localdocrime
sexta-feira, novembro 20, 2020
  O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 20 de novembro de 2020

      O CASO DO CADÁVER ENCONTRADO NA PRAIA DE LAVADORES

O conto que hoje se publica leva-nos de novo ao restaurante Casa Branca, desta vez tendo como autor um consagrado ator português e como protagonista um investigador da Polícia Judiciária que vem sendo presença habitual na nossa secção, cujo nome remete-nos para um importante escritor nacional que viveu a sua juventude em Gaia. Inspetor Garrett é, aliás, muitas vezes questionado sobre um seu eventual parentesco com Almeida Garrett, como acontece neste original, dividido em duas partes devido à escassez de espaço para a publicação numa só edição.

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 8

“O Inspetor Garrett e o Caso de Lavadores”, de Rui Mendes

I – Parte

Sempre que por motivos profissionais tinha de se deslocar ao Porto, o inspetor Garrett não deixava de fazer uma visita à praia de Lavadores e de comer no restaurante Casa Branca. Mesmo depois do desaparecimento da sua proprietária, a acolhedora Dona Adozinda, os petiscos não perderam a qualidade que, desde há muitos anos, era timbre da casa.

Primeiro, se fosse para almoçar, e caso estivesse um bonito dia de sol, era de regra um agradável passeio a pé pela praia ou, no caso de serem horas de jantar, não se podia perder o estonteante pôr de sol, que acompanhava da melhor maneira a sobremesa do repasto.

Naquele dia o sol estava radioso e Garrett não perdeu a oportunidade de cumprir o preceito, fazendo as honras a um suculento “bacalhau recheado”, uma das especialidades da casa, regado por um tinto “Valle Pradinhos” que não lhe ficava atrás em nobreza e paladar.

Durante a refeição, Garrett, sempre atento ao seu redor, não deixou de reparar na atenção que um outro cliente numa mesa próxima lhe dispensava, olhando-o por vezes como quem se prepara para meter conversa. E, de facto, quando mais uma vez a empregada referiu o seu nome, perguntando “o sr. Garrett, deseja já o café do costume?”, o outro avançou, meio hesitante, e indagou:

- “Peço muita desculpa. O senhor chama-se Garrett? É que estou há que tempos cheio de curiosidade de lhe perguntar se por acaso é descendente do famoso escritor Almeida Garrett. Se fosse, seria para mim uma grande honra conhecê-lo, sabe?”

- “Não, meu amigo, e não lhe levo nada a mal a pergunta, não é a primeira vez que acontece. Mas de facto não sou da família do escritor. E, já agora, deixe-me dizer-lhe que o meu apelido proveio da Irlanda, ao passo que Almeida Garrett, que nasceu com o nome prosaico de João Leitão da Silva, só aos 19 anos, estudante de direito em Coimbra, é que resolveu adotar os três apelidos, Baptista, apelido do padrinho, Almeida, segundo apelido da mãe, e Garrett que era o apelido da avó paterna, senhora francesa que viera para Portugal acompanhante de uma princesa. E muita gente não sabe que Garrett, embora tenha nascido no Porto, passou toda a infância aqui em Gaia.”

- “Bom, lamento, e muito obrigado por esta verdadeira lição. Mas então o seu apelido não é francês? É irlandês? Como assim?”

O inspetor, que foi sempre um bom conversador, estava particularmente bem disposto nesse dia e resolveu convidar o interlocutor a tomar café na sua mesa, para continuarem a conversa.

- “O meu trisavô Leopoldo Bernardo de Mello Garrett era filho de um imigrante irlandês de nome Michael Garrett, que veio para Portugal em 1858, aquando da tremenda fome que assolou a Irlanda em meados do século XIX por causa da doença da batata que matou mais de 700 mil irlandeses e obrigou 800 mil a emigrarem, a maioria dos quais para a América. Mas o motivo da fuga foi mais exatamente o facto de ele ter aderido à organização clandestina “Fenianos” que combatia a ocupação inglesa acusando-a de reduzir a Irlanda a um estado de penúria extrema.”

- “Fenianos”? Mas esse não é o nome de uma coletividade muito popular que há no Porto?”

- “Pois é. Mas curiosamente não tem nada a ver com a Irlanda. Foi só o nome adotado aqui por uma sociedade recreativa fundada em 1904 com o objetivo de tornar o carnaval portuense mais divertido, à semelhança do carnaval brasileiro que, nos primeiros anos do século vinte, era dominado por uma escola de samba chamada “Fenianos” talvez porque o nome estivesse ligado na Irlanda a uma ideia de gente guerreira. E é muito curioso que esse meu tetravô Garrett, “feniano” irlandês, que era engenheiro de caminhos de ferro, se tenha fixado aqui no norte e tenha tido um papel importante na construção da linha de comboio Porto-Póvoa de Varzim que veio a ser inaugurada em 1875.”

- “Então quer dizer que a sua família viveu sempre aqui no norte?”

- “Não, o meu trisavô foi viver para Lisboa e a família por lá ficou. Mas eu tenho corrido o país todo, até porque a minha profissão na Judiciária a isso obriga. Hoje sou inspetor, agora já é tarde para mudar, mas confesso-lhe que não há “métier” mais ingrato. Não nos podemos enganar mas, às vezes enganamo-nos. Somos como os árbitros de futebol.”

- “Oh, meu Deus! Então estou na frente de um inspetor da P.J.? Ninguém diria. E, desculpe a pergunta, inspetor Garrett, mas enganam-se muitas vezes?”

- “Não, mas quando acontece é em cheio. Quantas vezes só passados uns anos é que percebemos os erros que cometemos. Por vezes ainda dá para emendar e reabrir o processo, mas noutras já é tarde demais. Olhe meu amigo, vou contar-lhe uma história que nunca contei a ninguém. Foi um dos maiores falhanços da minha carreira. Um erro de palmatória.”

- “Veja lá... Se não quiser, não conte...”

- “Não, não. Eu hoje estou de maré. E já lá vão mais de dois anos. Alguma vez ouviu falar de uma mulher que apareceu morta aqui na praia de Lavadores, no ano de 2017? Não, pois não? A coisa ficou sempre fora das trombetas da imprensa, a família da vítima exerceu influências nesse sentido. Nem o Correio da Manhã conseguiu farejar o sucedido. Eu nessa altura estava em comissão de serviço no Porto e fui encarregado do caso. Mas deixe-me contar a história desde o princípio, olhe, como se fosse um problema policial. Gosta de problemas policiais? Devia gostar. Fazem bem à cabeça da gente. E para mim é o dia a dia.”

- “Inspetor, posso oferecer-lhe um digestivo? Convido eu.”

- “Não, amigo, obrigado. Deixe-me ficar com o paladar do vinho tinto que era ótimo. Mas vamos à história:”

(continua na próxima edição)

 

 
terça-feira, novembro 17, 2020
  O DESAFIO DOS ENIGMAS - conto nº. 7 de Detetive Mel

Um Caso Policial em Gaia

Publicamos na íntegra o conto nº. 7 do concurso “Um Caso Policial em Gaia”. Os leitores que desejem participar na escolha dos melhores contos do concurso, podem enviar a pontuação atribuída a “Uma História Inverosímil”, de Detetive Mel (5 a 10 pontos), até dia 10 de dezembro.

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 7

“Uma História Inverosímil”, de Detetive Mel

António Andrade Albuquerque, mais conhecido por Dick Haskins, trocara Leiria por Gaia, terra da harmonia, criada por uma divindade. Herdara, de uma tia solteira e empreendedora que fizera fortuna com o negócio dos vinhos, o Restaurante Casa Branca, Avenida da Beira-Mar nº. 757 e uns terrenos à retaguarda. Com mais uns dinheiritos da venda dos seus policiais, construíra ali um pequeno hotel. Recentemente, influenciado pela notícia dos encontros de escritores, achou que poderia fazer frente à crise do turismo e ganhar mais uns cobres se promovesse uma reunião semelhante. Para isso construiu um pavilhão nas traseiras do hotel e convocou, através das redes sociais, escritores policiais e seus detetives.

Era quinta-feira, dia 4 de Maio de 2017, e Haskins encontrava-se no interior do balcão da receção do Hotel, preparado para receber os clientes. Os primeiros a aparecer foram Edgar Poe e Auguste Dupin. Haskins ficou surpreendido. Pois não pertenciam eles a séculos passados? Poe esclareceu que tinham vindo através da Máquina do Tempo. Haskins já tinha visto o filme e até tinha rido bastante…mas ficou com um ar baralhado. Poe chamou-lhe então atrasado e avisou que ia chegar uma avalanche de outros escritores que tinham utilizado o mesmo meio de transporte. Sabia ele que Dupin era o pai de todos os detetives, tendo até influenciado Agatha Christie e Conan Doyle? Who dunnit? Ficaram num quarto com duas camas, o nº 13, por sinal número do azar. Poe foi muito arrogante, agressivo, maltratou Haskins psicologicamente, mostrou falta de boas maneiras. Haskins aguentou tudo pois o cliente tem sempre razão mas, no íntimo, ficou-lhe com um certo pó.

A seguir Haskins deu a volta ao balcão, foi chamar o rececionista de serviço, que se esquivara ao seu dever e, dando largas à sua irritação, gritou: “Ó Matoso, venha para aqui trabalhar pois é para isso que eu lhe pago!”

Girando pela sala, Haskins acolheu os visitantes que chegaram. Eram realmente muitos, a maior parte não contemporâneos. Para instalar todos, teve de contactar o Black Tulip, o Novotel e o Holiday Inn, tudo hotéis de 4 estrelas. As carrinhas teriam de andar numa roda viva durante aquela estadia de quatro dias mas, à conta das gorjetas e do parlapiê à boa moda portuguesa, os motoristas não se iam importar.

Ficaram instalados no Hotel Casa Branca: Agatha Christie, Miss Marple e Hercule Poirot, o belga. Este, quando Miss Marple explicou a razão pela qual Tommy e Tuppence não estavam presentes, não quis ficar na sombra. Deu um passo em frente e apresentou-se: “Eu sou Poirot e estou aqui com todas as minhas células cinzentas”; Conan Doyle e os amigos inseparáveis, Sherlock Holmes e o Dr. Watson; Georges Simenon e Maigret; Francisco José Viegas e o seu amigo Jaime Ramos que ficaram no mesmo quarto para dividirem a despesa porque o Ministério da Cultura não patrocinava eventos; José Rodrigues dos Santos e Noronha, também juntos pois ainda tinham de decifrar algo naquela noite; Varatojo, com o seu cachimbo; Stanley Gardner e Perry Mason. Estes partilharam o quarto para cederem a Della Street o restante.

Às 19.00 foi servido um beberete. O Porto Cálem gerou boa disposição e constantes elogios.

***** 

Sexta-feira, dia 5, trouxe um acontecimento desagradável: Poe foi encontrado no quarto, asfixiado por uma almofada. Dupin assegurou que se levantara cedo, que falara para ele à saída e não obtivera resposta, pensara que fazia a ressaca da muita bebida da véspera. Ficou consternado, apático, não almoçou e foi levado para o quarto dos empregados, onde dormiu todo o dia.

Haskins telefonou à Polícia e depois dirigiu-se ao Pavilhão. Já ali estavam, prontos para o encontro programado para as 10.00 horas, todos os convocados. Que fazer?

Cumprimentou, contou o que acontecera, pediu desculpa pelo facto de ser inviável o cumprimento do programa e fez uma proposta: a atividade de sexta realizar-se-ia no domingo e, na sexta-feira que decorria, far-se-ia o sightseeing agendado para domingo. Os visitantes teriam de ir sós ou em pequenos grupos. Foi feita uma votação e a troca foi aceite.

No entanto, Haskins achou-se no dever de, para além de uns mapas, dar umas dicas para a visita. Aos amantes de arte recomendou a Casa-Museu Teixeira Lopes ou o Centro Interpretativo do Património da Afurada onde os artistas do Grupo Silvarte expõem. Ainda na Afurada, aconselhou um robalo fresco, um passeio a pé pelas zonas piscatórias, ou um mergulho numa das muitas praias. Caminhando para leste, chegariam ao Cabedelo e encantar-se-iam com a imensa variedade de aves. Cansados? No Douro Marina podiam relaxar e tomar um cafezinho. Aves, mas não marítimas, podiam vê-las no Zoo Santo Inácio. Porque não uma ida ao Parque Biológico de Gaia ou inspirar o cheiro do Cantinho das Aromáticas? E, last but not least: ninguém podia perder o Mosteiro da Serra do Pilar e o Miradouro do Jardim do Morro. Este proporciona uma vista deslumbrante do Rio Douro, um rio de ouro, com os seus barcos rabelos carregados de turistas, deslizando sob as várias pontes. Na margem de lá está o Porto, com destaque para a sua Torre dos Clérigos e a sua Ribeira apinhada de turistas. Podem descer no teleférico ou no metro e passear na Marginal, ver a Capela do Senhor da Pedra num rochedo à beira-mar. Tirem fotografias, amigos! Comprem souvenirs! Vão às caves, provem os vinhos e não se esqueçam dos amigos que lá nas vossas terras ainda não provaram o precioso néctar. Somos o berço do Vinho do Porto!

As sugestões agradaram a todos, especialmente a Rodrigues dos Santos. “Ó Albuquerque, tinhas a lição bem estudada…” disse ele, dando-lhe um abraço. Haskins respondeu: “Teve de ser, pá! Fiz pesquisa. Fui ao blogue ‘Viaje comigo!’ da jornalista Susana”.

A seguir, Haskins telefonou ao Inspetor Fidalgo e pediu-lhe que fosse a Gaia rapidamente. Fidalgo perguntou o que tinha acontecido e ele respondeu: “Um homicídio. Mataram Edgar Poe”. Do outro lado: “Oh, Albuquerque, não esteja a brincar comigo. Esse escritor já morreu há décadas. E quem é que o queria matar agora, se já está morto há tanto tempo?” Haskins estava muito nervoso. Não havia tempo para explicações. O assunto era urgente.

Fidalgo não demorou. Foi recebido na sala de estar do restaurante. Olhou de relance, notou qualquer coisa de estranho e não tardou a perceber o quê. “Lindos quadros! Que belas Damas! Manhã. Meio-dia. Tarde. Mas não devia ser um conjunto de quatro? Falta aqui a Noite…”. Haskins ainda não tinha dado pela falta, o dia estava a ser demasiado pesado, mas registou a brilhante constatação do Inspetor. Não havia dúvidas de que entrava logo com garras de leão. Assim fosse ele tão rápido a resolver o caso que ali o levara…

Foram para o gabinete de Haskins. O Inspetor pediu que o colega lhe relatasse os factos. Quando ouviu falar da invasão de escritores deitou as mãos à cabeça “Com tantos detetives, colega, não me diga que vamos ficar sem o nosso ganha-pão…”. Noutra ocasião, Haskins teria rido, mas ainda tinha que lhe explicar o transporte de muitos deles. Ganhou forças e disse: “É que vieram os que existem e os que já não, os vivos e os mortos.” O Inspetor abriu os olhos. “Ó Albuquerque, ponha de lado essa história dos mortos. E diga-me lá, só por piada, como é que vieram os “já não”?

Haskins referiu a Máquina do Tempo. O Inspetor explicou que aquela história era ficção, que só acreditaria quando visse a invasão. Haskins já vira, estava confuso. Então Fidalgo disse que não tinha tempo a perder. Queria que ele descrevesse toda a situação. Haskins contou tudo o que se passara, aos factos juntou a sua opinião, desancou no Poe e elogiou os restantes. O Inspetor quis saber quem eram os convidados que tinham ficado no Casa Branca. Haskins forneceu-lhe quatro listas dos convidados e juntou a gravação feita na admissão de Poe. Estava exausto, bem se via, o seu papel de anfitrião conferia-lhe muita responsabilidade. O Inspetor apercebeu-se disso. “Convoque todos para uma reunião no Pavilhão. Amanhã. 9.00 horas. Mande servir-me o jantar e deixe-me ocupar o seu gabinete por esta noite. Agora vá lá descansar que bem precisa!” disse, despedindo-o amigavelmente.

*****

Às 9.00 de Sábado, estavam presentes no Pavilhão todos os convocados.

O Inspetor Fidalgo tomou a palavra: “Estou aqui, a pedido do nosso colega Haskins, para aclarar situações. Contudo, porque a ocasião é única, aproveito para cumprimentar todos os colegas detetives e seus respetivos progenitores, quase todos tão geniais que por vezes os seus nomes são esquecidos a favor das suas criações. Parabéns”!

“Apesar das circunstâncias, sinto-me feliz por ter tido o privilégio de me encontrar aqui com tão ilustres visitantes e partilhar com todos a minha modesta visão do problema que me foi dado a resolver.”

“Verifico que os convocados estão todos presentes à exceção de Dame Agatha Christie. Miss Marple, será que a sua progenitora se assustou com a fúria das ondas ou retomou a ideia de se fazer desaparecida?” “Tendo vivido naquela região tão agreste, não acredito que estas ondinhas a tenham assustado” respondeu a visada. “Também não podia querer fugir ao marido pois este seu casamento é bem estável. Acho mais provável que tenha subido à Serra do Pilar à procura de mais um cenário para um policial. Não é caso para dizer Crime, digo eu. Não nos preocupemos, Inspetor, confie na minha capacidade de conhecer a alma humana.”

Tranquilizado em relação à ausência de Agatha Christie, o Inspetor voltou ao assunto que o levara ali. Tinha de desmascarar um homicida. Fez uma pausa, apontou o indicativo a Haskins e a assembleia ficou tensa, contendo a respiração. “Devo confessar-vos, à laia de preâmbulo…” Fez uma pausa... “E só por graça”, acrescentou sorrindo, “que cheguei a desconfiar dele.” Indignado, Haskins levantou-se. “Que é lá isso? Não suje o meu nome!”. Fidalgo desculpou-se. “Não se irrite comigo, amigo, não me ouviu dizer ‘só por graça’? Portanto, não sujei a sua reputação, aliás, prezo-o muito. Mas não posso dizer que não suspeitei de si.” Já mais calmo, Haskins perguntou por que razão desconfiara dele. Fidalgo esclareceu: “Quer saber? Você estava muito nervoso, elétrico, completamente fora de si, sempre queixoso do Poe e da sua conversa estúpida. E então pareceu-me que, com muita subtileza, queria orientar-me na direção de Dupin”. “É verdade, aquela conversa do Poe deixou-me com uma raiva contida.” “Sim, e junto de mim esvaziou o saco. Não conseguia dizer duas sem referir o par. Parecia odiá-lo. E sabe o que me lembrou? Que o seu papel era idêntico ao do Ackleroy da Agatha”. “E porque quereria eu imitá-lo? Eu era o principal interessado em que se fizesse luz no caso.” “Por isso mesmo. Também ele era o único de quem ninguém suspeitava, lembra-se?” “Rendo-me. Pelos vistos você não põe de lado nenhuma hipótese.” “Não, não ponho. Mas peço-lhe desculpa. Continuamos amigos?” “Com certeza.”

“Bem, vou então dizer-vos como cheguei à verdade”:

“Haskins deu-me o registo de uma conversa despropositada de Poe, à chegada ao Hotel. Um convidado para uma reunião tão seleta não devia falar assim. Referiu também a sua má pronúncia. Disse-me que o ‘velho’ estava na cama com os cabelos brancos desalinhados. Mas não tinha o Poe apenas 40 anos? Telefonei para os chineses do Shopping Gaia e indaguei acerca de máscaras carnavalescas. Soube que tinham sido vendidas duas indumentárias do século XIX. O médico apontara para a meia-noite a hora do falecimento, mas Dupin afirmara que, ao sair do quarto, manhã cedo, Poe estava ainda vivo. Não sei por que razão associei a Dupin o nome Lupin, charmoso ladrão do Leblanc… Tornou-se evidente que tínhamos entre nós um par de larápios.”

“Por volta da 0.20, ouvi um ruído de passos, fui à janela e vi um vulto. Telefonei para a receção e soube que o Matoso fora rendido e estava a sair. Levava com ele um embrulho volumoso e um computador. Seria a almofada desaparecida? Iria, dentro da maleta, o quadro que faltava? Então era ele o homicida”.

O rececionista ficou vermelho e deitou as mãos à cabeça. O Inspetor perguntou: “Queria esconder a prova do delito?” “Delito?” , repetiu Matoso, levantando-se e voltando a sentar-se. “Eu, Sr. Inspetor? Credo! Eu lá sou capaz de matar uma galinha, quanto mais uma pessoa…” “Então quem foi o homicida?” Matoso respondeu com voz sumida. “Eu cá não fui.” “Bem, homem, não se assuste porque a mim nunca me pareceu que você fosse um criminoso. Mas diga-me lá porque ia esconder a prova do crime.” “Ele pediu-me. Disse que matara o pai sem querer. Lutaram porque Poe lhe disse que só lhe ia dar 10% do lucro da venda. Estava em apuros e disse que eu tinha de lhe dar uma ajuda.” “Matoso, você não é homicida nem ladrão, é só ignorante e por isso não soube dizer aos malfeitores que os quadros não valiam tanto como os do Mucha, eram obra de um pintor que você nem conhece. Estava também convencido que esses meliantes, seus pseudo amigos iam repartir consigo a recompensa prometida? É melhor confessar, talvez o Juiz lhe reduza a pena.” “Não há nada a confessar, o Sr. Inspetor já descobriu tudo. É verdade que fui muito ingénuo. E tive medo. Os tipos queriam os quadros, pediram a minha ajuda, ameaçaram-me com a minha família, prometeram-me 10% do lucro e eu pensei que ia finalmente poder pagar a universidade que é o sonho dos meus filhos. Também fui um sonhador, sempre fui. Pensei que ia sair da mediocridade desta vida mesquinha que tenho levado…”

Estava tudo esclarecido, à exceção da identidade dos vigaristas. “Nem eu sei, Sr. Inspetor.” Disse o Matoso. “Só sei que eram pai e filho. Andavam sempre juntos lá pela tasca.”

Apontando para o falso Dupin, Fidalgo disse então: “Chefe, há aqui trabalho para si. Traga as algemas e prenda este homem por homicídio e ladroagem. Leve também este desgraçado! Conivência em roubo.”

*****

Fidalgo, dirigindo-se à assembleia: “Devo dizer que me sinto feliz pelo facto de nenhum dos convocados ter sido atingido nesta tragicomédia! A culpa cabe a estes tristes coitados que são da minha nacionalidade e disso me envergonho, mas todos sabemos que neste mundo a gente boa se encontra misturada com a ruim.”

Ouviram-se palmas.

Sentado na primeira fila, cofiando o bigode, Sherlock Holmes disse em voz baixa: “Que achas, Watson? Não precisaram de nós…”

“Deixe- me responder por si, Dr.Watson. É certo que, enquanto eu cogitei uma noite inteira, vós teríeis chegado à verdade em apenas dez minutos. Haskins pediu a minha ajuda, e não a vossa, porque os senhores estão aqui na qualidade de convidados e não de consultores”.

Novos aplausos.

*****

Chegara a hora do Encontro que se realizou após um coffee break durante o qual Fidalgo espalhou o seu charme e abraçou afetuosamente os ilustres visitantes.

Fidalgo tinha de partir. No Ribatejo, esperavam-no os seus clientes. Haskins acompanhou-o à porta.

“Muito obrigado, Inspetor Fidalgo, o senhor foi brilhante.”

“Ora, Albuquerque, limitei-me a fazer o meu trabalho e agora está tudo esclarecido. Só há uma coisa que ainda não percebi. Lá que os vivos tenham vindo, tudo bem, era o que se esperava, mas como é que a Máquina do Tempo trouxe os mortos?”

Haskins respondeu: “Ó meu amigo, não se incomode com isso. Cá por mim, não vou ficar a meditar no assunto. O que me preocupa agora é saber quanto lhe vou pagar…”

“Eu não cobro muito. Depois mando-lhe a conta.”

 

 
quarta-feira, novembro 11, 2020
  O DESAFIO DOS ENIGMAS - edição de 10 de novembro de 2020

DESCOBERTA TODA A VERDADE SOBRE A MORTE DE EDGAR ALAN POE

Chamado de urgência ao Encontro de Escritores Policiais, promovido por Dick Haskins em Vila Nova de Gaia, o inspetor Fidalgo começou por suspeitar do envolvimento do próprio anfitrião na morte do escritor Edgar Alan Poe, o que acabou por gerar uma reação de grande desagrado por parte do mais traduzido e publicado autor português no estrangeiro. Mas depois de explicar as razões das suas suspeitas, que acabaram por se verificar infundadas, comunicou a descoberta da verdade para espanto da generalidade dos presentes. E é assim que chegamos ao fim do conto nº. 7 do nosso concurso “Um Caso Policial em Gaia”, com uma longa explanação do Inspetor Fidalgo sobre o desfecho desta intricada “história inverosímil” que ocupou a nossa secção durante três edições.

CONCURSO “UM CASO POLICIAL EM GAIA”       

Conto nº. 7

“Uma História Inverosímil”, de Detetive Mel

III – Parte (conclusão)

“Haskins deu-me o registo de uma conversa despropositada de Poe, à chegada ao Hotel. Um convidado para uma reunião tão seleta não devia falar assim. Referiu também a sua má pronúncia. Disse-me que o ‘velho’ estava na cama com os cabelos brancos desalinhados. Mas não tinha o Poe apenas 40 anos? Telefonei para os chineses do Shopping Gaia e indaguei acerca de máscaras carnavalescas. Soube que tinham sido vendidas duas indumentárias do século XIX. O médico apontara para a meia-noite a hora do falecimento, mas Dupin afirmara que, ao sair do quarto, manhã cedo, Poe estava ainda vivo. Não sei por que razão associei a Dupin o nome Lupin, charmoso ladrão do Leblanc… Tornou-se evidente que tínhamos entre nós um par de larápios.”

“Por volta da 0.20, ouvi um ruído de passos, fui à janela e vi um vulto. Telefonei para a receção e soube que o Matoso fora rendido e estava a sair. Levava com ele um embrulho volumoso e um computador. Seria a almofada desaparecida? Iria, dentro da maleta, o quadro que faltava? Então era ele o homicida”.

O rececionista ficou vermelho e deitou as mãos à cabeça. O Inspetor perguntou: “Queria esconder a prova do delito?” “Delito?” , repetiu Matoso, levantando-se e voltando a sentar-se. “Eu, Sr. Inspetor? Credo! Eu lá sou capaz de matar uma galinha, quanto mais uma pessoa…” “Então quem foi o homicida?” Matoso respondeu com voz sumida. “Eu cá não fui.” “Bem, homem, não se assuste porque a mim nunca me pareceu que você fosse um criminoso. Mas diga-me lá porque ia esconder a prova do crime.” “Ele pediu-me. Disse que matara o pai sem querer. Lutaram porque Poe lhe disse que só lhe ia dar 10% do lucro da venda. Estava em apuros e disse que eu tinha de lhe dar uma ajuda.” “Matoso, você não é homicida nem ladrão, é só ignorante e por isso não soube dizer aos malfeitores que os quadros não valiam tanto como os do Mucha, eram obra de um pintor que você nem conhece. Estava também convencido que esses meliantes, seus pseudo amigos iam repartir consigo a recompensa prometida? É melhor confessar, talvez o Juiz lhe reduza a pena.” “Não há nada a confessar, o Sr. Inspetor já descobriu tudo. É verdade que fui muito ingénuo. E tive medo. Os tipos queriam os quadros, pediram a minha ajuda, ameaçaram-me com a minha família, prometeram-me 10% do lucro e eu pensei que ia finalmente poder pagar a universidade que é o sonho dos meus filhos. Também fui um sonhador, sempre fui. Pensei que ia sair da mediocridade desta vida mesquinha que tenho levado…”

Estava tudo esclarecido, à exceção da identidade dos vigaristas. “Nem eu sei, Sr. Inspetor.” Disse o Matoso. “Só sei que eram pai e filho. Andavam sempre juntos lá pela tasca.”

Apontando para o falso Dupin, Fidalgo disse então: “Chefe, há aqui trabalho para si. Traga as algemas e prenda este homem por homicídio e ladroagem. Leve também este desgraçado! Conivência em roubo.”

*****

Fidalgo, dirigindo-se à assembleia: “Devo dizer que me sinto feliz pelo facto de nenhum dos convocados ter sido atingido nesta tragicomédia! A culpa cabe a estes tristes coitados que são da minha nacionalidade e disso me envergonho, mas todos sabemos que neste mundo a gente boa se encontra misturada com a ruim.”

Ouviram-se palmas.

Sentado na primeira fila, cofiando o bigode, Sherlock Holmes disse em voz baixa: “Que achas, Watson? Não precisaram de nós…”

“Deixe- me responder por si, Dr.Watson. É certo que, enquanto eu cogitei uma noite inteira, vós teríeis chegado à verdade em apenas dez minutos. Haskins pediu a minha ajuda, e não a vossa, porque os senhores estão aqui na qualidade de convidados e não de consultores”.

Novos aplausos.

*****

Chegara a hora do Encontro que se realizou após um coffee break durante o qual Fidalgo espalhou o seu charme e abraçou afetuosamente os ilustres visitantes.

Fidalgo tinha de partir. No Ribatejo, esperavam-no os seus clientes. Haskins acompanhou-o à porta.

“Muito obrigado, Inspetor Fidalgo, o senhor foi brilhante.”

“Ora, Albuquerque, limitei-me a fazer o meu trabalho e agora está tudo esclarecido. Só há uma coisa que ainda não percebi. Lá que os vivos tenham vindo, tudo bem, era o que se esperava, mas como é que a Máquina do Tempo trouxe os mortos?”

Haskins respondeu: “Ó meu amigo, não se incomode com isso. Cá por mim, não vou ficar a meditar no assunto. O que me preocupa agora é saber quanto lhe vou pagar…”

“Eu não cobro muito. Depois mando-lhe a conta.”

CONVITE AO LEITOR

E pronto, caro leitor. Agora o passo seguinte é seu. Para tal, repetimos o nosso convite à sua participação na escolha dos melhores contos. O processo é simples. A partir de hoje, tem trinta (30) dias para fazer a avaliação, em função da sua qualidade e originalidade, do sétimo conto do nosso concurso, da autoria de Detetive Mel, e enviar a respetiva pontuação, numa escala de 5 a 10 pontos, para o email do orientador da secção (salvadorpereirasantos@hotmail.com).

 
enigmas e contos policiais

ARCHIVES
07/01/2003 - 08/01/2003 / 08/01/2003 - 09/01/2003 / 09/01/2003 - 10/01/2003 / 10/01/2003 - 11/01/2003 / 11/01/2003 - 12/01/2003 / 12/01/2003 - 01/01/2004 / 01/01/2004 - 02/01/2004 / 02/01/2004 - 03/01/2004 / 03/01/2004 - 04/01/2004 / 04/01/2004 - 05/01/2004 / 05/01/2004 - 06/01/2004 / 06/01/2004 - 07/01/2004 / 07/01/2004 - 08/01/2004 / 09/01/2004 - 10/01/2004 / 10/01/2004 - 11/01/2004 / 11/01/2004 - 12/01/2004 / 12/01/2004 - 01/01/2005 / 01/01/2005 - 02/01/2005 / 02/01/2005 - 03/01/2005 / 03/01/2005 - 04/01/2005 / 04/01/2005 - 05/01/2005 / 05/01/2005 - 06/01/2005 / 02/01/2007 - 03/01/2007 / 04/01/2007 - 05/01/2007 / 07/01/2007 - 08/01/2007 / 09/01/2007 - 10/01/2007 / 10/01/2007 - 11/01/2007 / 12/01/2007 - 01/01/2008 / 04/01/2008 - 05/01/2008 / 05/01/2008 - 06/01/2008 / 06/01/2008 - 07/01/2008 / 09/01/2008 - 10/01/2008 / 01/01/2009 - 02/01/2009 / 02/01/2009 - 03/01/2009 / 05/01/2009 - 06/01/2009 / 11/01/2016 - 12/01/2016 / 12/01/2016 - 01/01/2017 / 01/01/2017 - 02/01/2017 / 02/01/2017 - 03/01/2017 / 03/01/2017 - 04/01/2017 / 04/01/2017 - 05/01/2017 / 05/01/2017 - 06/01/2017 / 06/01/2017 - 07/01/2017 / 07/01/2017 - 08/01/2017 / 08/01/2017 - 09/01/2017 / 09/01/2017 - 10/01/2017 / 10/01/2017 - 11/01/2017 / 11/01/2017 - 12/01/2017 / 12/01/2017 - 01/01/2018 / 01/01/2018 - 02/01/2018 / 02/01/2018 - 03/01/2018 / 03/01/2018 - 04/01/2018 / 04/01/2018 - 05/01/2018 / 05/01/2018 - 06/01/2018 / 06/01/2018 - 07/01/2018 / 07/01/2018 - 08/01/2018 / 08/01/2018 - 09/01/2018 / 09/01/2018 - 10/01/2018 / 10/01/2018 - 11/01/2018 / 11/01/2018 - 12/01/2018 / 12/01/2018 - 01/01/2019 / 01/01/2019 - 02/01/2019 / 02/01/2019 - 03/01/2019 / 03/01/2019 - 04/01/2019 / 04/01/2019 - 05/01/2019 / 05/01/2019 - 06/01/2019 / 06/01/2019 - 07/01/2019 / 07/01/2019 - 08/01/2019 / 08/01/2019 - 09/01/2019 / 09/01/2019 - 10/01/2019 / 10/01/2019 - 11/01/2019 / 11/01/2019 - 12/01/2019 / 12/01/2019 - 01/01/2020 / 01/01/2020 - 02/01/2020 / 02/01/2020 - 03/01/2020 / 03/01/2020 - 04/01/2020 / 04/01/2020 - 05/01/2020 / 05/01/2020 - 06/01/2020 / 06/01/2020 - 07/01/2020 / 07/01/2020 - 08/01/2020 / 08/01/2020 - 09/01/2020 / 09/01/2020 - 10/01/2020 / 10/01/2020 - 11/01/2020 / 11/01/2020 - 12/01/2020 / 12/01/2020 - 01/01/2021 / 01/01/2021 - 02/01/2021 / 02/01/2021 - 03/01/2021 / 03/01/2021 - 04/01/2021 / 04/01/2021 - 05/01/2021 / 05/01/2021 - 06/01/2021 / 06/01/2021 - 07/01/2021 / 07/01/2021 - 08/01/2021 / 08/01/2021 - 09/01/2021 / 09/01/2021 - 10/01/2021 / 10/01/2021 - 11/01/2021 / 11/01/2021 - 12/01/2021 / 12/01/2021 - 01/01/2022 / 01/01/2022 - 02/01/2022 / 02/01/2022 - 03/01/2022 / 03/01/2022 - 04/01/2022 / 04/01/2022 - 05/01/2022 / 05/01/2022 - 06/01/2022 / 06/01/2022 - 07/01/2022 / 07/01/2022 - 08/01/2022 / 08/01/2022 - 09/01/2022 / 09/01/2022 - 10/01/2022 / 10/01/2022 - 11/01/2022 / 11/01/2022 - 12/01/2022 / 12/01/2022 - 01/01/2023 / 01/01/2023 - 02/01/2023 / 02/01/2023 - 03/01/2023 / 03/01/2023 - 04/01/2023 / 04/01/2023 - 05/01/2023 / 05/01/2023 - 06/01/2023 / 06/01/2023 - 07/01/2023 / 07/01/2023 - 08/01/2023 / 08/01/2023 - 09/01/2023 / 09/01/2023 - 10/01/2023 / 10/01/2023 - 11/01/2023 / 11/01/2023 - 12/01/2023 / 12/01/2023 - 01/01/2024 / 01/01/2024 - 02/01/2024 / 02/01/2024 - 03/01/2024 / 03/01/2024 - 04/01/2024 / 04/01/2024 - 05/01/2024 /


Powered by Blogger