O CASO DO CADÁVER ENCONTRADO NA PRAIA DE
LAVADORES
O conto que hoje se publica leva-nos de novo ao restaurante Casa Branca, desta vez tendo como autor um consagrado ator português e como protagonista um investigador da Polícia Judiciária que vem sendo presença habitual na nossa secção, cujo nome remete-nos para um importante escritor nacional que viveu a sua juventude em Gaia. Inspetor Garrett é, aliás, muitas vezes questionado sobre um seu eventual parentesco com Almeida Garrett, como acontece neste original, dividido em duas partes devido à escassez de espaço para a publicação numa só edição.
CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM
GAIA”
Conto nº. 8
“O Inspetor Garrett e o Caso de
Lavadores”, de Rui Mendes
I – Parte
Sempre que por motivos profissionais tinha de se deslocar ao Porto, o
inspetor Garrett não deixava de fazer uma visita à praia de Lavadores e de
comer no restaurante Casa Branca. Mesmo depois do desaparecimento da sua
proprietária, a acolhedora Dona Adozinda, os petiscos não perderam a qualidade
que, desde há muitos anos, era timbre da casa.
Primeiro, se fosse para almoçar, e caso estivesse um bonito dia de sol,
era de regra um agradável passeio a pé pela praia ou, no caso de serem horas de
jantar, não se podia perder o estonteante pôr de sol, que acompanhava da melhor
maneira a sobremesa do repasto.
Naquele dia o sol estava radioso e Garrett não perdeu a oportunidade de
cumprir o preceito, fazendo as honras a um suculento “bacalhau recheado”, uma
das especialidades da casa, regado por um tinto “Valle Pradinhos” que não lhe
ficava atrás em nobreza e paladar.
Durante a refeição, Garrett, sempre atento ao seu redor, não deixou de
reparar na atenção que um outro cliente numa mesa próxima lhe dispensava,
olhando-o por vezes como quem se prepara para meter conversa. E, de facto,
quando mais uma vez a empregada referiu o seu nome, perguntando “o sr. Garrett,
deseja já o café do costume?”, o outro avançou, meio hesitante, e indagou:
- “Peço muita desculpa. O senhor chama-se Garrett? É que estou há que
tempos cheio de curiosidade de lhe perguntar se por acaso é descendente do
famoso escritor Almeida Garrett. Se fosse, seria para mim uma grande honra
conhecê-lo, sabe?”
- “Não, meu amigo, e não lhe levo nada a mal a pergunta, não é a primeira
vez que acontece. Mas de facto não sou da família do escritor. E, já agora,
deixe-me dizer-lhe que o meu apelido proveio da Irlanda, ao passo que Almeida
Garrett, que nasceu com o nome prosaico de João Leitão da Silva, só aos 19
anos, estudante de direito em Coimbra, é que resolveu adotar os três apelidos,
Baptista, apelido do padrinho, Almeida, segundo apelido da mãe, e Garrett que
era o apelido da avó paterna, senhora francesa que viera para Portugal
acompanhante de uma princesa. E muita gente não sabe que Garrett, embora tenha
nascido no Porto, passou toda a infância aqui em Gaia.”
- “Bom, lamento, e muito obrigado por esta verdadeira lição. Mas então o
seu apelido não é francês? É irlandês? Como assim?”
O inspetor, que foi sempre um bom conversador, estava particularmente bem
disposto nesse dia e resolveu convidar o interlocutor a tomar café na sua mesa,
para continuarem a conversa.
- “O meu trisavô Leopoldo Bernardo de Mello Garrett era filho de um
imigrante irlandês de nome Michael Garrett, que veio para Portugal em 1858,
aquando da tremenda fome que assolou a Irlanda em meados do século XIX por
causa da doença da batata que matou mais de 700 mil irlandeses e obrigou 800
mil a emigrarem, a maioria dos quais para a América. Mas o motivo da fuga foi
mais exatamente o facto de ele ter aderido à organização clandestina “Fenianos”
que combatia a ocupação inglesa acusando-a de reduzir a Irlanda a um estado de
penúria extrema.”
- “Fenianos”? Mas esse não é o nome de uma coletividade muito popular que
há no Porto?”
- “Pois é. Mas curiosamente não tem nada a ver com a Irlanda. Foi só o
nome adotado aqui por uma sociedade recreativa fundada em 1904 com o objetivo
de tornar o carnaval portuense mais divertido, à semelhança do carnaval
brasileiro que, nos primeiros anos do século vinte, era dominado por uma escola
de samba chamada “Fenianos” talvez porque o nome estivesse ligado na Irlanda a
uma ideia de gente guerreira. E é muito curioso que esse meu tetravô Garrett, “feniano”
irlandês, que era engenheiro de caminhos de ferro, se tenha fixado aqui no
norte e tenha tido um papel importante na construção da linha de comboio
Porto-Póvoa de Varzim que veio a ser inaugurada em 1875.”
- “Então quer dizer que a sua família viveu sempre aqui no norte?”
- “Não, o meu trisavô foi viver para Lisboa e a família por lá ficou. Mas
eu tenho corrido o país todo, até porque a minha profissão na Judiciária a isso
obriga. Hoje sou inspetor, agora já é tarde para mudar, mas confesso-lhe que
não há “métier” mais ingrato. Não nos podemos enganar mas, às vezes
enganamo-nos. Somos como os árbitros de futebol.”
- “Oh, meu Deus! Então estou na frente de um inspetor da P.J.? Ninguém
diria. E, desculpe a pergunta, inspetor Garrett, mas enganam-se muitas vezes?”
- “Não, mas quando acontece é em cheio. Quantas vezes só passados uns
anos é que percebemos os erros que cometemos. Por vezes ainda dá para emendar e
reabrir o processo, mas noutras já é tarde demais. Olhe meu amigo, vou
contar-lhe uma história que nunca contei a ninguém. Foi um dos maiores
falhanços da minha carreira. Um erro de palmatória.”
- “Veja lá... Se não quiser, não conte...”
- “Não, não. Eu hoje estou de maré. E já lá vão mais de dois anos. Alguma
vez ouviu falar de uma mulher que apareceu morta aqui na praia de Lavadores, no
ano de 2017? Não, pois não? A coisa ficou sempre fora das trombetas da
imprensa, a família da vítima exerceu influências nesse sentido. Nem o Correio
da Manhã conseguiu farejar o sucedido. Eu nessa altura estava em comissão de
serviço no Porto e fui encarregado do caso. Mas deixe-me contar a história
desde o princípio, olhe, como se fosse um problema policial. Gosta de problemas
policiais? Devia gostar. Fazem bem à cabeça da gente. E para mim é o dia a dia.”
- “Inspetor, posso oferecer-lhe um digestivo? Convido eu.”
- “Não, amigo, obrigado. Deixe-me ficar com o paladar do vinho tinto que
era ótimo. Mas vamos à história:”
(continua na próxima edição)
Um Caso Policial em Gaia
Publicamos na íntegra o conto nº. 7 do concurso “Um Caso Policial em Gaia”. Os leitores que desejem participar na escolha dos melhores contos do concurso, podem enviar a pontuação atribuída a “Uma História Inverosímil”, de Detetive Mel (5 a 10 pontos), até dia 10 de dezembro.
CONCURSO “UM
CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 7
“Uma História Inverosímil”, de Detetive Mel
António Andrade Albuquerque, mais conhecido por Dick Haskins, trocara
Leiria por Gaia, terra da harmonia, criada por uma divindade. Herdara, de uma
tia solteira e empreendedora que fizera fortuna com o negócio dos vinhos, o
Restaurante Casa Branca, Avenida da Beira-Mar nº. 757 e uns terrenos à
retaguarda. Com mais uns dinheiritos da venda dos seus policiais, construíra
ali um pequeno hotel. Recentemente, influenciado pela notícia dos encontros de
escritores, achou que poderia fazer frente à crise do turismo e ganhar mais uns
cobres se promovesse uma reunião semelhante. Para isso construiu um pavilhão
nas traseiras do hotel e convocou, através das redes sociais, escritores
policiais e seus detetives.
Era quinta-feira, dia 4 de Maio de 2017, e Haskins encontrava-se no
interior do balcão da receção do Hotel, preparado para receber os clientes. Os
primeiros a aparecer foram Edgar Poe e Auguste Dupin. Haskins ficou surpreendido.
Pois não pertenciam eles a séculos passados? Poe esclareceu que tinham vindo
através da Máquina do Tempo. Haskins já tinha visto o filme e até tinha rido
bastante…mas ficou com um ar baralhado. Poe chamou-lhe então atrasado e avisou
que ia chegar uma avalanche de outros escritores que tinham utilizado o mesmo
meio de transporte. Sabia ele que Dupin era o pai de todos os detetives, tendo
até influenciado Agatha Christie e Conan Doyle? Who dunnit? Ficaram num quarto
com duas camas, o nº 13, por sinal número do azar. Poe foi muito arrogante,
agressivo, maltratou Haskins psicologicamente, mostrou falta de boas maneiras.
Haskins aguentou tudo pois o cliente tem sempre razão mas, no íntimo, ficou-lhe
com um certo pó.
A seguir Haskins deu a volta ao balcão, foi chamar o rececionista de
serviço, que se esquivara ao seu dever e, dando largas à sua irritação, gritou:
“Ó Matoso, venha para aqui trabalhar pois é para isso que eu lhe pago!”
Girando pela sala, Haskins acolheu os visitantes que chegaram. Eram realmente
muitos, a maior parte não contemporâneos. Para instalar todos, teve de
contactar o Black Tulip, o Novotel e o Holiday Inn, tudo hotéis de 4 estrelas.
As carrinhas teriam de andar numa roda viva durante aquela estadia de quatro
dias mas, à conta das gorjetas e do parlapiê à boa moda portuguesa, os
motoristas não se iam importar.
Ficaram instalados no Hotel Casa Branca: Agatha Christie, Miss Marple e
Hercule Poirot, o belga. Este, quando Miss Marple explicou a razão pela qual
Tommy e Tuppence não estavam presentes, não quis ficar na sombra. Deu um passo
em frente e apresentou-se: “Eu sou Poirot e estou aqui com todas as minhas
células cinzentas”; Conan Doyle e os amigos inseparáveis, Sherlock Holmes e o
Dr. Watson; Georges Simenon e Maigret; Francisco José Viegas e o seu amigo
Jaime Ramos que ficaram no mesmo quarto para dividirem a despesa porque o
Ministério da Cultura não patrocinava eventos; José Rodrigues dos Santos e
Noronha, também juntos pois ainda tinham de decifrar algo naquela noite;
Varatojo, com o seu cachimbo; Stanley Gardner e Perry Mason. Estes partilharam
o quarto para cederem a Della Street o restante.
Às 19.00 foi servido um beberete. O Porto Cálem gerou boa disposição e
constantes elogios.
*****
Sexta-feira, dia 5, trouxe um acontecimento desagradável: Poe foi
encontrado no quarto, asfixiado por uma almofada. Dupin assegurou que se
levantara cedo, que falara para ele à saída e não obtivera resposta, pensara
que fazia a ressaca da muita bebida da véspera. Ficou consternado, apático, não
almoçou e foi levado para o quarto dos empregados, onde dormiu todo o dia.
Haskins telefonou à Polícia e depois dirigiu-se ao Pavilhão. Já ali
estavam, prontos para o encontro programado para as 10.00 horas, todos os
convocados. Que fazer?
Cumprimentou, contou o que acontecera, pediu desculpa pelo facto de ser
inviável o cumprimento do programa e fez uma proposta: a atividade de sexta
realizar-se-ia no domingo e, na sexta-feira que decorria, far-se-ia o
sightseeing agendado para domingo. Os visitantes teriam de ir sós ou em
pequenos grupos. Foi feita uma votação e a troca foi aceite.
No entanto, Haskins achou-se no dever de, para além de uns mapas, dar
umas dicas para a visita. Aos amantes de arte recomendou a Casa-Museu Teixeira
Lopes ou o Centro Interpretativo do Património da Afurada onde os artistas do
Grupo Silvarte expõem. Ainda na Afurada, aconselhou um robalo fresco, um
passeio a pé pelas zonas piscatórias, ou um mergulho numa das muitas praias.
Caminhando para leste, chegariam ao Cabedelo e encantar-se-iam com a imensa
variedade de aves. Cansados? No Douro Marina podiam relaxar e tomar um
cafezinho. Aves, mas não marítimas, podiam vê-las no Zoo Santo Inácio. Porque
não uma ida ao Parque Biológico de Gaia ou inspirar o cheiro do Cantinho das
Aromáticas? E, last but not least: ninguém podia perder o Mosteiro da Serra do
Pilar e o Miradouro do Jardim do Morro. Este proporciona uma vista deslumbrante
do Rio Douro, um rio de ouro, com os seus barcos rabelos carregados de
turistas, deslizando sob as várias pontes. Na margem de lá está o Porto, com
destaque para a sua Torre dos Clérigos e a sua Ribeira apinhada de turistas.
Podem descer no teleférico ou no metro e passear na Marginal, ver a Capela do
Senhor da Pedra num rochedo à beira-mar. Tirem fotografias, amigos! Comprem
souvenirs! Vão às caves, provem os vinhos e não se esqueçam dos amigos que lá
nas vossas terras ainda não provaram o precioso néctar. Somos o berço do Vinho
do Porto!
As sugestões agradaram a todos, especialmente a Rodrigues dos Santos. “Ó
Albuquerque, tinhas a lição bem estudada…” disse ele, dando-lhe um abraço.
Haskins respondeu: “Teve de ser, pá! Fiz pesquisa. Fui ao blogue ‘Viaje
comigo!’ da jornalista Susana”.
A seguir, Haskins telefonou ao Inspetor Fidalgo e pediu-lhe que fosse a
Gaia rapidamente. Fidalgo perguntou o que tinha acontecido e ele respondeu: “Um
homicídio. Mataram Edgar Poe”. Do outro lado: “Oh, Albuquerque, não esteja a
brincar comigo. Esse escritor já morreu há décadas. E quem é que o queria matar
agora, se já está morto há tanto tempo?” Haskins estava muito nervoso. Não
havia tempo para explicações. O assunto era urgente.
Fidalgo não demorou. Foi recebido na sala de estar do restaurante. Olhou
de relance, notou qualquer coisa de estranho e não tardou a perceber o quê.
“Lindos quadros! Que belas Damas! Manhã. Meio-dia. Tarde. Mas não devia ser um
conjunto de quatro? Falta aqui a Noite…”. Haskins ainda não tinha dado pela
falta, o dia estava a ser demasiado pesado, mas registou a brilhante
constatação do Inspetor. Não havia dúvidas de que entrava logo com garras de
leão. Assim fosse ele tão rápido a resolver o caso que ali o levara…
Foram para o gabinete de Haskins. O Inspetor pediu que o colega lhe relatasse
os factos. Quando ouviu falar da invasão de escritores deitou as mãos à cabeça
“Com tantos detetives, colega, não me diga que vamos ficar sem o nosso
ganha-pão…”. Noutra ocasião, Haskins teria rido, mas ainda tinha que lhe
explicar o transporte de muitos deles. Ganhou forças e disse: “É que vieram os
que existem e os que já não, os vivos e os mortos.” O Inspetor abriu os olhos.
“Ó Albuquerque, ponha de lado essa história dos mortos. E diga-me lá, só por
piada, como é que vieram os “já não”?
Haskins referiu a Máquina do Tempo. O Inspetor explicou que aquela
história era ficção, que só acreditaria quando visse a invasão. Haskins já
vira, estava confuso. Então Fidalgo disse que não tinha tempo a perder. Queria
que ele descrevesse toda a situação. Haskins contou tudo o que se passara, aos
factos juntou a sua opinião, desancou no Poe e elogiou os restantes. O Inspetor
quis saber quem eram os convidados que tinham ficado no Casa Branca. Haskins
forneceu-lhe quatro listas dos convidados e juntou a gravação feita na admissão
de Poe. Estava exausto, bem se via, o seu papel de anfitrião conferia-lhe muita
responsabilidade. O Inspetor apercebeu-se disso. “Convoque todos para uma
reunião no Pavilhão. Amanhã. 9.00 horas. Mande servir-me o jantar e deixe-me
ocupar o seu gabinete por esta noite. Agora vá lá descansar que bem precisa!”
disse, despedindo-o amigavelmente.
*****
Às 9.00 de Sábado, estavam presentes no Pavilhão todos os convocados.
O Inspetor Fidalgo tomou a palavra: “Estou aqui, a pedido do nosso colega
Haskins, para aclarar situações. Contudo, porque a ocasião é única, aproveito
para cumprimentar todos os colegas detetives e seus respetivos progenitores,
quase todos tão geniais que por vezes os seus nomes são esquecidos a favor das
suas criações. Parabéns”!
“Apesar das circunstâncias, sinto-me feliz por ter tido o privilégio de
me encontrar aqui com tão ilustres visitantes e partilhar com todos a minha
modesta visão do problema que me foi dado a resolver.”
“Verifico que os convocados estão todos presentes à exceção de Dame
Agatha Christie. Miss Marple, será que a sua progenitora se assustou com a
fúria das ondas ou retomou a ideia de se fazer desaparecida?” “Tendo vivido
naquela região tão agreste, não acredito que estas ondinhas a tenham assustado”
respondeu a visada. “Também não podia querer fugir ao marido pois este seu
casamento é bem estável. Acho mais provável que tenha subido à Serra do Pilar à
procura de mais um cenário para um policial. Não é caso para dizer Crime, digo
eu. Não nos preocupemos, Inspetor, confie na minha capacidade de conhecer a
alma humana.”
Tranquilizado em relação à ausência de Agatha Christie, o Inspetor voltou
ao assunto que o levara ali. Tinha de desmascarar um homicida. Fez uma pausa,
apontou o indicativo a Haskins e a assembleia ficou tensa, contendo a
respiração. “Devo confessar-vos, à laia de preâmbulo…” Fez uma pausa... “E só
por graça”, acrescentou sorrindo, “que cheguei a desconfiar dele.” Indignado,
Haskins levantou-se. “Que é lá isso? Não suje o meu nome!”. Fidalgo
desculpou-se. “Não se irrite comigo, amigo, não me ouviu dizer ‘só por graça’?
Portanto, não sujei a sua reputação, aliás, prezo-o muito. Mas não posso dizer
que não suspeitei de si.” Já mais calmo, Haskins perguntou por que razão
desconfiara dele. Fidalgo esclareceu: “Quer saber? Você estava muito nervoso,
elétrico, completamente fora de si, sempre queixoso do Poe e da sua conversa
estúpida. E então pareceu-me que, com muita subtileza, queria orientar-me na
direção de Dupin”. “É verdade, aquela conversa do Poe deixou-me com uma raiva
contida.” “Sim, e junto de mim esvaziou o saco. Não conseguia dizer duas sem
referir o par. Parecia odiá-lo. E sabe o que me lembrou? Que o seu papel era
idêntico ao do Ackleroy da Agatha”. “E porque quereria eu imitá-lo? Eu era o
principal interessado em que se fizesse luz no caso.” “Por isso mesmo. Também
ele era o único de quem ninguém suspeitava, lembra-se?” “Rendo-me. Pelos vistos
você não põe de lado nenhuma hipótese.” “Não, não ponho. Mas peço-lhe desculpa.
Continuamos amigos?” “Com certeza.”
“Bem, vou então dizer-vos como cheguei à verdade”:
“Haskins deu-me o registo de uma conversa despropositada de Poe, à
chegada ao Hotel. Um convidado para uma reunião tão seleta não devia falar
assim. Referiu também a sua má pronúncia. Disse-me que o ‘velho’ estava na cama
com os cabelos brancos desalinhados. Mas não tinha o Poe apenas 40 anos?
Telefonei para os chineses do Shopping Gaia e indaguei acerca de máscaras
carnavalescas. Soube que tinham sido vendidas duas indumentárias do século XIX.
O médico apontara para a meia-noite a hora do falecimento, mas Dupin afirmara
que, ao sair do quarto, manhã cedo, Poe estava ainda vivo. Não sei por que
razão associei a Dupin o nome Lupin, charmoso ladrão do Leblanc… Tornou-se
evidente que tínhamos entre nós um par de larápios.”
“Por volta da 0.20, ouvi um ruído de passos, fui à janela e vi um vulto.
Telefonei para a receção e soube que o Matoso fora rendido e estava a sair.
Levava com ele um embrulho volumoso e um computador. Seria a almofada
desaparecida? Iria, dentro da maleta, o quadro que faltava? Então era ele o
homicida”.
O rececionista ficou vermelho e deitou as mãos à cabeça. O Inspetor
perguntou: “Queria esconder a prova do delito?” “Delito?” , repetiu Matoso,
levantando-se e voltando a sentar-se. “Eu, Sr. Inspetor? Credo! Eu lá sou capaz
de matar uma galinha, quanto mais uma pessoa…” “Então quem foi o homicida?”
Matoso respondeu com voz sumida. “Eu cá não fui.” “Bem, homem, não se assuste
porque a mim nunca me pareceu que você fosse um criminoso. Mas diga-me lá
porque ia esconder a prova do crime.” “Ele pediu-me. Disse que matara o pai sem
querer. Lutaram porque Poe lhe disse que só lhe ia dar 10% do lucro da venda.
Estava em apuros e disse que eu tinha de lhe dar uma ajuda.” “Matoso, você não
é homicida nem ladrão, é só ignorante e por isso não soube dizer aos
malfeitores que os quadros não valiam tanto como os do Mucha, eram obra de um
pintor que você nem conhece. Estava também convencido que esses meliantes, seus
pseudo amigos iam repartir consigo a recompensa prometida? É melhor confessar,
talvez o Juiz lhe reduza a pena.” “Não há nada a confessar, o Sr. Inspetor já
descobriu tudo. É verdade que fui muito ingénuo. E tive medo. Os tipos queriam
os quadros, pediram a minha ajuda, ameaçaram-me com a minha família,
prometeram-me 10% do lucro e eu pensei que ia finalmente poder pagar a
universidade que é o sonho dos meus filhos. Também fui um sonhador, sempre fui.
Pensei que ia sair da mediocridade desta vida mesquinha que tenho levado…”
Estava tudo esclarecido, à exceção da identidade dos vigaristas. “Nem eu
sei, Sr. Inspetor.” Disse o Matoso. “Só sei que eram pai e filho. Andavam
sempre juntos lá pela tasca.”
Apontando para o falso Dupin, Fidalgo disse então: “Chefe, há aqui
trabalho para si. Traga as algemas e prenda este homem por homicídio e
ladroagem. Leve também este desgraçado! Conivência em roubo.”
*****
Fidalgo, dirigindo-se à assembleia: “Devo dizer que me sinto feliz pelo
facto de nenhum dos convocados ter sido atingido nesta tragicomédia! A culpa
cabe a estes tristes coitados que são da minha nacionalidade e disso me
envergonho, mas todos sabemos que neste mundo a gente boa se encontra misturada
com a ruim.”
Ouviram-se palmas.
Sentado na primeira fila, cofiando o bigode, Sherlock Holmes disse em voz
baixa: “Que achas, Watson? Não precisaram de nós…”
“Deixe- me responder por si, Dr.Watson. É certo que, enquanto eu cogitei
uma noite inteira, vós teríeis chegado à verdade em apenas dez minutos. Haskins
pediu a minha ajuda, e não a vossa, porque os senhores estão aqui na qualidade
de convidados e não de consultores”.
Novos aplausos.
*****
Chegara a hora do Encontro que se realizou após um coffee break durante o
qual Fidalgo espalhou o seu charme e abraçou afetuosamente os ilustres
visitantes.
Fidalgo tinha de partir. No Ribatejo, esperavam-no os seus clientes.
Haskins acompanhou-o à porta.
“Muito obrigado, Inspetor Fidalgo, o senhor foi brilhante.”
“Ora, Albuquerque, limitei-me a fazer o meu trabalho e agora está tudo
esclarecido. Só há uma coisa que ainda não percebi. Lá que os vivos tenham
vindo, tudo bem, era o que se esperava, mas como é que a Máquina do Tempo
trouxe os mortos?”
Haskins respondeu: “Ó meu amigo, não se incomode com isso. Cá por mim,
não vou ficar a meditar no assunto. O que me preocupa agora é saber quanto lhe
vou pagar…”
“Eu não cobro muito. Depois mando-lhe a conta.”
DESCOBERTA TODA A VERDADE SOBRE A MORTE DE EDGAR ALAN POE
Chamado de urgência ao Encontro de Escritores Policiais, promovido por Dick Haskins em Vila Nova de Gaia, o inspetor Fidalgo começou por suspeitar do envolvimento do próprio anfitrião na morte do escritor Edgar Alan Poe, o que acabou por gerar uma reação de grande desagrado por parte do mais traduzido e publicado autor português no estrangeiro. Mas depois de explicar as razões das suas suspeitas, que acabaram por se verificar infundadas, comunicou a descoberta da verdade para espanto da generalidade dos presentes. E é assim que chegamos ao fim do conto nº. 7 do nosso concurso “Um Caso Policial em Gaia”, com uma longa explanação do Inspetor Fidalgo sobre o desfecho desta intricada “história inverosímil” que ocupou a nossa secção durante três edições.
CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”
Conto nº. 7
“Uma História Inverosímil”, de
Detetive Mel
III – Parte (conclusão)
“Haskins deu-me o registo de uma conversa despropositada de Poe, à
chegada ao Hotel. Um convidado para uma reunião tão seleta não devia falar
assim. Referiu também a sua má pronúncia. Disse-me que o ‘velho’ estava na cama
com os cabelos brancos desalinhados. Mas não tinha o Poe apenas 40 anos?
Telefonei para os chineses do Shopping Gaia e indaguei acerca de máscaras
carnavalescas. Soube que tinham sido vendidas duas indumentárias do século XIX.
O médico apontara para a meia-noite a hora do falecimento, mas Dupin afirmara
que, ao sair do quarto, manhã cedo, Poe estava ainda vivo. Não sei por que
razão associei a Dupin o nome Lupin, charmoso ladrão do Leblanc… Tornou-se
evidente que tínhamos entre nós um par de larápios.”
“Por volta da 0.20, ouvi um ruído de passos, fui à janela e vi um vulto.
Telefonei para a receção e soube que o Matoso fora rendido e estava a sair.
Levava com ele um embrulho volumoso e um computador. Seria a almofada
desaparecida? Iria, dentro da maleta, o quadro que faltava? Então era ele o
homicida”.
O rececionista ficou vermelho e deitou as mãos à cabeça. O Inspetor
perguntou: “Queria esconder a prova do delito?” “Delito?” , repetiu Matoso,
levantando-se e voltando a sentar-se. “Eu, Sr. Inspetor? Credo! Eu lá sou capaz
de matar uma galinha, quanto mais uma pessoa…” “Então quem foi o homicida?”
Matoso respondeu com voz sumida. “Eu cá não fui.” “Bem, homem, não se assuste
porque a mim nunca me pareceu que você fosse um criminoso. Mas diga-me lá
porque ia esconder a prova do crime.” “Ele pediu-me. Disse que matara o pai sem
querer. Lutaram porque Poe lhe disse que só lhe ia dar 10% do lucro da venda.
Estava em apuros e disse que eu tinha de lhe dar uma ajuda.” “Matoso, você não
é homicida nem ladrão, é só ignorante e por isso não soube dizer aos
malfeitores que os quadros não valiam tanto como os do Mucha, eram obra de um
pintor que você nem conhece. Estava também convencido que esses meliantes, seus
pseudo amigos iam repartir consigo a recompensa prometida? É melhor confessar,
talvez o Juiz lhe reduza a pena.” “Não há nada a confessar, o Sr. Inspetor já
descobriu tudo. É verdade que fui muito ingénuo. E tive medo. Os tipos queriam
os quadros, pediram a minha ajuda, ameaçaram-me com a minha família,
prometeram-me 10% do lucro e eu pensei que ia finalmente poder pagar a
universidade que é o sonho dos meus filhos. Também fui um sonhador, sempre fui.
Pensei que ia sair da mediocridade desta vida mesquinha que tenho levado…”
Estava tudo esclarecido, à exceção da identidade dos vigaristas. “Nem eu
sei, Sr. Inspetor.” Disse o Matoso. “Só sei que eram pai e filho. Andavam
sempre juntos lá pela tasca.”
Apontando para o falso Dupin, Fidalgo disse então: “Chefe, há aqui
trabalho para si. Traga as algemas e prenda este homem por homicídio e
ladroagem. Leve também este desgraçado! Conivência em roubo.”
*****
Fidalgo, dirigindo-se à assembleia: “Devo dizer que me sinto feliz pelo
facto de nenhum dos convocados ter sido atingido nesta tragicomédia! A culpa
cabe a estes tristes coitados que são da minha nacionalidade e disso me
envergonho, mas todos sabemos que neste mundo a gente boa se encontra misturada
com a ruim.”
Ouviram-se palmas.
Sentado na primeira fila, cofiando o bigode, Sherlock Holmes disse em voz
baixa: “Que achas, Watson? Não precisaram de nós…”
“Deixe- me responder por si, Dr.Watson. É certo que, enquanto eu cogitei
uma noite inteira, vós teríeis chegado à verdade em apenas dez minutos. Haskins
pediu a minha ajuda, e não a vossa, porque os senhores estão aqui na qualidade
de convidados e não de consultores”.
Novos aplausos.
*****
Chegara a hora do Encontro que se realizou após um coffee break durante o
qual Fidalgo espalhou o seu charme e abraçou afetuosamente os ilustres
visitantes.
Fidalgo tinha de partir. No Ribatejo, esperavam-no os seus clientes.
Haskins acompanhou-o à porta.
“Muito obrigado, Inspetor Fidalgo, o senhor foi brilhante.”
“Ora, Albuquerque, limitei-me a fazer o meu trabalho e agora está tudo
esclarecido. Só há uma coisa que ainda não percebi. Lá que os vivos tenham
vindo, tudo bem, era o que se esperava, mas como é que a Máquina do Tempo
trouxe os mortos?”
Haskins respondeu: “Ó meu amigo, não se incomode com isso. Cá por mim,
não vou ficar a meditar no assunto. O que me preocupa agora é saber quanto lhe
vou pagar…”
“Eu não cobro muito. Depois mando-lhe a conta.”
CONVITE AO LEITOR
E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, repetimos
o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é
simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em
função da sua qualidade e originalidade, do sétimo conto do nosso concurso, da
autoria de Detetive Mel, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10
pontos, para o email do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).