TORNEIO DE INICIAÇÃO REÚNE MAIS DE QUATRO DEZENAS DE DETETIVES
Desvendamos nesta edição a “solução de autor” do primeiro problema do Torneio de Iniciação A. Raposo, que reuniu na linha de partida um “pelotão” de mais de quatro dezenas de concorrentes. Registe-se que a maioria dos que responderam à chamada são fiéis participantes nas nossas iniciativas quase desde a primeira hora, a que se juntam agora alguns estreantes absolutos neste “desporto” lúdico e intelectual que dá pelo nome de Policiário (termo criado pelo nosso poeta Fernando Pessoa). Estamos neste momento em processo de avaliação das propostas de solução enviadas pelos concorrentes e apraz-nos registar que as impressões recolhidas nas primeiras leituras são muito promissoras e leva-nos a augurar uma competição muito animada e renhida, quer no que respeita ao Grupo de Iniciados, quer no que concerne ao Grupo Especial. Entretanto, reiteramos o desafio-convite a todos os leitores do AUDIÈNCIA GP para que se juntem aos “detetives” já em prova e experienciem a decifração dos restantes problemas que constituem este torneio de iniciação, que é também uma simbólica homenagem a um vulto maior da problemística policiária nacional.
TORNEIO DE INICIAÇÃO A.
RAPOSO
Solução da Prova nº. 1
“A Morte Dança o Bolero”,
de A. Raposo
Nota prévia: este problema foi-me inspirado numa
notícia que li sobre um caso sucedido há uns anos no Vaticano, entre a guarda
suíça, e que a revista “Pública” de 12-10-03 retratou... “Tornay foi encontrado
morto, de barriga para baixo, com a pistola debaixo do corpo depois de
alegadamente se ter suicidado com um tiro na boca. Uma posição insólita, já que
quando dispara um tiro na boca, quando o corpo cai por terra, cai costas! A
menos que tivessem imobilizado o corpo e depois disparado”.
A partir desta ideia-base construi o problema, aproveitando
para lhe juntar uns ingredientes para baralhar os solucionistas...
Naquela vivenda, onde se passa a ação, temos em
simultâneo:
1 – O capitão Magalhães na biblioteca, no 1º andar, preparando-se
para tocar na sua aparelhagem um CD com a gravação do célebre Bolero de Ravel;
2 – No rés-do-chão e ao fundo da casa a cozinheira a
tratar das panelas;
3 – No 2º andar e sobre a biblioteca o sobrinho mais
novo a navegar na Net;
4 – Na cave o sobrinho mais velho a carpinteirar com
uma alisadora elétrica;
5 – No jardim, no exterior, o jardineiro a tratar das
flores, mas sob a janela da biblioteca, a qual sempre ficou semiaberta, ou
melhor, semifechada, para quem prefira.
A peça musical de Ravel tem uma particularidade: tem a
duração de 16 minutos, alguns segundos mais, mas para chegar a ouvir-se a um
nível que chegue às outras divisões da casa precisa de uns 10 minutos, pois o
som vai sempre em crescendo. A partir dos 12/14 minutos o ruído sonoro já será
suscetível de chegar à cave. No entanto, sabemos que o tiro foi ouvido pelo
melómano jardineiro 15 minutos após o início do disco, altura onde entram os
pratos (címbalos). O sobrinho mais novo não se apercebeu do tiro, só a criada
notou um barulho esquisito, mas não conseguiu decifrar. Todos eles ouviram o
disco a tocar, sinal que a música estaria suficientemente alta. Porém, o
sobrinho da cave não se poderia aperceber do início da música visto que ela só
começa forte após uns dez minutos. Estando na cave a utilizar uma alisadora
elétrica, teria muita dificuldade em ouvir a música e muito menos o tiro e o
ruído de um corpo a cair – a carpete espessa e dois andares abaixo não
deixariam.
Sendo o sobrinho mais velho o único que entra na
biblioteca após a morte do capitão e que sai fechando à chave a porta, então
precisamos de lhe atribuir também alguns outros dados que o morto não poderia
executar:
1 – Tirar o disco do aparelho e colocá-lo junto à
caixa sobre o gira-discos;
2 – A cápsula da bala não poderia ter escorregado
(rolando), dado que a carpete é espessa e faria a travagem necessária;
3 – E por fim, tal como no caso do Vaticano, um
indivíduo em pé, ao dar um tiro na boca, cai para trás e não fica com a arma
sob o corpo, ao menos que alguém o agarre. O tiro foi dado com a vítima de pé,
como o comprova a bala incrustada na parede a um metro e oitenta do chão. O
normal seria, a haver suicídio, que o capitão disparasse sentado. Resumindo:
neste caso conclui-se facilmente que o capitão foi morto e não se suicidou, e o
assassino só poderia ser o seu sobrinho mais velho.
Quanto à herança, sucede também um caso interessante.
De acordo com o Código Civil (artigo 2166º), é possível deserdar um filho da
parte “legítima” a que teria direito desde que se declare expressamente essa
vontade e que se enquadre na especificidade da alínea a) daquele artigo do
código. Foi o que fez o capitão. Porém, decidiu atribuir a totalidade da sua
herança ao seu algoz. O mesmo código, no artigo 2034º, inibe aquele de ser
herdeiro, provado o crime. Portanto, segue a herança, na totalidade – a casa –,
para o sobrinho mais novo!
O móbil do crime: o sobrinho mais velho quis abreviar
o recebimento da herança, eliminando o tio. Sabia que tinha o testamento a seu
favor. E, como bónus, a parte da “legítima” que não se pode deixar de dar a um
filho, exceto naquele caso previsto no Código Civil. O capitão não perdoou o
filho e deserdou-o completamente.
Como se teria passado o caso: o sobrinho mais velho
apercebeu-se de que o tio iria ouvir música e aproveitou-se do facto. Esperou
até a música subir de tom o suficiente e, de posse da pistola do tio, que ele
saberia encontrar e que estaria operacional, entrou na sala.
O tio levantou-se do sofá ao ver o sobrinho com a sua pistola. Este susteve-o com um braço e com o outro enfiou-lhe a pistola na boca, disparando. O corpo caiu assim de bruços. Entretanto deve ter dado sem querer um pontapé na cápsula, que a fez rolar para debaixo do sofá. A seguir fez uma burrice: foi tirar o disco do aparelho e colocá-lo junto à caixa vazia. Os assassinos fazem sempre uma asneira para facilitar a vida aos investigadores...
TORNEIO DE INICIAÇÃO A. RAPOSO
PONTUAÇÕES/CLASSIFICAÇÕES (após 1ª. Prova)
Grupo de Iniciados
Apresentaram propostas de solução para o problema que constituiu a
primeira prova do torneio 25 (vinte cinco) “detetives” estreantes ou com menos
de 3 (três) anos de experiência na decifração de enigmas policiários, tendo a
maioria obtido a pontuação máxima. Os restantes concorrentes deixaram pelo
caminho alguns preciosos pontos, mas ainda há muito tempo para retificar os
erros agora cometidos e disputar os primeiros lugares da classificação final.
1ºs. Agata Cristas, Beira-Rio, Broa de Avintes,
Charadista, Detetive Bruno, Dragão de Santo Ovídio, Faina do Mar,
Mascarilha, Mosca, Oluap Snitram, Pequeno Simão, Princípe da Madalena, Santinho
da Ladeira e Tó Fadista: 10 pontos;
15ºs. Bota Abaixo, Chico da Afurada, Mancha
Negra, Martelo, Moura Encantada, O Madeirense e Solidário: 9 pontos;
22º. Inspetor Mostarda, Visconde das Devesas,
Zurrapa Verde: 8 pontos.
25º. Mula Velha: 7 pontos.
Grupo Especial
Apresentaram propostas de solução ao enigma da primeira prova do
torneio 17 (dezassete) “detetives” com mais de 3 (três) anos de experiência na
decifração de problemas policiários, alguns com um percurso de grande
brilhantismo e com uma invejável galeria de prémios conquistados nos mais
diversos torneios. Embora neste grupo sejam apenas distinguidas em cada prova
as três “melhores soluções”, cumpre-nos registar com imenso agrado que quase
todos os concorrentes se apresentaram em grande nível, tornando extremamente
difícil a tarefa de avaliação do orientador da secção, obrigando-o a várias
releituras de diversas soluções, o que levou a tomar a decisão de atribuir
extraordinariamente 3 (três) pontos a mais sete concorrentes, conforme tabela
que se segue.
1º. Detetive Jeremias: 10 pontos;
2º. Inspetor Mucaba: 8 pontos;
3º. Inspetor Moscardo: 5 pontos;
4ºs. Haka Crimes, Holmes, Madame Eclética, Ma(r)ta
Hari, Pena Cova, Talismã e Zé de Mafamude: 3 pontos;
11ºs. Amiga Rola, Arc Anjo, Carlota Joaquina,
Inspetor Guimarães, Inspetor Madeira, Necas e Vitinho: 0 pontos.
SEGUNDO PROBLEMA DO TORNEIO DE INICIAÇÃO A.
RAPOSO
Retomamos o nosso Torneio de Iniciação A. Raposo com a publicação de
mais um problema da autoria do seu patrono. A sua ação centra-se numa viagem de
comboio a Paris com mais de quatro décadas para uns dias de férias de Tempicos.
Ele havia conhecido Nelinha há muito pouco tempo e quis impressioná-la com um
banho de cultura. O Museu do Louvre, a Praça da Concórdia e o Arco do Triunfo,
foram alguns dos locais que preencheram aquela viagem a Paris do famoso casalinho
de namorados. Quem os visse nessa altura, embevecidos e em constantes trocas de
carícias e beijos, não diria que aquele romance chegaria ao fim em menos de
nada. Mas isso agora não vem ao caso!
O que vem ao caso é o tempo destinado aos “leitores-detetives” para
fazerem chegar ao orientador da secção uma proposta de solução ao problema, respeitando
as questões suscitadas pelo seu autor, pelo que recordamos os habituais
retardatários que têm apenas 15 (quinze) dias para o fazer, através do email
salvadorpereirasantos@hotmail.com. Isto vem a propósito de alguns atrasos
verificados no envio das propostas de soluções ao primeiro problema do torneio,
situação que não pode ocorrer a partir de agora, de forma a que possamos
respeitar a calendarização da publicação das respetivas “soluções de autor”. Recordamos,
entretanto, os nossos “leitores-detetives” que este torneio policiário de
decifração é destinado prioritariamente a principiantes, mas aberto também à
participação dos mais experientes, sendo por isso constituídos dois grupos com
classificações e processos de avaliação distintos, como se refere mais
pormenorizadamente no fecho desta edição.
TORNEIO DE INICIAÇÃO A.
RAPOSO
Prova nº. 2
“Memórias de Tempicos (Férias em Paris)”, de Raposo
& Lena
Já lá vão mais de 40 anos, é verdade, mas recordo com
muita saudade. Eu e a Nelinha fomos a Paris, de comboio, como dois passarinhos.
A viagem era muito longa e maçadora. A esta distância até nem me parece tanto.
Daquela noite, às escuras, no comboio, ainda hoje tenho nos lábios o gosto doce
a rebuçados que fomos trincando a meias.
Tinham-me saído uns tostões na Lotaria. Tirei uns dias
de férias sem vencimento na PJ e lá fomos de abalada. Ficámos numa pensão
barata da rive-gauche, comíamos pelos bistrots baratinhos, mas vimos tudo.
Paris estava a nossos pés.
Recordo-me de uma tarde bem passada no Louvre. Longas
horas a coscuvilhar todas as salas.
Naquela altura eu já teria uns 40 anos e a Nelinha não
mais de 20. Estávamos bem um para o outro. Eu já tinha fama de malandreco, ela
a ingenuidade dos verdes anos.
Subimos os degraus do Louvre à descoberta da arte. Era
grande a nossa sede de cultura. No topo da escadaria, uma estátua enorme
marcava a sua presença. Era em pedra, um corpo de mulher esculpido e no lugar
dos braços umas asas. O nome já não me ocorre, mas sei que foi encontrada numa
ilha no mar Egeu.
Sei que não estou a fazer confusão com a Vénus de
Milo, esta última infelizmente fi motivo de vandalismo, tendo-lhe um visitante
quebrado os braços, inutilizando-a.
Seguimos para ver a pintura. Salas e mais salas,
quadros e mais quadros, um festival para os olhos. Aqui sucedeu um caso
interessante. Ao verificarmos mais detalhadamente um quadro da Idade Média,
cujo autor já se me varreu, mas que retratava um garoto descalço com um açafate
contendo frutas e legumes, disse à Nelinha: “Estás mais corada que os tomates
do açafate”. Reconheço hoje que não são coisas que se digam às senhoras. Ela
não achou grande piada.
Como já estávamos com alguma fome, resolvemos sair e
viemos comer umas sandes sentados nos degraus da entrado do museu, perto do
local onde anos depois vieram semear uma pirâmide em vidro que não casa muito
bem com o estilo do edifício circundante. Outros tempos, outros costumes.
Meti a mão no bolso para contar o que restava de
francos. Nelinha, vendo as moedas, lembrou-se: “Olha, tenha em casa uma moeda
de prata muito bonita. O seu nome é thaler e é de 1780, de Maria Teresa de
Áustria. Foi usada em muitas áreas, África do Norte e Próximo Oriente.”
Não só acreditei como lhe contei a seguir a minha
história de colecionador: “Tenho uma moeda de baixo valor facial, conhecido por
‘Marcelinho’. Um pobre tostão (X centavos) de alumínio, de 1969. É um pouco
maior que as suas congéneres da época. Porém, deve-se ao facto de ser um
ensaio. Assim sendo, esta moeda acabou por ser a mais valiosa da minha pobre
coleção.”
A Nelinha pareceu também não engolir a história, mas
sorriu, condescendente. De repente, resolveu dar uma corridinha pelo terreno
circundante e colocar-se junto ao Arco do Triunfo, que está ali mesmo ao pé.
Tirei-lhe a foto que estava a pedir. É a única que tenho da nossa viagem a
Paris. Está ainda hoje no meu álbum das fotos antigas e tem a legenda “1972.
Arco do Triunfo. Jardim das Tulherias. Após visita ao Louvre com a Nelinha.”
Naquele fim de tarde ainda arranjámos tempo para irmos
até à Praça da Concórdia. No meio, um enorme pilar de quatro faces, que
decorava o local, mandado construir por Napoleão para comemorar a vitória na
batalha de Waterloo.
No dia seguinte fomos ver a obra de Toulouse-Lautrec
noutro museu, onde vimos o quadro da Jane Avril dançando. Ela estava para
Lautrec como a Nelinha para mim, a expressão mais acabada do ideal feminino.
Depois veio o 25 de Abril de 1974 e a Revolução e perdi a Nelinha. Ela foi
atrás de alguém, mais vistoso e com farda. Nunca mais a vi.
É a vida!
Pergunta-se: qual era a estátua que em vez de braços tinha asas? Existiram as moedas mencionadas? Há mais alguma inverdade histórica no texto?
PROCESSOS DE AVALIAÇÃO
As soluções dos “detetives” com menos de 3 anos de atividade na
modalidade (Grupo de Iniciados) serão avaliadas através da atribuição de 5 a 10
pontos, correspondendo 5 à simples presença e 10 à solução integral do
problema, sendo as pontuações intermédias definidas de acordo com o grau de
resolução. No caso dos “detetives” com mais experiência (Grupo Especial), a
avaliação distinguirá as três melhores soluções de cada prova com 10, 8 e 5
pontos. Em ambos os Grupos, serão vencedores os concorrentes que acumulem no
final um maior número de pontos.