falecido, seu comparsa em muitos dos crimes por si cometidos nos idos de 1980, de quem era um verdadeiro amigo do peito. A história passou-se mais ou menos assim:
 Segismundo Moleza, o mãozinhas de veludo da Afurada, nem queria acreditar no que os seus olhos viam. Estava em jogo um triplo jackpot do totoloto, um prémio de mais de cinco milhões de euros, e as seis bolinhas coloridas foram saindo de acordo com a sua aposta habitual de todas as semanas. Primeiro veio a “azulinha” número cinco (dia do seu aniversário), depois caiu a “roxinha” número quarenta (exatamente os dias de prisão que o tribunal decretou pelo seu primeiro crime), de seguida apareceu a “laranjinha” quinze (a idade que tinha quando foi expulso do colégio onde o internaram, ainda criança, após a condenação de seu pai por crime de homicídio na pessoa da própria mulher), de imediato surgiu na boca da grande esfera da sorte a “verdinha” com o vinte e três (número da cama do hospital onde foi parar quando o pai da sua primeira e única namorada “à séria” lhe deu uma valente sova de “caixão à cova”), algumas décimas de segundo depois saltou a “vermelhinha” trinta e seis (precisamente os dias que viveu de cama e mesa com a Micas, uma jovem moçoila transmontana que ele conheceu na grande cidade e que o abandonou sem qualquer explicação de um dia para o outro) e para terminar saiu mais uma redondinha “laranja”, precisamente aquela que tem o número de Nossa Senhora de Fátima, a quem ele reza todas as noites antes de adormecer pedindo sorte e proteção.
A sua fé inabalável na Santa dos três pastorinhos dera “frutos”. Ele podia definitivamente cumprir os mais íntimos e insondáveis desejos de sempre e realizar os seus mais secretos e libidinosos sonhos: percorrer meio mundo sem pressas de regressar, sempre acompanhado das mais jovens e sedutoras mulheres – namorar com uma bela e sensual italiana numa gôndola em Veneza, banhar-se nas trópicas águas de Havana com uma escultural nativa, sambar nas ruas de Copacabana ao lado de uma provocante morena carioca, adormecer nos braços de uma bem despida loira nórdica num luxuoso hotel das “Américas” e acordar a meio da manhã no leito quente e perfumado de uma ruiva mulher vinda de nenhures, sem lugar nem destino certo, depois de uma noite de bebidas, fumo e jogo num qualquer Casino de Las Vegas – e viver, enfim, viver finalmente um vida digna desse nome, sem ter que passar os dias abandonado e só, absolutamente só, a contar os trocos e a fugir do que parecia ser o seu destino de permanente suspeito aos “olhos” da justiça sempre que acontecia um crime e não se sabia a identidade do seu autor, tudo isto graças a seis numeradas bolas coloridas e... à proteção de Nossa Senhora de Fátima.
O negro manto que cobre toda a sua vida, em alto contraste com as cinco cores da sorte que ora o bafejavam e com o branco véu da Santa de sua devoção em que ele sempre acreditara, desaparecera do seu horizonte e tudo à sua volta parecia luzir de um brilho incandescente. Ele, que nascera de uma relação sem futuro, parido numa noite gélida de novembro num velho barracão abandonado em terras serranas vestidas de neve, e que nunca conhecera o calor do afeto, a dádiva do amor, a beleza da partilha dos sentimentos mais nobres e íntimos sem contrapartidas ou permutas pré-negociadas numa esquina ou em vão de escada, tinha ali na palma da mão uma grande fortuna à mercê dos seus dedos e um sol dourado ao alcance de um futuro que pretendia desenhar sobre um imenso azul claro e sem nuvens.
A partir de agora tudo seria diferente. O crime não seria mais o mote dos seus dias ou o pesadelo das suas noites mal dormidas em camas de insónias insistentes e vencidas a custo de muita imaginação e de sonhos coloridos sem guarida na verdade do seu quotidiano. Tudo isto se a voz grave, rouca e profunda do guarda Vicente e o barulho que fazia, com um molho imenso de chaves roçando pelas grades da sua cela, o não tivessem subitamente acordado para a dura realidade. Ali estava ele, abandonado em cima da enxerga da prisão para onde o atiraram na véspera, depois de ter sido apanhado em Lisboa em flagrante delito, acompanhado de uma velha e desconchavada prostituta, a viciar o peso de seis bolas que na noite seguinte entrariam na grande esfera da sorte para mais uma sessão multimilionária do concurso do Totoloto...

CONVITE AO LEITOR
E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, renovamos o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em função da sua qualidade e a originalidade, do segundo conto do nosso concurso, da autoria de Inspetor Boavida, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).
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