Publicamos na
íntegra o conto nº. 6 do concurso “Um Caso Policial em Gaia”. Os leitores que
desejem participar na escolha dos melhores contos do concurso, podem enviar a
pontuação atribuída a “Reconciliação Fatal”, de Rigor Mortis (5 a 10 pontos)
até dia 20 de outubro.
CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 6
“Reconciliação Fatal”, de Rigor
Mortis
Fazia sol, e a temperatura estava agradável em Gaia.
“Antes assim…”, pensou o inspetor Pedro Malcato,
enquanto caminhava apressadamente pela rua Machado dos Santos, ao lado da
subinspetora Rosa Martins, em direção à vivenda onde residia a vítima. Já
bastava ter sido arrancado de sua casa naquele domingo, ainda mal tinha acabado
de almoçar. “Espero que tenham razão quando dizem que este raio deste vírus não
resiste ao calor!” Ao chegar à vivenda olhou para o relógio, num reflexo
condicionado pelos muitos anos que tinha de Judiciária: 15h55, 29 de Março,
domingo.
O agente que estava à porta deixou-os entrar,
reconhecendo-os. Uma mulher de meia idade, de avental aos quadrados
cor-de-rosa, com os olhos avermelhados de choro, levou-os diretamente até ao
escritório do dono da vivenda, Luís Barbosa. O corpo estava estendido no chão,
sobre um tapete persa, com os pés em direção à porta. Muito magro, tez
macilenta, aspeto geral frágil. No peito via-se nitidamente o cabo, negro, de
uma faca. A camisa branca estava encharcada de sangue, bem como o tapete,
debaixo do torso.
Atarefado à volta do corpo já estava o médico-legista.
A uma pergunta de Malcato, respondeu secamente que a morte teria ocorrido entre
as dez e as onze horas dessa manhã.
– Você é empregada aqui na casa? Vive aqui?
– Sou sim, senhor inspetor, Antónia Domingues. Moro
numa casinha ali para os lados das Devesas, mas trabalho aqui todos os dias. Ao
domingo tenho folga, mas o senhor Luís pediu-me que cá viesse hoje, porque ia
ter a visita de duas pessoas para o almoço. Cheguei aqui um pouquinho antes do
meio dia, ele disse-me que queria almoçar pelas duas horas da tarde. Mal
cheguei fui para a cozinha aprontar o comer e pôr a mesa. Nem vi o senhor Luís,
mas ele também costumava levantar-se tarde aos domingos, pensei que estivesse
na casa de banho a arranjar-se.
– O seu patrão vivia sozinho?
– Sim senhor, desde que a mulher morreu, faz uns anos.
Coitado, andava mesmo muito doente nos últimos tempos, com qualquer coisa que o
devorava por dentro. Sabia que ia morrer em pouco tempo… Mas assim… Quem havia
de imaginar?
– Tinha amigos que o visitassem com frequência?
– Não senhor. Vivia muito só, coitado.
– E inimigos? Pessoas que lhe quisessem mal?
– Acho que não. Bem… Ele costumava dizer-me que
aqueles dois senhores que estão na sala de jantar gostavam de o ver morto,
desde há mais de trinta anos… Mas nunca o vi com eles, nem cá em casa nem em
lado nenhum, nem sequer a falar ao telefone com eles. Mas era capaz de serem os
únicos, sabe, o senhor Luís era muito bom, toda a gente aqui das vizinhanças
gostava muito dele.
Ontem ao almoço é que me disse que eles vinham cá a
casa almoçar com ele hoje. Tinha-os convidado, porque queria reconciliar-se com
eles, depois de tantos anos, antes de morrer.
Malcato e Rosa Martins seguiram a D. Antónia até à
sala de jantar.
Sentado numa cadeira algo afastada da mesa estava um
homem, com um casaco vulgar, azul escuro, e uma gravata azul. Uns cinquenta e
tal anos, encorpado, cabelo castanho escuro, óculos de aros metálicos com
graduação visivelmente elevada. Sobre a mesa, à sua frente, um exemplar do
jornal Público. Malcato reparou na foto da capa, que ocupava metade da primeira
página: uma autoestrada, carros parados em fila indiana na via da direita,
polícias a andar nas outras duas vias. “Mesmo com este coronavírus, estes
malucos continuam a querer ir passear ao domingo!”, pensou sarcasticamente.
Do outro lado da mesa, de pé, também de casaco mas sem
gravata, um segundo homem. Mais ou menos da mesma idade, alto, magro e calvo,
musculado, de mãos nos bolsos das calças cinzento escuras.
– Inspetor Pedro Malcato, subinspetora Rosa Martins. E
os senhores são?...
– João Seixas – respondeu o homem sentado,
levantando-se. – Conheço, perdão, conhecia, o Luís Barbosa desde os tempos da
tropa. Vim aqui a seu convite. Devo dizer que com alguma relutância, e apenas
porque ele me disse que se queria reconciliar comigo antes de morrer. Achei que
já era tempo… Ao fim e ao cabo, que importância têm agora coisas que se
passaram há mais de trinta anos?!
– Américo Sepúlveda – disse o outro homem, de pé. –
Também estou aqui porque o Luís me pediu, com o argumento que já ouviu, senhor
inspetor. Como disse o João, trinta anos é muito tempo…
– Qual a razão da vossa inimizade, tão profunda e tão
longa?...
– Coisas de mulheres e coisas de dinheiro, muito
dinheiro… Dinheiro com que o Luís ficou, deixando-nos de mãos a abanar…
Enquanto falava, Américo tirou do bolso do casaco um jornal dobrado em
quatro, desfez uma das dobras e pô-lo na mesa à sua frente. O Público, também.
Reflexamente, Malcato notou a imagem de um drone no ar.
– A que horas chegaram aqui?
– Por volta da uma da tarde – disse João Seixas. – Vim
de comboio, de Lisboa. Entrei em Santa Apolónia, às nove e meia, e saí na
estação das Devesas pouco depois do meio dia e meia. Já tinha visto que, a pé,
levaria uns vinte minutos até à casa do Luís, por isso resolvi caminhar, aproveitando
o dia bonito. Já na rua Machado dos Santos vi o Américo, e viemos juntos até
aqui.
– Pois, eu também vim de Lisboa, de comboio. Por acaso
no mesmo comboio que o João, mas que apanhei na estação do Oriente. E fiquei
uns minutos nas Devesas, a tomar um café, antes de me pôr a caminho da casa do
Luís. Por isso não nos vimos, nem no comboio, nem na estação. Quando cá
chegámos a casa a empregada fez-nos entrar e levou-nos ao escritório, onde,
dizia ela, o Luís nos esperava. Nem ela nem nós imaginávamos em que estado
estava ele à nossa espera… Quando ela abriu a porta do escritório, deparámos
com o espetáculo que os senhores já devem ter visto também…
**************
Malcato olhou para a sua colaboradora. Na troca de
olhares, fruto de anos de convivência a trabalhar juntos, partilharam a sua
perplexidade.
O instinto dizia-lhes que um daqueles homens teria
assassinado o Luís Barbosa, culminando décadas de ódio… Chegando a casa do
Barbosa pelas dez horas, teria sido este a abrir-lhe a porta, na ausência da
empregada. Após uns minutos de conversa, no escritório, ter-lhe-ia sido fácil
cravar a faca no peito do homem que odiava há tanto tempo, frágil como ele
estava da doença que o dominava.
Depois teria saído, o mais discretamente possível,
aguardando pela hora do almoço para regressar e fazer-se surpreendido com a
morte do Luís Barbosa…
Mas os dois homens diziam ter vindo nessa manhã de
Lisboa, de comboio, chegando às Devesas por volta do meio dia e meia hora… A
ser verdade, não poderiam ter morto o Luís – entre as dez e as onze horas, como
lhes tinha asseverado o médico-legista…
**************
Rosa Martins pôs a mão no braço do inspetor e
sussurrou:
– Pedro, repara na foto do jornal, o do Seixas e o do
Sepúlveda… Já viste?...
Malcato olhou com atenção redobrada para os dois
jornais, ambos em cima da mesa.
No que estava à frente do Seixas, com a primeira
página totalmente à vista, uma autoestrada com três faixas, árvores de ambos os
lados, de cima a baixo da foto, uma série de carros parados na faixa da
direita, isolada das outras duas por uma fila infindável de pinos separadores
branco e laranja, polícias andando nas outras faixas, olhando para os carros
parados. Conhecia muito melhor o Porto, e Gaia, que Lisboa, mas iria apostar
que a autoestrada era a que ligava Lisboa à Ponte 25 de Abril… No que o Sepúlveda tinha tirado do
bolso, também em cima da mesa mas ainda dobrado ao meio, um drone vogando em
pleno céu azul, sem nuvens.
Pegando neste, desdobrou-o e voltou a pô-lo em cima da
mesa, agora com a primeira página completamente exposta.
Era o jornal daquele domingo. O drone vogava sobre
dois homens, que faziam jogging na marginal do Porto…
Dando a volta à mesa e notando que o jornal do Seixas
também era daquele dia, perguntou, em tom perfeitamente casual:
– Onde comprou o seu jornal, senhor Seixas?
– Hum?! Num quiosque ao pé de minha casa, quando saí
para ir para Santa Apolónia. Sempre me deu para me entreter um bocadinho
durante a viagem.
– E você, senhor Sepúlveda?
– Numa lojeca no túnel que vai do Centro Vasco da Gama
para a estação Oriente, porquê?
– Porque o senhor está evidentemente a mentir… E por
isso vai acompanhar-nos até à esquadra, onde teremos muitas mais perguntas para
lhe fazer… É que, note, o seu jornal é a edição do Porto do Público, portanto
só o poderá ter comprado no Porto, ou em Gaia, não em Lisboa como diz. O que
significa que você estava por estas bandas esta manhã, não em Lisboa, e poderá
perfeitamente ter aqui vindo e morto o seu amigo, ou inimigo se preferir, pelas
dez e qualquer coisa...
COMPRAR
E LER JORNAIS É ... SABER SEMPRE MAIS
O inspetor Pedro Malcato e a subinspetora Rosa Martins pareciam não ter dúvidas de que estavam perante um crime de homicídio. De facto, é pouco crível que alguém que se queira suicidar o faça cravando um punhal no seu próprio peito. Decerto encontraria outra forma menos dolorosa de pôr termo à vida se fosse essa a sua vontade. Por outro lado, se fosse sua intenção matar-se, por que raio havia de convidar para um almoço dois velhos amigos com quem queria fazer a reconciliação por um acontecimento mal resolvido do seu passado. E havendo crime tem de existir criminoso! Mas quem o terá cometido? – era a pergunta que se impunha. Embora embrenhados nestes pensamentos, a dupla de inspetores da Polícia Judiciária não descurava nenhum pormenor existente no local do crime e na zona envolvente. Isto porque é no mais pequeno pormenor que pode estar a resposta a todas as interrogações, assim como nas... inquirições a fazer a todos os presentes.
CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 6
“Reconciliação Fatal”, de Rigor
Mortis
II – Parte (conclusão)
– A que horas chegaram aqui?
– Por volta da uma da tarde – disse João Seixas. – Vim
de comboio, de Lisboa. Entrei em Santa Apolónia, às nove e meia, e saí na
estação das Devesas pouco depois do meio dia e meia. Já tinha visto que, a pé,
levaria uns vinte minutos até à casa do Luís, por isso resolvi caminhar,
aproveitando o dia bonito. Já na rua Machado dos Santos vi o Américo, e viemos
juntos até aqui.
– Pois, eu também vim de Lisboa, de comboio. Por acaso
no mesmo comboio que o João, mas que apanhei na estação do Oriente. E fiquei
uns minutos nas Devesas, a tomar um café, antes de me pôr a caminho da casa do
Luís. Por isso não nos vimos, nem no comboio, nem na estação. Quando cá
chegámos a casa a empregada fez-nos entrar e levou-nos ao escritório, onde, dizia
ela, o Luís nos esperava. Nem ela nem nós imaginávamos em que estado estava ele
à nossa espera… Quando ela abriu a porta do escritório, deparámos com o
espetáculo que os senhores já devem ter visto também…
**************
Malcato olhou para a sua colaboradora. Na troca de
olhares, fruto de anos de convivência a trabalhar juntos, partilharam a sua
perplexidade.
O instinto dizia-lhes que um daqueles homens teria
assassinado o Luís Barbosa, culminando décadas de ódio… Chegando a casa do
Barbosa pelas dez horas, teria sido este a abrir-lhe a porta, na ausência da
empregada. Após uns minutos de conversa, no escritório, ter-lhe-ia sido fácil
cravar a faca no peito do homem que odiava há tanto tempo, frágil como ele
estava da doença que o dominava.
Depois teria saído, o mais discretamente possível,
aguardando pela hora do almoço para regressar e fazer-se surpreendido com a
morte do Luís Barbosa…
Mas os dois homens diziam ter vindo nessa manhã de
Lisboa, de comboio, chegando às Devesas por volta do meio dia e meia hora… A
ser verdade, não poderiam ter morto o Luís – entre as dez e as onze horas, como
lhes tinha asseverado o médico-legista…
**************
Rosa Martins pôs a mão no braço do inspetor e
sussurrou:
– Pedro, repara na foto do jornal, o do Seixas e o do
Sepúlveda… Já viste?...
Malcato olhou com atenção redobrada para os dois
jornais, ambos em cima da mesa.
No que estava à frente do Seixas, com a primeira
página totalmente à vista, uma autoestrada com três faixas, árvores de ambos os
lados, de cima a baixo da foto, uma série de carros parados na faixa da
direita, isolada das outras duas por uma fila infindável de pinos separadores
branco e laranja, polícias andando nas outras faixas, olhando para os carros
parados. Conhecia muito melhor o Porto, e Gaia, que Lisboa, mas iria apostar
que a autoestrada era a que ligava Lisboa à Ponte 25 de Abril… No que o Sepúlveda tinha tirado do
bolso, também em cima da mesa mas ainda dobrado ao meio, um drone vogando em
pleno céu azul, sem nuvens.
Pegando neste, desdobrou-o e voltou a pô-lo em cima da
mesa, agora com a primeira página completamente exposta.
Era o jornal daquele domingo. O drone vogava sobre
dois homens, que faziam jogging na marginal do Porto…
Dando a volta à mesa e notando que o jornal do Seixas
também era daquele dia, perguntou, em tom perfeitamente casual:
– Onde comprou o seu jornal, senhor Seixas?
– Hum?! Num quiosque ao pé de minha casa, quando saí
para ir para Santa Apolónia. Sempre me deu para me entreter um bocadinho
durante a viagem.
– E você, senhor Sepúlveda?
– Numa lojeca no túnel que vai do Centro Vasco da Gama
para a estação Oriente, porquê?
– Porque o senhor está evidentemente a mentir… E por isso vai acompanhar-nos até à esquadra, onde teremos muitas mais perguntas para lhe fazer… É que, note, o seu jornal é a edição do Porto do Público, portanto só o poderá ter comprado no Porto, ou em Gaia, não em Lisboa como diz. O que significa que você estava por estas bandas esta manhã, não em Lisboa, e poderá perfeitamente ter aqui vindo e morto o seu amigo, ou inimigo se preferir, pelas dez e qualquer coisa...
CONVITE AO LEITOR
E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, repetimos o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em função da sua qualidade e originalidade, do primeiro conto do nosso concurso, da autoria de Rigor Mortis, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10 pontos, para o e-mail do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).
RECONCILIAÇÃO DE VELHOS AMIGOS DESAVINDOS
A extensão do sexto original participante do nosso concurso de contos
determinou que o dividíssemos em duas partes, face às limitações do espaço
disponível, pelo que aconselhamos que conservem a parte que hoje se publica até
à próxima edição da secção. A sua releitura evitará, assim, que percam “o fio à
meada” e tenham mais dificuldades na avaliação crítica do texto na íntegra. A
narrativa desenvolve-se entre as cidades de Lisboa e Vila Nova Gaia, com uma
eventual passagem pela Invicta, e tem como pano de fundo o falecimento do viúvo
Luís Barbosa, encontrado caído, morto à facada, no chão do escritório da sua
moradia. O seu autor é um concorrente assíduo das iniciativas que temos levado
a efeito ao longo dos últimos três anos, tendo alcançado um brilhante segundo
lugar na edição de 2017 do concurso de contos “Um Caso Policial em Gaia”.
Trata-se, portanto, de um potencial candidato a vencedor da presente edição do
nosso concurso. Mas isso dependerá da vossa avaliação, caros leitores, já que é
vossa a missão exclusiva de atribuir as respetivas pontuações a todos os contos
concorrentes, em função da sua qualidade e originalidade.
CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 6
“Reconciliação Fatal”, de Rigor
Mortis
I - Parte
Fazia sol, e a temperatura estava agradável em Gaia.
“Antes assim…”, pensou o inspetor Pedro Malcato,
enquanto caminhava apressadamente pela rua Machado dos Santos, ao lado da
subinspetora Rosa Martins, em direção à vivenda onde residia a vítima. Já
bastava ter sido arrancado de sua casa naquele domingo, ainda mal tinha acabado
de almoçar. “Espero que tenham razão quando dizem que este raio deste vírus não
resiste ao calor!” Ao chegar à vivenda olhou para o relógio, num reflexo
condicionado pelos muitos anos que tinha de Judiciária: 15h55, 29 de Março,
domingo.
O agente que estava à porta deixou-os entrar,
reconhecendo-os. Uma mulher de meia idade, de avental aos quadrados
cor-de-rosa, com os olhos avermelhados de choro, levou-os diretamente até ao
escritório do dono da vivenda, Luís Barbosa. O corpo estava estendido no chão,
sobre um tapete persa, com os pés em direção à porta. Muito magro, tez
macilenta, aspeto geral frágil. No peito via-se nitidamente o cabo, negro, de
uma faca. A camisa branca estava encharcada de sangue, bem como o tapete,
debaixo do torso.
Atarefado à volta do corpo já estava o médico-legista.
A uma pergunta de Malcato, respondeu secamente que a morte teria ocorrido entre
as dez e as onze horas dessa manhã.
– Você é empregada aqui na casa? Vive aqui?
– Sou sim, senhor inspetor, Antónia Domingues. Moro
numa casinha ali para os lados das Devesas, mas trabalho aqui todos os dias. Ao
domingo tenho folga, mas o senhor Luís pediu-me que cá viesse hoje, porque ia
ter a visita de duas pessoas para o almoço. Cheguei aqui um pouquinho antes do meio
dia, ele disse-me que queria almoçar pelas duas horas da tarde. Mal cheguei fui
para a cozinha aprontar o comer e pôr a mesa. Nem vi o senhor Luís, mas ele
também costumava levantar-se tarde aos domingos, pensei que estivesse na casa
de banho a arranjar-se.
– O seu patrão vivia sozinho?
– Sim senhor, desde que a mulher morreu, faz uns anos.
Coitado, andava mesmo muito doente nos últimos tempos, com qualquer coisa que o
devorava por dentro. Sabia que ia morrer em pouco tempo… Mas assim… Quem havia
de imaginar?
– Tinha amigos que o visitassem com frequência?
– Não senhor. Vivia muito só, coitado.
– E inimigos? Pessoas que lhe quisessem mal?
– Acho que não. Bem… Ele costumava dizer-me que
aqueles dois senhores que estão na sala de jantar gostavam de o ver morto,
desde há mais de trinta anos… Mas nunca o vi com eles, nem cá em casa nem em
lado nenhum, nem sequer a falar ao telefone com eles. Mas era capaz de serem os
únicos, sabe, o senhor Luís era muito bom, toda a gente aqui das vizinhanças
gostava muito dele.
Ontem ao almoço é que me disse que eles vinham cá a
casa almoçar com ele hoje. Tinha-os convidado, porque queria reconciliar-se com
eles, depois de tantos anos, antes de morrer.
Malcato e Rosa Martins seguiram a D. Antónia até à
sala de jantar.
Sentado numa cadeira algo afastada da mesa estava um
homem, com um casaco vulgar, azul escuro, e uma gravata azul. Uns cinquenta e
tal anos, encorpado, cabelo castanho escuro, óculos de aros metálicos com
graduação visivelmente elevada. Sobre a mesa, à sua frente, um exemplar do
jornal Público. Malcato reparou na foto da capa, que ocupava metade da primeira
página: uma autoestrada, carros parados em fila indiana na via da direita,
polícias a andar nas outras duas vias. “Mesmo com este coronavírus, estes
malucos continuam a querer ir passear ao domingo!”, pensou sarcasticamente.
Do outro lado da mesa, de pé, também de casaco mas sem
gravata, um segundo homem. Mais ou menos da mesma idade, alto, magro e calvo,
musculado, de mãos nos bolsos das calças cinzento escuras.
– Inspetor Pedro Malcato, subinspetora Rosa Martins. E
os senhores são?...
– João Seixas – respondeu o homem sentado,
levantando-se. – Conheço, perdão, conhecia, o Luís Barbosa desde os tempos da
tropa. Vim aqui a seu convite. Devo dizer que com alguma relutância, e apenas
porque ele me disse que se queria reconciliar comigo antes de morrer. Achei que
já era tempo… Ao fim e ao cabo, que importância têm agora coisas que se
passaram há mais de trinta anos?!
– Américo Sepúlveda – disse o outro homem, de pé. –
Também estou aqui porque o Luís me pediu, com o argumento que já ouviu, senhor
inspetor. Como disse o João, trinta anos é muito tempo…
– Qual a razão da vossa inimizade, tão profunda e tão
longa?...
– Coisas de mulheres e coisas de dinheiro, muito
dinheiro… Dinheiro com que o Luís ficou, deixando-nos de mãos a abanar…
Enquanto falava, Américo tirou do bolso do casaco um
jornal dobrado em quatro, desfez uma das dobras e pô-lo na mesa à sua frente. O
Público, também. Reflexamente, Malcato notou a imagem de um drone no ar.
(continua na próxima edição)