O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 20 de julho de 2020
UMA HOMENAGEM A GENTE ILUSTRE
DA BEIRA-RIO DE GAIA
O conto que hoje publicamos tem por palco a Beira-Rio e miolo do Centro
Histórico de Gaia. Para além da história que ele encerra, são recordadas
algumas das figuras mais ilustres daquele lugar da freguesia de Santa Marinha.
Não sabemos se o seu protagonista existiu ou se é apenas fruto da imaginação de
Inspetor Mokada, que se estreia na nossa secção, mas as outras personalidades
evocadas em jeito de homenagem existiram mesmo e ainda hoje são recordadas com
saudade pelas pessoas que com elas tiveram o privilégio de conviver. Ora, leiam
por favor:
CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 3
“O Meu Velho Tio Ambrósio”, de Inspetor
Mokada
O centro histórico de Gaia encerra uma secular história, que se encontra inscrita
nas pedras das suas ruas, becos e escadarias, nas suas velhas casas e na alma
das pessoas que as habitam. São as pessoas, aliás, os maiores bens patrimoniais
que acrescentam real valor ao lugar. A nossa memória cultural não é apenas
constituída por monumentos, outros edifícios históricos, estátuas, pelourinhos
ou paisagens singulares. São sobretudo as pessoas que fazem o espírito dos
lugares, sempre feitos de diferenças e complementaridades.
Há pessoas que se eternizam na nossa memória pelas melhores razões e
outras que permanecem para sempre na nossa cabeça por motivos menos felizes,
dramáticos ou até mesmo caricatos. Da beira-rio, da marginal junto ao cais ou do
miolo do centro histórico, são muitas as pessoas que se projetam no futuro através
da nossa memória.
Zé da Micha é uma dessas pessoas, uma das figuras mais queridas das
gentes da beira-rio, uma personagem singular de grande humanidade e espirito de
ajuda ao seu semelhante, com uma forte ligação ao rio Douro, de cujas revoltosas
águas arrancou muitos homens das garras da morte.
Inesquecível é também Fernando Peixoto, poeta, historiador de teatro e
investigador de história contemporânea na área da política institucional, que
chegou a servir os seus concidadãos como presidente da junta de freguesia de
Santa Marinha, terra que o viu nascer, à beira-rio.
Inesquecível é igualmente José Guimarães, autor de canções, encenador e
autor de teatro de revista, que veio do Porto já homem para Gaia e que por cá
ficou até ao seu desaparecimento físico, não sem antes ser merecidamente homenageado
pela Câmara Municipal gaiense com a medalha de Ouro da cidade pelos serviços
prestados à cultura.
Mas além destes e de outros ilustres homens, que se distinguiram pelas
suas qualidades, sociais, desportivas ou culturais, outros houve que ficaram na
história da nossa vida por particularidades pouco recomendáveis. Foi o caso do
irmão de meu pai, o sapateiro Ambrósio.
O meu velho tio Ambrósio era muito chato. Implicava com tudo e por nada.
Até os putos que brincavam na rua, junto à sua janela, o incomodavam Era raro o
dia em que não abria as vidraças da janela para gritar com os pulmões que lhe
restavam: “Pirem-se daqui, catraios. Vão jogar à bola para outro lado e
deixem-se de gritarias. Arre, que uma pessoa nem consegue dormir uma sesta
descansado. Qualquer dia perco a cabeça e corro convosco ao estalo.”
A embirração com os miúdos era tal que, a partir de determinada altura,
passou a guardar aquele quarteirão da rua onde morava, impedindo-os de reinar.
Ficava ali especado, de mãos cruzadas atrás das costas, como se fosse um
polícia de giro. Os moços mais espigadotes ainda lhe faziam frente, teimando em
imitar na perfeição as habilidades de Figo e dos seus pares, até que a bola
lhes escapava e ia parar aos pés do velho Ambrósio...
Eu cheguei a contar dez bolas arrecadadas num canto do seu quarto, todas
elas surripiadas aos jovens aspirantes a génios dos relvados, que, nessa
altura, o brindavam com alguns mimos pouco agradáveis, mas merecidos: “Devolva
a bola, seu jarreta d’um raio. Qualquer dia fazemos-lhe a folha, seu velho
cadudo d’uma figa.” O Ambrósio enfurecia-se e remoía baixinho as piores pragas
que lhe vinham à cabeça calva e já vermelha de a tanto coçar.
Certo dia, era fevereiro – lembro-me como se fosse hoje –, o Ambrósio
estava de sentinela à porta de casa, pronto a dar caça aos que se atrevessem a fazer
da rua um parque de brincadeiras, um palco de tropelias e algazarras, um campo
de futebol improvisado. O tempo estava frio e húmido e soprava um vento forte e
agreste. Tinha chovido durante toda a manhã e não se via vivalma na rua. O meu
velho tio batia o dente, mas não largava o seu posto.
De súbito, como se saíssem do denso nevoeiro que
acordara a cidade e que continuava a impedir que o sol inundasse as ruas,
quatro moços caminhavam em direção a Ambrósio. “Lá vem o bando dos quatro” –
pensou o velho. Vinham de rostos cobertos, um deles com um lenço que só lhe
descobria os olhos, outro com uma mascarilha, os outros com meias enfiadas na
cabeça. Colocaram-se em fila diante do Ambrósio e todos à uma sacaram de
pistolas.
O meu pobre tio tremeu que nem varas verdes. A cara
encheu-se de uma palidez de pânico quase transparente, que deixava ver as
magras veias sem pinga de sangue. Os seus dentes batiam mais do que o
descompassado coração, o suor caía em bica pelas faces gretadas, a boca secava,
secava, secava, até que se abriu num grito sufocado pelo medo. De olhos muito
abertos e boca escancarada, Ambrósio gelou quando um dos miúdos gritou: “Um,
dois... disparar!”.
Esguichos de água fria encheram a boca do meu velho
tio! O silêncio sepulcral de Ambrósio misturou-se com mil gargalhadas de
crianças justiceiras, que juraram vingar naquela tarde os tormentos de dias sem
conta vividos à custa do velho. Era terça-feira de Carnaval! Os miúdos correram
rua abaixo e o meu velho tio galgou escadas acima. Os garotos foram pregar
partidas para outra freguesia e o Ambrósio foi enfiar-se no seu quarto, tolhido
de frio e de... medo.
CONVITE AO
LEITOR
E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, repetimos
o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é
simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em
função da sua qualidade e a originalidade, do terceiro conto do nosso concurso,
da autoria de Inspetor Mokada, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5
a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção
(salvadorpereirasantos@hotmail.com).
A competição prossegue na próxima edição com a publicação do quarto
conto, desta vez com assinatura de Ma(r)ta Hari, repetindo-se o processo de avaliação
crítica dos nossos leitores durante o mesmo espaço temporal de 30 dias. A sua
colaboração é fundamental, caro leitor!
O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 5 de julho de 2020
UM NOVO CONTO DO CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
No momento em que se assinala o 4º. Aniversário da nossa secção (nascida
a 1 de julho de 2016), publicamos o segundo conto do concurso “Um Caso Policial
em Gaia”, de Inspetor Boavida. O pseudónimo “esconde” uma personalidade ligada
à atividade cultural, com fortes raízes afetivas ao concelho de Vila Nova de
Gaia, mais especificamente à freguesia de São Pedro da Afurada, local de
nascimento do “herói” da história revisitada no original que hoje se publica. A
ação desenrola-se no último quartel do século passado, gloriosos tempos de
muitos sonhos germinados pela esperança nascida com a Revolução de Abril. Só
que uns baseavam os seus desejos na “lei do menor esforço”, buscando nos mais
diversos atos ilícitos ou em miríficos golpes de sorte a fuga ao negro destino
de uma vida marcada pelo infortúnio e pelo crime. É este o retrato da principal
personagem do conto em apreciação nesta edição da nossa secção, cujo desfecho é
verdadeiramente surpreendente. Ora vejam lá como se construiu a história de
vida deste homem:
CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 2
“O Negro Manto da Vida ou As Cinco
Cores da Sorte”, de Inspetor Boavida
Esta história aconteceu no último quartel do século passado, mas ainda
hoje, em pleno século XXI, é contada pelos mais velhos que se movimentam pelo
mundo do crime na cidade de Gaia, entre os quais se destaca um homem de muitos
músculos e poucos miolos que dá pelo nome de Seca Pipas, alcunha que ganhou
depois uma noite em que ficou fechado numa das Caves de Vinho do Porto, sem conseguir
pregar olho. É ele que tem por hábito contar o que se passou com um dos filhos
da terra, entretanto falecido, seu comparsa em muitos dos crimes por si
cometidos nos idos de 1980, de quem era um verdadeiro amigo do peito. A
história passou-se mais ou menos assim:
Segismundo Moleza, o mãozinhas de
veludo da Afurada, nem queria acreditar no que os seus olhos viam. Estava em
jogo um triplo jackpot do totoloto, um prémio de mais de cinco milhões de
euros, e as seis bolinhas coloridas foram saindo de acordo com a sua aposta
habitual de todas as semanas. Primeiro veio a “azulinha” número cinco (dia do
seu aniversário), depois caiu a “roxinha” número quarenta (exatamente os dias
de prisão que o tribunal decretou pelo seu primeiro crime), de seguida apareceu
a “laranjinha” quinze (a idade que tinha quando foi expulso do colégio onde o
internaram, ainda criança, após a condenação de seu pai por crime de homicídio
na pessoa da própria mulher), de imediato surgiu na boca da grande esfera da
sorte a “verdinha” com o vinte e três (número da cama do hospital onde foi
parar quando o pai da sua primeira e única namorada “à séria” lhe deu uma valente
sova de “caixão à cova”), algumas décimas de segundo depois saltou a
“vermelhinha” trinta e seis (precisamente os dias que viveu de cama e mesa com
a Micas, uma jovem moçoila transmontana que ele conheceu na grande cidade e que
o abandonou sem qualquer explicação de um dia para o outro) e para terminar
saiu mais uma redondinha “laranja”, precisamente aquela que tem o número de
Nossa Senhora de Fátima, a quem ele reza todas as noites antes de adormecer
pedindo sorte e proteção.
A sua fé inabalável na Santa dos três pastorinhos dera “frutos”. Ele
podia definitivamente cumprir os mais íntimos e insondáveis desejos de sempre e
realizar os seus mais secretos e libidinosos sonhos: percorrer meio mundo sem
pressas de regressar, sempre acompanhado das mais jovens e sedutoras mulheres –
namorar com uma bela e sensual italiana numa gôndola em Veneza, banhar-se nas
trópicas águas de Havana com uma escultural nativa, sambar nas ruas de
Copacabana ao lado de uma provocante morena carioca, adormecer nos braços de
uma bem despida loira nórdica num luxuoso hotel das “Américas” e acordar a meio
da manhã no leito quente e perfumado de uma ruiva mulher vinda de nenhures, sem
lugar nem destino certo, depois de uma noite de bebidas, fumo e jogo num
qualquer Casino de Las Vegas – e viver, enfim, viver finalmente um vida digna
desse nome, sem ter que passar os dias abandonado e só, absolutamente só, a
contar os trocos e a fugir do que parecia ser o seu destino de permanente
suspeito aos “olhos” da justiça sempre que acontecia um crime e não se sabia a
identidade do seu autor, tudo isto graças a seis numeradas bolas coloridas e...
à proteção de Nossa Senhora de Fátima.
O negro manto que cobre toda a sua vida, em alto contraste com as cinco
cores da sorte que ora o bafejavam e com o branco véu da Santa de sua devoção
em que ele sempre acreditara, desaparecera do seu horizonte e tudo à sua volta
parecia luzir de um brilho incandescente. Ele, que nascera de uma relação sem
futuro, parido numa noite gélida de novembro num velho barracão abandonado em
terras serranas vestidas de neve, e que nunca conhecera o calor do afeto, a
dádiva do amor, a beleza da partilha dos sentimentos mais nobres e íntimos sem
contrapartidas ou permutas pré-negociadas numa esquina ou em vão de escada,
tinha ali na palma da mão uma grande fortuna à mercê dos seus dedos e um sol
dourado ao alcance de um futuro que pretendia desenhar sobre um imenso azul
claro e sem nuvens.
A partir de agora tudo seria diferente. O crime não seria mais o mote dos
seus dias ou o pesadelo das suas noites mal dormidas em camas de insónias
insistentes e vencidas a custo de muita imaginação e de sonhos coloridos sem
guarida na verdade do seu quotidiano. Tudo isto se a voz grave, rouca e
profunda do guarda Vicente e o barulho que fazia, com um molho imenso de chaves
roçando pelas grades da sua cela, o não tivessem subitamente acordado para a
dura realidade. Ali estava ele, abandonado em cima da enxerga da prisão para
onde o atiraram na véspera, depois de ter sido apanhado em Lisboa em flagrante
delito, acompanhado de uma velha e desconchavada prostituta, a viciar o peso de
seis bolas que na noite seguinte entrariam na grande esfera da sorte para mais
uma sessão multimilionária do concurso do Totoloto...
CONVITE AO LEITOR
E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, renovamos
o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é
simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em
função da sua qualidade e a originalidade, do segundo conto do nosso concurso,
da autoria de Inspetor Boavida, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de
5 a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção
(salvadorpereirasantos@hotmail.com).
A competição prossegue na próxima edição com a publicação do terceiro
conto, desta vez com assinatura de Inspetor Mokada, repetindo-se o processo de
avaliação crítica dos nossos leitores durante o mesmo espaço temporal de 30
dias. A sua colaboração é fundamental, caro leitor!